MP abre inquérito para apurar ação de segurança contra criança em shopping da Bahia

Funcionário queria impedir cliente de comprar prato de comida para menino; cena foi filmada

No Correio 24 horas

O Ministério Público da Bahia (MP-BA) instaurou nesta terça-feira (12) um inquérito civil para apurar a responsabilidade do Shopping da Bahia, em Salvador, numa situação envolvendo uma criança e um segurança do estabelecimento na praça de alimentação. O MP-BA apura uma possível prática de racismo institucional e também investiga o caso na área de proteção da criança e do adolescente.

O Juizado de Menores e estudantes de Direito enviaram representações pedindo que o MP abrisse uma investigação. O episódio na praça de alimentação foi filmado e causou muita repercussão (veja abaixo). Nas imagens, o segurança tenta impedir que um garoto se alimentasse – um rapaz se ofereceu para pagar um prato de comida para o garoto. O funcionário alega que o menino era um pedinte e quer retirá-lo do estabelecimento.

A coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Proteção dos Direitos Humanos e Combate à Discriminação (Gedhdis), promotora de Justiça Lívia Vaz, informou que o Shopping da Bahia será oficiado para prestar esclarecimentos sobre o fato dentro de um prazo de dez dias. “Depois de instruído (por meio da coleta de informações e depoimentos), o procedimento poderá resultar em uma recomendação, Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) ou até uma ação civil pública contra o Shopping, inclusive por eventuais danos morais individuais ou coletivos decorrentes da atuação do segurança”, explica. A promotora acrescenta ainda que um inquérito civil não impede que aconteça uma investigação na área criminal.

A Defensoria Pública também divulgou nota repudiando a situação e afirmando que o Shopping da Bahia, através do funcionário, “violou gravemente os mais básicos direitos de uma criança” ao negar que o garoto se alimentasse no estabelecimento. “O caso evidencia flagrante violação a diversos direitos do infante, uma vez que o expôs a situação vexatória e humilhante, diante de um público imenso, sem nenhuma justificativa plausível. Cumpre salientar que um estabelecimento aberto ao público não pode discriminar as pessoas que nele circulam, devendo tratar a todos com dignidade e respeito, especialmente sendo uma criança, a quem a Constituição Federal Brasileira ordenou prioridade absoluta na proteção e garantia dos seus direitos”, diz o texto. A Defensoria ainda se coloca à disposição de dialogar com o shopping, podendo inclusive realizar atividades de capacitação e educação em Direitos Humanos para os funcionários.

O Shopping da Bahia lamentou mais cedo o caso e pediu desculpas pela postura do segurança. Veja a nota:

“O Shopping da Bahia vem a público pedir desculpas pelo ocorrido. A postura adotada não condiz com o treinamento recebido pelos funcionários, tanto que a atitude tomada pelo supervisor de segurança reforça o direito do cliente e o acolhimento com a criança. Reforçamos que nossa operação atua em alinhamento com órgãos de defesa dos direitos humanos, como o Conselho Tutelar e o Juizado de Menores. O empreendimento reforça ainda que, em seus 42 anos de história, sempre teve orgulho de manter uma relação de proximidade e respeito com seus clientes, valorizando a cultura e o povo da Bahia”.

Tensão gravada
Quando o jovem Kaique Sofredine chegou para almoçar no Shopping da Bahia, já no meio da tarde de segunda-feira (12), não imaginava o que iria acontecer instantes depois. Kaique se tornou um dos personagens de uma cena que revoltou muita gente: ele tentava comprar o almoço para um menino em situação de vulnerabilidade quando foi abordado por um segurança do centro de compras. Para o segurança, o menino não poderia comer ali – mesmo que Kaique, um frequentador do shopping, tivesse se disposto a pagar.

Parte da situação foi gravada por uma pessoa que estava no local e, depois, postada no Facebook do próprio Kaique. O vídeo se tornou viral. Até as 10h desta terça-feira (12), o vídeo original tinha sido assistido por 8,9 milhões de pessoas e compartilhado mais de 400 mil vezes. Ao longo de pouco mais de cinco minutos de gravação, é possível ver parte da discussão entre o jovem e o segurança.

“Estou querendo dar o almoço ao menino aqui e o segurança está me rejeitando, falando que vai me tirar do shopping à força, que vai tirar o menino”, diz Kaique, logo no início do vídeo.

Ele segue dizendo que a criança – um garoto magrinho, vestindo uma camisa de time de futebol e chinelos – vai, sim, comer. Diz que ele pagaria. A discussão acontece diante de um dos restaurantes da praça de alimentação do shopping.

O segurança, nesse momento, também carrega um celular. Indignado, Kaique se dirige a ele mais uma vez. “Queria ver se fosse seu filho que tivesse na rua passando fome. Eu queria ver. Ele vai comer”, afirma, em reposta à negativa do segurança. O funcionário do shopping pede que um funcionário do restaurante chamasse o gerente, com o objetivo de que também se recusasse a servir a comida.

Ainda no vídeo, Kaique diz para o segurança chamar o supervisor. Enquanto os funcionários do restaurante atendem Kaique e a criança – que estava acompanhada, ainda, de outro adolescente –, o segurança repete que o menino não poderia comer ali. “Não vai, não vai”. Durante todo o período, o segurança se mantém ao lado deles.

Quando a funcionária do restaurante vem entregar o pedido, o segurança empurra o garoto para longe do balcão. Kaique intervém e os três saem andando. No vídeo, é possível escutar uma mulher revoltada com a atitude do segurança. “Não faça isso, não. Isso é palhaçada”, diz ela.

