por Sabrina Magalhães, em RioOnWatch
Na quinta-feira, 5 de Julho, foi organizada uma mesa redonda na PUC-Rio intitulada Um Pacto pela Vida – Como construí-lo? O debate tratou das medidas necessárias para a manutenção da segurança pública no Rio de Janeiro e a diminuição do número de homicídios. A mesa era extensa e bastante diversa, contando com nove participantes de diferentes setores. Todo o evento foi mediado por Marcelo Burgos, professor do Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio.
O primeiro palestrante foi Adriano de Araújo, coordenador do Fórum Grita Baixada, e seu maior questionamento foi: “Será que realmente todas as vidas importam? As vidas dos jovens negros de fato importam? Existe um consenso nisso?” Como morador da Baixada Fluminense, Adriano afirma que cresceu ouvindo a expressão “grupo de extermínio”, anterior a milícia, o que prova a péssima situação de segurança em que a Baixada sempre se encontrou.
Segundo Adriano, muitos esforços e audiências públicas foram realizados para procurar uma forma adequada de combater a insegurança da região, entretanto, os gestores públicos não se posicionam em resposta. Portanto, para ele a ideia de um “pacto pela vida” em que a sociedade em geral não esteja mobilizada não surtirá efeitos reais. “A gente não vê a própria sociedade mobilizada de fato com a situação. O que a gente vê é uma breve mobilização quando aparece na mídia morte de um jovem ou uma jovem”, ele afirmou.
Adriano relatou que os especialistas em segurança pública, há muitas décadas vêm construindo todo um arcabouço de projetos e propostas que podem contribuir para a redução do número de homicídios, e que organizações da sociedade civil apresentam uma agenda de medidas concretas para a redução de homicídios. Porém, ele enfatizou que a agenda de nada será útil se agentes públicos não se comprometerem com o projeto. Adriano concluiu que sem comprometimento, o Estado continuará aplicando medidas paliativas para a redução do crime, como a intervenção federal.
O segundo palestrante foi Edson Diniz, coordenador da Redes da Maré. Edson questionou: “Qual é o futuro? Nos últimos 200 anos a gente sempre acreditou que o futuro seria melhor. Hoje, a nossa encruzilhada é tal que a gente não tem mais essa perspectiva”. Essa é a nova racionalidade. Edson criticou a nova lógica neoliberal impregnada na sociedade, que traz a ideia de que a capacidade de compra de um indivíduo está relacionada ao valor do mesmo. Ele exemplificou que em uma escola do primário, ao primeiro ano está sendo oferecida uma aula de empreendedorismo, como se a capacidade de inovar para fazer dinheiro fosse um valor humano necessário ao cidadão. Edson refletiu que essa mentalidade faz crer que as vidas das pessoas que podem contribuir mais com a lógica do mercado, valeriam mais perante a sociedade. Ele concluiu que é importante negar a ideia de que a vida tenha um preço. “O Ancelmo Gois semana passada colocou que Ipanema desde 2016/2017 não tem um homicídio. [Ancelmo comparou] Queimados tem 44″, relatou Edson. “Quer dizer, uma vida em Ipanema não pode valer mais que uma vida em Queimados.”
A próxima ao microfone foi Eliane Pereira, promotora de justiça e assessora de direitos humanos e minorias do Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ). Eliane apresentou o que o MPRJ tem feito desde a criação da Assessoria de Direitos Humanos e de Minorias. Ela relatou que a Assessoria atua averiguando se o Ministério cumpre ou não com as suas funções constitucionais. Eliane disse que a metodologia empregada foi de uma auto avaliação, ou seja, membros do MPRJ fizeram uma avaliação e a partir disso foi feito um diagnóstico que constatou que haviam falhas no controle externo da atividade policial; problemas no ambiente de privações de liberdade, cárcere e unidades socioeducativas; e carência da atuação do MPRJ em relação a populações mais vulneráveis, como minorias. Segundo Eliane, a partir dessa análise, foi pensada a estrutura da Assessoria, e com a Assessoria estruturada, buscou-se um trabalho de reflexão, ocupação e atuação nos espaços mais precários do Estado. De acordo com ela, é preciso ser muito racional e entender a realidade em que vivem as populações em diferentes zonas da cidade para poder atuar de maneira justa a todos. “Não tem como falar de um pacto com a vida sem a perspectiva de que um jovem negro tem duas vezes e meia mais chance de morrer do que um jovem branco”, disse ela. Eliane afirmou que o Ministério Público tem se empenhado em avaliar as evidências e se envolver em diálogos com a população para entender qual é o seu papel.
Após Eliane, Eufrásia Maria das Virgens, defensora pública que atua na Coordenadoria de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, foi ao microfone. Eufrásia focou seu discurso no alto número de mortes de adolescentes e crianças no Estado do Rio de Janeiro. Ela relembrou a morte do menino Benjamin, de um ano e sete meses, durante uma operação policial no Complexo do Alemão. Ela contou que em homagem a Benjamim e à Vereadora Marielle Franco, foi realizada uma Assembleia do Conselho Estadual de Defesa da Criança, em 28 de março. Eufrásia relata que na Assembleia, os pais do menino foram escutados, e a irmã de cinco anos de Benjamin também estava presente. A menina, que se salvou dos tiros na comunidade porque conseguiu se esconder em uma farmácia, perguntou a ela se Marielle “foi a moça que morreu de tiro?”, e que quando ela respondeu que sim, a menina perguntou: “Foi ela que tinha ido comprar o vestido?” O que fez Eufrásia refletir sobre a realidade em que vivem essas crianças, nas quais gente morrendo “de tiro” já é tão normalizado. Eufrásia informou que para combater essa triste realidade, em maio de 2018, foi inaugurado o Comitê de Prevenção a Homicídios de Adolescentes do Estado, contando com 22 instituições.
O próximo palestrante foi Itamar Silva, coordenador do iBASE. Itamar, nascido no Santa Marta e formado cidadão através da convivência com a comunidade, relata que está de “saco cheio” de toda a violência e mortes nas favelas. “Eu escuto sempre que a educação é a saída. Mas quem é que defende educação pública de qualidade para poder dar condição a essas crianças e condição de disputar uma cidadania plena nessa cidade? