No blog do Sakamoto
A imagem da camisa de seu uniforme, branca e azul, manchada de sangue é mais uma prova de que a intervenção federal na área de segurança pública do Estado, que colocou as Forças Armadas no comando, não cumpriu suas promessas de reduzir a sensação de insegurança. Pelo contrário, ao assumir o comando de uma estrutura e de uma política falidas, tornou-se ela mesma vetor da violência.
Desde fevereiro, quando foi decretada por Michel Temer com objetivos marqueteiros e eleitoreiros, a intervenção tem visto cadáveres continuarem a se amontoar diante de seus pés. Entre eles, os da vereadora Marielle Franco e de Anderson Gomes, cujas mortes completaram, nesta sexta (22), 100 dias.
Na operação na Maré, mais seis pessoas morreram – suspeitos que reagiram, segundo a polícia. E um helicóptero dava suporte, atirando do céu na comunidade. Como em um videogame.
Uma população assustada com a violência quer acreditar que exista uma saída rápida e fácil para fazer com que ela volte a se sentir segura. É, portanto, compreensível que uma grande quantidade de pessoas acreditasse, em fevereiro, que a intervenção reduziria as mortes de inocentes. Mesmo com a montanha de evidências de que ela não havia sido planejada, mas lançada pelo governo federal para ganhar popularidade e distrair a sociedade quanto à sua incapacidade de governar.
Essa população com medo, quando confrontada com números de outros países, outras cidades brasileiras ou mesmo do Rio, mostrando que interferências com comando de militares apenas jogam mais gasolina no fogo, não resolvendo o problema e aprofundando a corrupção na caserna, simplesmente gritou que os dados eram ”notícia falsa”.
E tapou os ouvidos ao escutar que as Forças Armadas não eram treinadas para operar esse tipo de ação de policiamento, informação que saiu da boca de seus próprios comandantes que sabiam a enrascada em que estavam sendo metidos.
Ao se agarrar a promessas vazias, essas pessoas até agora não conseguem entender o que é e como funciona uma comunidade dominada por facções criminosas. E que inocentes, como Marcos, costumam morrer em conflitos ocorridos nesses territórios. Aceitam que o Estado mate quem for preciso para garantir a ordem. Mesmo que, ao final, isso signifique o sangue de dezenas de policiais e soldados e de milhares de moradores. Uns lamentam o que chamam de ”dano colateral”, outros dizem abertamente que se morreu é porque alguma culpa tinha.
Como ocorreu as redes sociais em que ignóbeis afirmavam do alto de sua estupidez que o menino estava armado, atirando, como soldado do tráfico de drogas.
Seria ótimo que, ao invés de propor uma saída fácil, vazia, marqueteira e eleitoreira, o governo Michel Temer tivesse chamado as comunidades afetadas para construir um plano de ação, evitando soluções impostas de cima para baixo que servem apenas ao controle populacional das chamadas ”classes perigosas”.
E que também tivesse trazido a público a discussão sobre a desmilitarização da força policial (o que significa mudar seu treinamento a fim de priorizar a proteção da população antes de matar inimigos), ao mesmo tempo em que tivesse buscado a melhora de seus salários e de suas condições de trabalho.
E tivesse investido em inteligência policial e no cruzamento de dados da segurança pública, além de tornar efetiva a punição caso seja constatado o envolvimento de policiais em delitos. E tivesse dado voz aos policiais honestos para que ajudassem a encontrar saídas. Afinal, eles também tombam de forma inaceitável não apenas no cumprimento do dever, mas também como vítimas de crimes, quando descobertos nos bairros e comunidades pobres em que moram.
Se o debate sobre segurança pública não passar por ações estruturais que melhorem a qualidade de vida, garantam justiça social, permitam que o jovem pobre tenha perspectiva real de futuro, não teremos solução sustentável. Pois matar geral e colocar criança em cadeia privatizada só piora o quadro. A cada soldado do tráfico abatido, há outros dez na fila para entrar. Para cada dono de morro preso, surgem imediatamente outros três. Sem contar que acabar com o CV, o TC e a ADA no Rio sem entrar fortemente com um Estado de bem-estar social, é um convite à substituição por uma filial do PCC.
E, é claro, enterrar a fracassada política de ”guerra às drogas”. Enquanto ela for mantida e não caminharmos para a descriminalização paulatina, encarando o problema como de saúde pública, o Estado seguirá alimentando o tráfico de armas e promovendo violência. Os grandes traficantes não estão na favela, mas moram em casas confortáveis em bairros chiques de grandes cidades.
É importante frisar que o fracasso em políticas de segurança não é monopólio da direita, do centro ou da esquerda – todos têm sido responsáveis pelo buraco em que estamos. PT e PSDB, porque governaram o país e grandes estados da federação por muito tempo. E o PMDB porque sequestrou o país desde a redemocratização.
A cúpula do governo federal, sabendo que a população tende a encarar soluções estruturais e complexas como mimimi de quem não quer resolver o problema, aproveitou para lançar uma intervenção insustentável e que não alcançará seus objetivos.
Falhamos. Profundamente, amargamente. Não apenas ao manter governantes incompetentes, corruptos e insensíveis, que perseguem soluções simplistas e fogem de ações estruturais, mas também ao permitir que a cidadania não seja universalizada (desde 13 de maio de 1888) e que a vida desses não-cidadãos valesse menos do que um instrumento descartável de trabalho. O sangue na camiseta do uniforme escolar do jovem de 14 anos é prova disso.
Qual vocês acham que era a cor da pele de Marcus Vinícius? E por que, no Brasil, essa pergunta é quase desnecessária?
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Uniforme escolar de Marcos Vinícius manchado com seu sangue. Foto: Mauro Pimentel/AFP