Caso Herzog: resolver a violência do passado é enfrentar a exceção do Brasil de hoje. Entrevista especial com José Carlos Moreira da Silva Filho

por João Vitor Santos, em IHU On-Line

A imagem do falso suicídio do jornalista Vladimir Herzog divulgada pelos militares é um ícone das dissimulações inventadas para encobrir a barbárie que ocorreu durante o regime militar no Brasil, entre 1964 e 1985. Torturado até a morte, em 1975, nas dependências do Departamento de Operações de Informações e Centro de Operações de Defesa Interna – DOI-CODI, Vladimir se tornou símbolo pela busca da justiça, já que os responsáveis nunca foram julgados, sob o argumento de que estão protegidos pela Lei de Anistia, de 1979. Para o jurista José Carlos Moreira da Silva Filho, esse é um capítulo da história nacional que ainda não foi resolvido e, logo, ainda reverbera. “Ao contrário do que o senso comum indica, é justamente ao estarmos atentos e diligentes com nossas dívidas históricas e com as injustiças e violações praticadas no passado que estaremos realmente habilitados, afiados e capacitados para lidarmos com as violências e arbitrariedades estatais praticadas no presente”, avalia, em entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail.

Foi por isso que familiares de Vladimir e ativistas de Direitos Humanos seguiram lutando pelo reconhecimento não só do que foi esse crime, mas de toda a repressão vivida por milhares de brasileiros. Agora, no início de julho, uma vitória: o Estado brasileiro foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos – CIDH, pela prisão, tortura e morte do jornalista. “No caso Herzog, o Brasil vem se negando sistematicamente a cumprir esses deveres”, salienta José Carlos. Agora, diante dessa decisão, o Estado brasileiro será obrigado a reconhecer o crime e punir os culpados.

Na entrevista, o jurista analisa não só a condenação em si, mas o efeito que deve ter diante de outros casos de vítimas do regime. “Sem dúvida esta decisão internacional tensiona o Estado brasileiro, evidenciando a resistência do Brasil em cumprir seus deveres internacionais e em promover a necessária justiça de transição no país”, pontua. Além disso, condenações como essas forçam para que olhemos para pontos obscuros de nosso passado. Para José Carlos, isso faz com que tenhamos uma visão mais ampla e complexa para compreendermos, por exemplo, que a violência, o estado de exceção no qual parecemos mergulhados, tem origem no passado, como um ciclo aberto e ainda não fechado. “A exceção no Brasil de hoje se encontra com a exceção mal resolvida do Brasil da ditadura”, sintetiza.

E, ao não fechar esse ciclo, o país acaba atônito diante de problemas de ordem política, econômica e social, resvalando para o equívoco de considerar que são problemas que têm origem na democracia. “O grande problema é as pessoas comprarem a ideia de que não há alternativas, de que a desregulação da economia, a precarização do trabalho, e o abandono dos desempregados ou miseráveis (mesmo com trabalho) a um cenário ausente de serviços públicos sociais, ou mesmo o extermínio maciço em guerras e conflitos civis são consequências factuais e científicas do processo de inovação tecnológica”, analisa. E alerta: “em momentos assim é forte a tentação de comprar o velho como novo, de sucumbir ao discurso tão fácil como enganoso e traiçoeiro do fascismo”. Assim, para ele, para evitar essas “soluções fáceis”, é preciso fazer a memória de casos icônicos como o de Herzog. “O esquecimento do passado é o principal ingrediente para a continuidade da violência e para a sua impunidade”.

José Carlos Moreira da Silva Filho é ex-conselheiro e vice-presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, membro da Associação Brasil de Juristas pela Democracia – ABJD. É graduado em Direito pela Universidade de Brasília, mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina e doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Atua, ainda, como professor no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUC-RS e na Faculdade de Direito da PUC-RS. Entre suas publicações, destacamos Filosofia Jurídica da Alteridade: por uma aproximação entre o pluralismo jurídico e a filosofia da libertação latino-americana (Curitiba: Juruá, 1998) e Justiça de Transição – da ditadura civil-militar ao debate justransicional – direito à memória e à verdade e os caminhos da reparação no Brasil (Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em que consiste essa condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Vladmir Herzog? O que deve ser feito a partir de agora?

José Carlos Moreira da Silva Filho – A Corte Interamericana de Direitos Humanos não condenou o Brasil pelo assassinato de Vladimir Herzog, pois à época dos fatos, o ano de 1975, o Brasil não havia aderido à Convenção Interamericana de Direitos Humanos (o que fez em 1992) muito menos se submetido à jurisdição da Corte Interamericana. O motivo da condenação foi o fato de que desde a data em que o Brasil reconheceu a jurisdição da Corte (mais precisamente desde o dia 10 de dezembro de 1998), o Brasil continuou não cumprindo seus deveres internacionais de levar adiante o processo de investigação a respeito das graves violações de direitos humanos sofridas por Herzog, mesmo que tais violações tivessem ocorrido anteriormente ao reconhecimento da jurisdição da Corte. O Estado é culpado por omissão do seu dever de investigar e de promover a responsabilidade criminal dos agentes que praticaram crimes contra a humanidade (dever que atenderia o direito dos familiares às garantias e às proteções judiciais), do seu dever de garantir o direito à verdade dos familiares e de repará-los pela perpetuação desses danos.

No caso Herzog, o Brasil vem se negando sistematicamente a cumprir esses deveres. Faço aqui uma breve cronologia. Em outubro de 1975, logo após a morte de Herzog, é instaurado um Inquérito Policial Militar – IPM para “apurar as circunstâncias em que aconteceu o suicídio do jornalista”. O IPM, conforme cinicamente já indicado na sua própria instauração, confirma o suposto suicídio de Herzog. Importante dizer que três médicos legistas confirmam a versão de suicídio, são eles: Harry ShibataArildo Viana e Armando Canger. O atestado de óbito nesses termos sai em dezembro de 1975 e o IPM é arquivado em março de 1976 pelo Juiz Auditor da Justiça Militar. Em 19 de abril de 1976, Clarice e seus filhos ingressam com uma Ação Declaratória contra a União na Justiça Federal de São Paulo, pedindo que se declare a responsabilidade do Estado brasileiro pela morte de Herzog, desmentindo a versão de suicídio, e que a família seja indenizada. Em 27 de outubro de 1978 o Juiz Federal Márcio José de Moraes, em sentença correta e de grande coragem naquele contexto, emite sentença pela procedência da Ação movida por Clarice e seus familiares. Em 1983, o então Tribunal Federal de Recursos confirma a sentença por maioria. A decisão transita em julgado em 27 de setembro de 1995. Infelizmente, tal decisão foi sistematicamente descumprida.

Será apenas em 1992 que o então deputado federal Hélio Bicudo apresentará representação ao Ministério Público de São Paulo solicitando uma investigação policial para apurar a responsabilidade de Pedro Antônio Mira Grancieri, o “capitão Ramiro”, pela morte de Herzog. Em 04 de maio, o Ministério Público solicita à Polícia Civil de São Paulo a abertura de inquérito policial. Foi instaurado o Inquérito Policial N° 487/92. Em 21 de julho, Grancieri interpôs habeas corpus, alegando que a investigação já havia sido feita no IPM anterior, que a instância adequada seria a justiça militar e que a investigação seria vedada pela Lei de Anistia. Em 13 de outubro, a 4ª Câmara Criminal do TJSP decidiu por unanimidade conceder o habeas corpus e trancar o Inquérito Policial com fundamento na Lei de Anistia. Em 28 de janeiro de 1993, a Procuradoria Geral de Justiça apelou da decisão. Em 18 de agosto a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça confirmou a decisão do TJSP pelo trancamento do Inquérito Policial.

Confirmação do assassinato

Em 1995, é promulgada a Lei 9.140, que instituiu a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos – CEMDP. Em 28 de fevereiro de 1996, Clarice Herzog apresenta pedido perante a CEMDP para reconhecimento do assassinato de Herzog e para a indenização cabível. Em 17 de Julho de 1997, a decisão favorável da CEMDP é confirmada pelo Presidente da República. Em 2007 o Relatório da CEMDP é publicado e nele se afirma que “Em 25 de outubro de 1975, o jornalista Vladimir Herzog foi assassinado sob torturas no DOI-CODI de São Paulo”.

Em 19 de novembro, o advogado Fabio Konder Comparato apresenta uma Representação ao Ministério Público Federal para adotar as medidas necessárias e investigar os abusos e atos criminosos praticados contra os opositores do regime. Em março de 2008, a Representação foi encaminhada a Fábio Elizeu Gaspar, membro do Ministério Público Federal com atribuições penais à época, que em 12 de setembro apresentou uma promoção de arquivamento para a 1ª Vara Federal Criminal, com argumento de que a decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – TJSP fundada na Lei de Anistia havia produzido coisa julgada material e de que o crime estaria prescrito. Em 09 de janeiro de 2009, a Juíza Federal Substituta Paula Mantovani Avelino, da 1ª Vara Federal Criminal determinou o arquivamento do processo, o que foi feito no mesmo dia.

A Comissão Nacional da Verdade

Em 18 de novembro de 2011, foi promulgada a Lei N° 12.528 que instituiu a Comissão Nacional da Verdade – CNV. Em 30 de agosto de 2012, a CNV requereu ao juiz da 2ª Vara de Registros Públicos da Comarca de São Paulo a retificação do atestado de óbito de Vladimir Herzog. Em 24 de setembro de 2012, o Juiz emitiu sentença na qual ordenou a retificação do atestado de óbito de Vladimir Herzog para que nele constasse que sua morte “decorreu de lesões e maus tratos sofridos em dependência do II Exército SP (DOI-CODI)”. Em setembro de 2014 uma equipe de peritos da CNV produz um laudo pericial indireto sobre a morte de Herzog e conclui pelo seu assassinato. No dia 10 de dezembro de 2014, exatos 16 anos após o Brasil ter se submetido soberanamente à jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos, é entregue o Relatório Final da CNV no qual se confirma o assassinato de Herzog e se recomenda a responsabilização criminal, civil e administrativa dos agentes cujas autorias são descritas no Relatório, sem que sobre eles recaia a anistia.

Penalização dos culpados

Paralelamente a tais desdobramentos internos, o Sistema Interamericano de Direitos Humanos começa a ser provocado a partir de julho de 2009. A Comissão admite o caso em 08 de novembro de 2012 e após as manifestações das partes decide, em outubro de 2015, pelo mérito do pedido, estabelecendo várias recomendações ao Estado brasileiro, entre elas a de investigar e processar criminalmente os agentes responsáveis pela morte de Herzog. As recomendações não são atendidas e no dia 22 de abril de 2016 o Caso Herzog é enviado pela Comissão à Corte Interamericana de Direitos Humanos, que, finalmente, em 15 de março de 2018, mas com publicação da sentença apenas em 04 de julho de 2018, decide pela condenação do Brasil.

O que se deveria fazer a partir de agora? Muito simples. Cumprir a sentença. O que implica em que o Estado brasileiro deve: 1) de modo diligente, urgente e eficaz “reiniciar a investigação e o processo penal cabíveis, para identificar, processar e, caso seja pertinente, punir os responsáveis pela tortura e morte de Vladimir Herzog“; 2) reconhecer internamente e sem exceção o caráter imprescritível dos crimes contra a humanidade e internacionais; 3) “realizar um ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional” perante o caso Herzog, em desagravo à sua memória e “à falta de investigação, julgamento e punição dos responsáveis por sua tortura e morte”, contando com a presença de altos representantes das Forças Armadas inclusive; 4) publicar a sentença integral no Diário Oficial e resumos dela em jornais de grande circulação e nas redes sociais (por pelo menos um ano e com promoção da página eletrônica) do Exército, do Ministério da Justiça e da Secretaria de Direitos Humanos; e 5) pagar as indenizações pelos custos materiais e imateriais sofridos por Clarice, Ivo, André e Zora Herzog, respectivamente, viúva, filhos e mãe de Vladimir Herzog, em sua cruzada na busca de justiça.

IHU On-Line – A Corte considerou esse um crime contra a humanidade. O que isso significa?

José Carlos Moreira da Silva Filho – O Crime contra a Humanidade é um delito reconhecido pelo Direito Internacional a partir tanto do costume internacional quanto de diversos tratados internacionais e normas e decisões produzidas por Organismos Internacionais e por Tribunais Internacionais. É de fato acachapante o volume de normas, decisões e manifestações, até mesmo no âmbito jurisdicional e legal interno de inúmeros países, no sentido do seu reconhecimento. Acertadamente a sentença da Corte no Caso Herzog identifica o início do desenvolvimento da noção de crime contra a humanidade no início do século passado. O preâmbulo da Convenção de Haia sobre leis e costumes da guerra terrestre de 1907 estabelece que “as populações e os beligerantes permanecem sob a garantia e o regime do Direito das Gentes preconizados pelos usos estabelecidos entre as nações civilizadas, pelas leis da humanidade e pelas exigências da consciência pública”. Tem-se aqui uma norma legal internacional que reconhece a existência do costume internacional como fonte e que faz alusão às leis da humanidade.

Mas será apenas no Acordo de Londres de 1945, base jurídica para o Tribunal de Nuremberg, que o crime contra a humanidade será reconhecido em suas linhas e elementos constitutivos, quais sejam: I- a prática de um ato por parte do Estado que seja violador de direitos humanos, como o assassinato, o estupro, a tortura, e outros atos altamente repudiáveis contra civis; II- que tais atos sejam praticados em um contexto de perseguição sistemática ou generalizada. O Acordo de Londres, frise-se bem, não cria o crime contra a humanidade, simplesmente o reconhece, visto que ele já era tido como um crime internacional nos “usos estabelecidos entre as nações civilizadas”. Já era tido como um direito cogente de natureza internacional, como jus cogens. A sua imprescritibilidade obedece ao mesmo raciocínio, ou seja, não depende de que tenha sido reconhecida em algum Tratado Internacional, é característica inerente à sua configuração consuetudinária, o que faz sentido, pois em contextos de violência institucional generalizada ou de exceção torna-se extremamente difícil a investigação de violações de direitos praticadas pelos Estados, sem falar no caráter intensamente reprovável de uma grave violação praticada por quem detém o monopólio da força contra quem deveria proteger.

Os Tratados, normas e decisões que reconhecem a imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade apenas a reconhecem, não a instituem, e assim é afirmado nos mais diversos tribunais e organismos internacionais, bem como em múltiplas jurisdições nacionais, como, aliás, a sentença da Corte no Caso Herzog bem especifica. A descrição legal internacional mais acabada do crime contra a humanidade está presente no Tratado de Roma de 1998, que institui o Tribunal Penal Internacional e que foi incorporado pelo Brasil em 2002.

Sem prescrição

A proibição e necessária investigação e responsabilização de agentes pela prática de crimes contra a humanidade é uma norma imperativa do Direito Internacional (jus cogens), o que significa que não se admite qualquer hipótese de acordo em sentido contrário, mesmo que pela via de uma lei de anistia. Do mesmo modo, como assinalado, a prescrição não pode ser invocada. Tampouco poderá ser acionado o princípio ne bis in idem, ou seja, o de que uma pessoa não poderá ser julgada pelo mesmo fato novamente, pois os julgamentos absolutórios ou que eximem o agente de responsabilidade pela prática de tais crimes não observaram as normas internacionais como se deveria, e, na maior parte dos casos foram arremedos de prestação jurisdicional ditadas por normas e procedimentos de exceção, em si mesmos violadores de direitos.

No caso Herzog, inclusive, a sentença da Corte assinalou que embora seja um dever imperioso do Estado que perpetrou tais crimes fazer a devida investigação e responsabilização dos seus agentes, qualquer Estado tem jurisdição para processar e julgar esses agentes, o que fundamenta e dá visibilidade ao instituto da jurisdição universal, o mesmo que foi invocado pelo juiz espanhol Baltasar Garzón para determinar a prisão do ditador chileno Augusto Pinochet em 1998.

Repressão e perseguição

Vladimir Herzog foi morto tanto em um contexto de repressão generalizada quanto de perseguição sistemática a um determinado grupo de civis. Em outubro de 1975, quando ocorreu o assassinato do jornalista, já estava estruturado e sedimentado no Brasil, como já é reconhecido pelo próprio Estado brasileiro por intermédio tanto da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos quanto pela Comissão Nacional da Verdade, um enorme e capilarizado aparato de repressão, informação, censura, morte e tortura, direcionados a partir da Doutrina de Segurança Nacional e das suas noções de guerra psicológica adversa, interna e subversiva, aptas a demarcar a noção de um inimigo interno, que poderia ser virtualmente qualquer um.

Foram muitos os órgãos e agentes que atuaram a serviço dessa repressão generalizada, sem que se hesitasse em praticar atos criminosos e proibidos à luz das próprias leis do período. Foram órgãos das Forças Armadas, das Polícias, dos Estados, da União, médicos, juízes, promotores, políticos, empresários. Paralelamente a tal pano de fundo, após a resistência armada ter sido trucidada, após dezenas de jovens terem sido mortos e vítimas de desaparecimento forçado na Guerrilha do Araguaia (situação até hoje pendente e que motivou condenação anterior do Brasil pela mesma Corte), o regime mirou entre 1973 e 1976 os membros e dirigentes do Partido Comunista Brasileiro (PCB) na famigerada “Operação Radar“, com o objetivo de eliminar as principais lideranças, e que foi conduzida pelo Centro de Informação do Exército(CIE) em conjunto com o DOI-CODI do II Exército, comandado ao longo do seu período mais violento pelo falecido Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra. Dezenas de membros do PCB foram detidos, torturados e mortos, praticamente todo o Comitê Central. Vladimir Herzog, à época da sua prisão e morte, era jornalista de destaque na TV Cultura, diretor do Departamento de Jornalismo, e também era membro do PCB.

IHU On-Line – Qual a importância dessa decisão internacional e como isso tensiona o Estado brasileiro a, de fato, incursionar pelos porões da ditadura e promover uma justiça restaurativa?

José Carlos Moreira da Silva Filho – Imagino que em vez de “justiça restaurativa” você tenha querido dizer “justiça de transição” ou “justiça transicional”. Sem dúvida esta decisão internacional tensiona o Estado brasileiro, evidenciando a resistência do Brasil em cumprir seus deveres internacionais e em promover a necessária justiça de transição no país. A justiça de transição indica o que devemos fazer nos regimes democráticos para confrontar o passado de violações e arbitrariedades generalizadas, promovendo o direito à verdade e à memória, as responsabilizações por graves violações de direitos humanos, as reparações e as necessárias reformas institucionais.

Ao contrário do que o senso comum indica, é justamente ao estarmos atentos e diligentes com nossas dívidas históricas e com as injustiças e violações praticadas no passado, especialmente quando tais violências foram realizadas mediante instrumentalização das instituições públicas, que estaremos realmente habilitados, afiados e capacitados para lidarmos com as violências e arbitrariedades estatais praticadas no presente. O esquecimento do passado é o principal ingrediente para a continuidade da violência e para a sua impunidade, especialmente quando estamos falando de crimes praticados pelo Estado por meio dos seus agentes.

Dentre os atores institucionais que hoje mais intensamente e sistematicamente descumprem seus deveres no campo da justiça de transição no Brasil, estão as Forças Armadas e o Poder Judiciário. A primeira por até hoje, mesmo que veladamente em alguns casos, ainda insistir no discurso de apologia da ditadura e no negacionismo das barbaridades que ela cometeu, e também por ter se negado acintosamente a colaborar seriamente com a Comissão Nacional da Verdade. O segundo, com honrosas exceções, por até hoje bloquear as ações de responsabilização por crimes contra a humanidade praticados pela ditadura, e, particularmente, por ter endossado por meio do seu mais alto órgão, o Supremo Tribunal Federal – STF, a interpretação autoritária da ditadura para a lei de anistia de 1979. Não é à toa que tanto o Exército como o Judiciário brasileiro são explicitamente mencionados em várias passagens da sentença da Corte Interamericana no Caso Herzog.

IHU On-Line – A Corte ainda aponta que a Lei de Anistia de 1979 foi usada para encobrir a verdade dos fatos desse caso. Em que medida essa decisão pode também promover uma espécie de revisão da legislação, visando levantar todas as informações encobertas por leis?

José Carlos Moreira da Silva Filho – A verdade é que a lei de anistia de 1979 não passou no necessário duplo controle constitucional-convencional de legitimidade. O jurista André de Carvalho Ramos teoriza sobre esta noção, estipulando que à luz dos direitos humanos as leis necessitam passar por um duplo controle para serem consideradas legítimas e válidas juridicamente. Como tanto a ordem nacional quanto a internacional buscam proteger os direitos humanos, teremos o reconhecimento da obrigação da sua proteção e da vedação de sua violação nas Constituições e em Convenções Internacionais de Direitos Humanos.

O órgão responsável por analisar a adequação da lei à Constituição é a Suprema Corte ou Corte Constitucional de cada país. Ainda que possamos cientificamente discordar da decisão do STF na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 153 tomada em abril de 2010 (que apreciou a compatibilidade da Lei de Anistiade 1979 com a Constituição de 1988) – e, saliento, discordo dela diametralmente [1] – é o STF o mais alto órgão público competente para apreciar a compatibilidade entre lei e Constituição. No entanto, o órgão responsável, em última instância, por analisar a compatibilidade entre a lei de um país signatário da Convenção Interamericana de Direitos Humanos e esta Convenção é a Corte Interamericana de Direitos Humanos, ainda mais em decisão que condena o país em questão.

A lei de anistia de 1979, no que toca à anistia dos agentes da ditadura que praticaram crimes contra a humanidade passou (por enquanto, já que a decisão segue pendente de apreciação de recurso e de ações posteriores) pelo controle de constitucionalidade, mas não passou pelo controle de convencionalidade, o que é verdade desde pelo menos novembro de 2010, quando a Corte Interamericana publicou sentença condenatória do Brasil no Caso Gomes Lund, mais conhecido como Caso Guerrilha do Araguaia. A sentença da Corte no Caso Herzog reafirma isto. O Estado brasileiro, quando soberanamente reconheceu a jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos, se comprometeu a cumprir integralmente as condenações que viesse a sofrer. Não há, portanto, justificativa jurídica plausível para que o Poder Judiciário (um dos poderes do Estado) continue a descumprir o que foi determinado pela Corte, valendo o mesmo para o Exército brasileiro, submetido em todos os sentidos jurídicos e legais ao comando do Poder Executivo.

IHU On-Line – Em que medida essa decisão sobre o caso Herzog pode abrir caminho para decisões similares em outros crimes de morte e tortura feitos durante o regime militar no Brasil?

José Carlos Moreira da Silva Filho – Na medida em que em outros casos (e os há em profusão) tenham sido esgotadas todas as possibilidades internas para que as vítimas e familiares possam ter atendidos os direitos consagrados na Convenção Interamericana. Para que tais ações possam progredir depende, por óbvio, da capacidade e disposição tanto das vítimas (os familiares de mortos e desaparecidos também são considerados vítimas pela Corte) quanto de entidades que patrocinam tais causas no exercício da advocacia transnacional, e desde que, claro, os possíveis perpetradores ainda estejam vivos.

Todas as dezenas de casos e ações penais que o Ministério Público Federal vem tentando levar adiante desde que o Brasil foi condenado no Caso Araguaia representam virtualmente casos que poderão ser levados ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos, visto que todos eles, ainda que com honrosas exceções em primeira e segunda instância (mas já devidamente bloqueadas por juízes de segunda instância ou pelo próprio STF), já foram bloqueados, interrompidos e em alguns casos arquivados pelo Poder Judiciário brasileiro.

IHU On-Line – Em resposta à decisão da Corte, o Ministério dos Direitos Humanos brasileiro disse que vai aprimorar as investigações sobre o Caso Herzog. Como avalia essa postura do governo brasileiro e quais suas expectativas com relação a ações concretas?

José Carlos Moreira da Silva Filho – Honestamente, não acredito que o atual governo irá cumprir a decisão da Corte. Eu tive a oportunidade de oferecer um amicus curiae [expressão em Latim utilizada para designar uma instituição que tem por finalidade fornecer subsídios às decisões dos tribunais, oferecendo-lhes melhor base para questões relevantes e de grande impacto] nessa causa, que foi produzido por integrantes do Grupo de Pesquisa Direito à Verdade e à Memória e Justiça de Transição, o qual coordeno no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUCRS. Assinaram e elaboraram a peça junto comigo alunas, alunos, ex-alunas e ex-alunos da Escola de Direito da PUCRS. Foram oferecidos cinco amicus nessa causa, o nosso foi o primeiro a ser mencionado na sentença (parágrafo 12, página 6). Também fizemos o mesmo na causa da Guerrilha do Araguaia (aí já era um outro grupo à época).