“Eu trabalho aqui e ele não vai comer. Ele não vai comer. Meu trabalho é esse”, afirma o segurança, enquanto continua tentando impedir a aproximação do menino e de Kaique ao restaurante. Neste ponto, outros dois seguranças chegam e cercam os dois. Em seguida, um homem que parece ser o supervisor dos profissionais de segurança do shopping surge e diz que o menino não poderia vender nada ali – a criança segurava uma sacola amarela nas mãos.

“Certo, não pode (vender), mas agredir a criança também não pode, não”, intervém uma mulher que assiste a cena. Enquanto conversa com o supervisor, Kaique reforça que vai pagar pelo almoço da criança e faz críticas à postura do segurança. “Ele me pegou pelo braço, pegou o menino pelo braço”, diz o jovem. O segurança argumenta que também teria sido agredido, mas algumas testemunhas questionam. “Ele nem te tocou. Está tudo filmado”, diz a mulher que está gravando.

Inicialmente, o primeiro segurança diz que o menino deveria pegar o almoço e sair. Que não poderia sentar na praça de alimentação. Kaique, então, reage: diz que o menino comeria com ele, na mesma mesa em que estava. Depois que o supervisor se dirige à criança, os seguranças se afastam e, finalmente, o menino pôde sentar e comer a refeição.

Repercussão inesperada

Kaique foi procurado pelo CORREIO, mas não quer falar com a imprensa. De acordo com a sócia dele, Nadmilly Gomes, 21 anos, ele não esperava essa repercussão. O jovem teria dito que não quis se promover – apenas comprar uma refeição para o menino.

Nadmilly estava com Kaique no momento em que tudo aconteceu. Os dois são sócios em uma loja de roupas virtual e, na segunda-feira, tinham saído para fazer reposição do estoque da loja. Por volta de 16h, pararam no shopping para almoçar. Ao chegar na praça de alimentação, foram abordados pelo menino.

“Ele chegou para vender chiclete. Perguntou se Kaique poderia comprar um chiclete, porque ele (o menino) iria comprar comida com o dinheiro da venda. Kaique disse que não compraria, mas que poderia comprar comida para ele”, relata Nadmilly.

Depois, quando já estavam sentados à mesa, eles perguntaram ao menino se alguma coisa parecida já tinha acontecido antes no shopping.

“Ele respondeu que já tinha passado por isso e que uma vez tinha saído de lá enforcado (pelos seguranças)”. 

A Kaique e Nadmilly, o menino contou que mora em Pernambués e, com frequência, anda no Shopping da Bahia. Ele estava acompanhado do adolescente. “(A situação) Foi uma coisa que ninguém esperava – tanto a atitude (do segurança) quanto a repercussão”.

No Facebook, Kaique postou o vídeo acompanhado de um pequeno texto. “Estou muito revoltado com isso que aconteceu hoje, fui pagar um almoço pra uma criança e o segurança disse que ele não iria comer, foi uma longa discussão até chamar o supervisor dele e por fim o supervisor deixar o menino comer no shopping (sic)”, escreveu.

Após o vídeo, inúmeros comentários de apoio à postura do jovem e de revolta diante da atitude do segurança foram postados nas redes sociais. “Nada como alguém filmando e tendo prova contundente! Bem que o segurança tentou distorcer s situação! Mas não deu né? Que se leve tal provas a justiça e que ele responda penalmente!”, escreveu uma mulher, na página oficial do shopping no Facebook.

Um homem lamentou a situação vivida pela criança. “Que humilhação para a criança, vai afetar o psicológico dela pra toda vida. Que coisa horrível de se ver. Por um prato de comida”, publicou. “Uma das coisas mais absurdas que eu tive o desprazer de ver em anos…O absurdo daquele vídeo é tamanho que custei a acreditar que eu estava vendo aquilo!”, afirmou outro.

Menino é conhecido na região

Na manhã deste terça-feira, o  CORREIO esteve no Sanduíche de Churrasco, estabelecimento onde ocorreu a situação. Uma funcionária do local disse que não presenciou a discussão. Já outra disse que estava de folga.

Também funcionário de um estabelecimento comercial do shopping, Elvis Souza disse que costuma ver o garoto diariamente. “Ele vem pedir aqui pelo menos quatro vezes por semana. Ele pede, mas nunca come aqui. Eu já tinha visto, inclusive, o mesmo segurança falar pra ele parar de pedir comida aos clientes”, disse.

A vendedora Simone Carina trabalha em uma loja que fica ao lado da Companhia do Churrasco. Ela disse que é “normal” ver crianças abordando clientes para pedir comida. “Elas (criancas) sempre vêm aqui pra pegar comida. Eu já vi esse garoto passar aqui. Ele vem com mais três amigos. Tem cliente que não fala nada, mas tem outros que não gostam”, comenta ela.

Os ambulantes que trabalham na porta do shopping disseram ao CORREIO que o garoto vende balas no turno da tarde. “Ele é “menino de rua” e sempre está por aqui vendendo e pedindo comida”, contou um vendedor ambulante que optou por não se identificar.

O comentário entre os ambulantes que trabalham na região é ação do segurança. “Ele (segurança) não sabe o que é morar na rua e  não ter o que comer. Achei desumano o que ele fez”, comentou o vendedor de capas para celular Tiago Souza.

Outro ambulante diz que recebeu o vídeo na madrugada. “A gente que  trabalha na rua sofre preconceito. Eu espero que ele (segurança) pague pelo que fez com o menino”.

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