Mencionei o amicus porque um dos pontos que levantamos na peça (além da configuração do assassinato de Herzog como crime contra a humanidade e da afirmação do cumprimento do direito à verdade para os familiares, entre outros pontos) foi a descrição dos retrocessos em matéria de justiça de transição que começaram a ser operados desde o primeiro dia do Governo Temer, tais como a inédita exoneração da maioria dos antigos Conselheiros e Conselheiras da Comissão de Anistia, o cancelamento de inúmeras políticas de memória e reparação que eram empreendidas (dentre as quais o belo, inédito e exitoso projeto Clínicas do Testemunho e a finalização e inauguração do Memorial da Anistia Política em Belo Horizonte-MG), o recente cancelamento do pedido de desculpas aos perseguidos políticos, o cancelamento do apoio e da estrutura mínima para o funcionamento da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, que felizmente conseguiu encontrar outros meios para continuar o seu importante trabalho, e, claro, a observação ao contrário das recomendações feitas pela Comissão Nacional da Verdade, especialmente no que toca à questão da militarização da segurança pública, e nesse particular com grande destaque para a intervenção federal operada por manu militare no Rio de Janeiro (com direito à afirmação do Comandante do Exército de que é preciso não haver outra Comissão da Verdade para apurar “eventuais excessos” dos militares) e a absurda sanção presidencial à lei que retira da justiça comum para a justiça militar a jurisdição sobre militares que tenham praticado crimes contra civis, incluindo-se aí os policiais militares.

Poderia incluir nesta lista outros feitos como o de tornar o ensino de História no Ensino Médio algo facultativo, por exemplo. Eu diria que o Governo Temer tem seguido ao contrário as recomendações da Comissão Nacional da Verdade – CNV. É um modelo de como não se fazer a justiça de transição. Não se poderia esperar algo diferente de um governo que chegou ao poder mediante um golpe institucional, que não tem legitimação popular, que é fruto de um processo de impeachment fraudulento.

Por fim, quando o governo diz que “irá aprimorar a investigação sobre o Caso Herzog“, está claramente tergiversando. Caso tivesse mesmo a disposição em cumprir a sentença, o governo teria declarado sua intenção em reiniciar as investigações com o envolvimento imediato da Polícia Federal e em envidar esforços para o subsequente processamento e a responsabilização penal dos agentes, bem como declararia seu intento em exigir do Exército o acesso aos arquivos do período. Confesso meu ceticismo até mesmo de que o atual governo faça o ato público em desagravo à memória de Herzog nos termos exigidos pela sentença.

IHU On-Line – De que forma fatos como esse reacendem e atualizam a memória da ditadura no Brasil? E por que é importante sempre fazer essa memória?

José Carlos Moreira da Silva Filho – A memória do que não conhecemos, à qual temos noção por processos de enfrentamento, reconhecimento e apaziguamento, ou mediante o testemunho, seja presencial, seja por vídeos, gravações, fotos ou documentos, juntamente com os trabalhos mais distanciados da investigação histórica e da produção da verdade institucional, é uma fonte indispensável de conhecimento para quem pretende agir e se reconhecer em uma comunidade política, fazer parte da sociedade. Ao contrário do que se pode pensar, a memória outrora bloqueada ou negada, coloca em cena algo novo, jamais reconhecido. Por vezes a memória abre expedientes que a história havia dado por encerrados. Ela atualiza as potencialidades críticas e emancipatórias. A memória da injustiça, da violação dos direitos mais básicos, do aviltamento da condição humana, tão claro na prática institucionalizada da tortura, do aparelhamento de instituições públicas e coletivas para a perseguição, a morte, a tortura, o estupro, o desaparecimento forçado, tal memória é o ingrediente mais importante para que haja o engajamento político da sociedade em prol do nunca mais.

É somente tendo a experiência de viver ou testemunhar a injustiça e a violência que se tem a necessária motivação e estímulo para a construção de políticas de não repetição. Apenas quem de fato se sensibiliza por tanta dor irá agir para evitar que ela se repita. Aprende-se mais sobre Direitos Humanos ao se experimentar a sua violação do que lendo artigos de lei, teorias ou livros de história. Walter Benjamin, mergulhado na meia-noite da História, já havia notado que a Modernidade que se abraça com o progresso é a mesma que se abraça com o fascismo, pois descarta o passado dos vencidos como um custo necessário, como página virada. Tal lógica é a responsável pela continuidade dos mesmos dispositivos de massacre. Se quisermos de fato avançar é para trás que temos de olhar.

Recuperar as narrativas de sofrimento das vítimas do passado e fazer justiça a elas é o impulso e direcionamento de que precisamos para que tenhamos justiça para as vítimas de hoje. Não é de se estranhar que o Brasil é o país mais violento da América Latina, com a Polícia que mais mata e que mais morre, e que o combate à tortura nunca tenha sido uma bandeira prioritária das instituições públicas. Por exemplo, por que o Ministério Público nunca fez uma forte e incisiva campanha pública de combate ao mal crônico da tortura? Ou o Judiciário? São perguntas que deixo no ar.

IHU On-Line – Vivemos um tempo de tensões, conservadorismos, disputas polares em que a própria democracia é posta em xeque. É nesse tempo que defensores de regimes militares parecem que tomam voz. Como o senhor tem observado esse contexto? Em que medida esse sentimento revela o desconhecimento do que foi o regime militar no Brasil? Ou seria apenas uma decepção com as promessas do Estado Democrático?

José Carlos Moreira da Silva Filho – A democracia está em crise no mundo todo. O estágio atual do capitalismo financeiro e o incrível desenvolvimento tecnológico criaram condições novas de sociabilidade com mudanças enormes no mundo do trabalho, cada vez mais escasso diante do intenso desenvolvimento de processos de automação e de inteligência artificial, e no mundo da política, cada vez mais atrelada aos interesses econômicos de conglomerados cada vez mais poderosos. O cenário atual, colonizado por uma racionalidade individualista que idolatra uma ilusória liberdade de escolha, revela uma institucionalidade que falha fragorosamente em cumprir as clássicas promessas da democracia como regime político e como concretização de direitos. É um cenário de retomada do aumento da desigualdade sem o amparo de promessas emancipatórias. Assume-se o vale-tudo e a exclusão como processos naturais e inexoráveis. O serviço público mais visível é o braço punitivo, a repressão, que ilusoriamente é tida como voltada à proteção dos indivíduos que se enxergam como empreendedores de si mesmos e únicos credores dos méritos pelas suas frágeis condições econômicas. O sistema punitivo revela-se mais e mais seletivo e mira com furor os pobres, os migrantes, os defensores de direitos humanos e os movimentos políticos que buscam construir alternativas a este discurso único.

O grande problema é as pessoas comprarem a ideia de que não há alternativas, de que a desregulação da economia, a precarização do trabalho, e o abandono dos desempregados ou miseráveis (mesmo com trabalho) a um cenário ausente de serviços públicos sociais, ou mesmo o extermínio maciço em guerras e conflitos civis são consequências factuais e científicas do processo de inovação tecnológica. Ledo engano. São escolhas políticas vendidas como realidade incontornável. A maior prova de que, apesar de tudo, a política está viva e pulsante, é o enorme esforço e investimento que fazem para dizer que a política acabou ou que é coisa de “gente que não presta”. O que falta hoje para a democracia é uma reorganização das forças políticas comprometidas com a diminuição da desigualdade, falta o engajamento de todos aqueles que buscam uma sociedade melhor, que jamais virá por meio de uma distopia individualista e ilusória. É preciso reconstruir o espaço político tanto no fortalecimento dos espaços democráticos existentes como na busca de novas vias de engajamento solidário.

A política necessária está por ser inventada e creio que na verdade vem sendo. Em momentos como esse é fundamental a reflexão, a discussão, a denúncia dos lobos vestidos em peles de cordeiro. Em momentos assim é forte a tentação de comprar o velho como novo, de sucumbir ao discurso tão fácil como enganoso e traiçoeiro do fascismo, pois este escolhe um inimigo a ser combatido, rotulado como o bode expiatório de todos os males. O rótulo vai se alargando e alcança cada vez mais grupos da sociedade, vai se instalando confortavelmente na mesma medida em que critérios seguros de igualdade legal e cláusulas pétreas da Constituição vão cedendo ao puro decisionismo de juízes que se arvoram a salvadores da pátria, que invocam incríveis capacidades psíquicas de absorção e medição de clamores vindos das ruas.

Exceção mal resolvida

Quando as garantias e os direitos fundamentais, individuais, sociais e políticos, são relativizados em escala geométrica, como vem ocorrendo paulatinamente, a exceção é a regra para estratos cada vez mais amplos da sociedade. E a exceção no Brasil de hoje se encontra com a exceção mal resolvida do Brasil da ditadura. Os paralelismos entre a atual degradação institucional da frágil e historicamente recente democracia no Brasil com o processo golpista e autoritário de 1964 são inúmeros e espantosos. Novamente temos um judiciário clara e maciçamente mais disposto a servir determinadas forças políticas do que o sentido político da Constituição, que não hesita em violar cláusulas pétreas e em aprovar atos de exceção como se legais fossem. Novamente temos um alinhamento internacional com forte ingerência dos Estados Unidos nos processos de ruptura política na América Latina. Novamente temos processos coordenados de criminalização de lideranças políticas de esquerda ou populares na América Latina. Novamente temos um golpe parlamentar [2] no Brasil. Novamente a educação pública e a Petrobras sofrem ataques que buscam a sua privatização. Novamente elites brancas vão às ruas entoar seus preconceitos e defender o Brasil da desigualdade.

Apoio à ditadura

Entre os jovens que vão às ruas apoiar a ditadura e pedir o governo de militares para “limpar a política”, enaltecendo notórios torturadores ou candidatos à presidência que os defendem, estão muitos para os quais a palavra “ditadura” não tem significado real, é um significante vazio adaptável a frases de efeito e a declarações pretensamente honestas que se prestam a memes de assimilação fácil e imediata. Mas não ignoro que há também jovens e adultos que assumem explicitamente sua visão autoritária, violenta e genocida.

Construção de Estado Democrático de Direito

A decepção com o Estado Democrático é grande, mas é preciso aprender a construir as alternativas de modo democrático e dentro de limites civilizacionais que foram historicamente estabelecidos à custa de muito sangue e sofrimento. É preciso também agir com vigor e celeridade para chamar à responsabilidade os autores de atos fascistas e de intolerância e violência explícitas. É preciso combater a omissão, a covardia e a irresponsável conveniência na inação tanto dos agentes institucionais como das pessoas que presenciam tais atos em buscar responsabilizá-los e denunciá-los. A saída autoritária e a violência não têm nada de novo, embora os atores políticos que as defendam estejam sendo apresentados como “novos”. Reforçar a memória dos que foram atingidos pela ditadura e dos que lutaram contra ela, promover do modo mais público e intenso possível a justiça de transição, falar dela em sala de aula, nos espaços de convivência social, na imprensa, nas pesquisas, nas palestras, nas periferias, nos salões das elites, é um antídoto necessário que temos no presente para desarmar as tentações autoritárias.

Vlado

No caso do Vlado [Valdimir Herzog], foco central desta entrevista, a construção da memória do seu papel de opositor à ditadura, o reconhecimento da sua morte brutal nas mãos do Estado de exceção e a omissão do Estado, perpetuada até os dias atuais, em investigar o fato e em responsabilizar os seus próprios agentes guarda estreita relação com graves e inúmeros fatos do presente: os suicídios fabricados pelo Estado, as falsas versões de fugas, tiroteios e resistências, a ausência de investigações eficazes e de condenações de agentes da repressão estatal (da qual temos hoje o exemplo gritante da execução de Marielle Franco e Anderson Costa e da total ausência de qualquer resposta ou interesse público em investigar tais execuções), a copiosa prática da tortura pelas forças de segurança e a correlata ociosidade da aplicação da lei de tortura contra os seus agentes.

Vou finalizar lembrando que a já mencionada e corajosa sentença prolatada pelo juiz federal Márcio José de Moraes em 1978, declarando a União responsável pela morte de Herzog, decisão que foi desrespeitada e descumprida, restou citada em polêmica e recente declaração dada pelo atual presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, cujo avô, Carlos Thompson Flores foi nomeado ministro do STF pela ditadura em 1968. Em agosto de 2017, à época da remessa ao TRF4 do processo no qual o juiz Sergio Moro condenou o ex-presidente Lula por corrupção passiva e lavagem de dinheiro no caso do tríplex do Guarujá, o desembargador Thompson Flores afirmou que a sentença de Moro era “histórica” e “irretocável”, e a comparou à sentença dada pelo juiz Márcio José de Moraes em 1978.

Não sei o que pensa sobre tal declaração do hoje desembargador do Tribunal Regional Federal da 3a Região Márcio José de Moraes, mas eu a considero um enorme desrespeito com a memória de Vladimir Herzog e com a decisão justa, legal, corajosa e correta dada em 1978. Já tive a oportunidade de afirmar, e em muito boa companhia de uma centena de outros juristas [3], que a sentença de Moro é uma peça de exceção voltada à criminalização de uma das maiores lideranças populares da história brasileira, sem que haja provas suficientes dos delitos alegados, com múltiplas arbitrariedades e aberrações jurídicas. Acredito que essa comparação feita pelo presidente do TRF4 entre a sentença de Moro e a de Márcio Moraes não foi inocente. Ela nos mostra que a memória do arbítrio pode ser cooptada ou desvalorizada no objetivo de justificar ou encobrir novos arbítrios e medidas de exceção.

No cenário em que vivemos, a memória das nossas lutas de resistência, pela ampliação de direitos, pelo combate da desigualdade social, pela necessária justiça e reconhecimento aos que se opuseram dos mais diversos meios à ditadura e ao projeto de desigualdade e violência que ela representou, é um patrimônio valioso a ser cultivado e protegido. A condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no Caso Herzog representa uma importante vitória nessa direção.

Vlado, presente! Hoje e sempre!

Conheça a história de Vlado no vídeo abaixo:

Notas:

[1] Sobre os motivos da minha discordância ao Acórdão do STF na ADPF 153, ver meu livro: SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. Justiça de Transição – da ditadura civil-militar ao debate justransicional – direito à memória e à verdade e os caminhos da reparação e da anistia no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015 (em especial os capítulos 3 e 10). (Nota do entrevistado)

[2] Em recente artigo argumento que o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, ocorrido em 2016, pode ser chamado de golpe parlamentar, e identifico relações entre a reticência do judiciário brasileiro em promover a justiça de transição no país e a sua participação no processo de ruptura que ora vivenciamos. Ver: SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. Justiça de Transição e Usos Políticos do Poder Judiciário no Brasil em 2016: um Golpe de Estado Institucional?. REVISTA DIREITO E PRÁXIS, v. AOP, p. 1-29, 2017. Disponível aqui. (Nota do entrevistado)

[3] SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. Condenação sem Provas e Juízo de Exceção como Ameaça à Democracia – uma nódoa a ser superada. In: Carol Proner; Gisele Cittadino; Gisele Ricobom; João Ricardo Dornelles. (Org.). Comentários a uma Sentença Anunciada – o processo Lula. 1ed. Bauru: Cana 6, 2017, v. , p. 237-246. O livro todo está disponível aqui. (Nota do entrevistado)

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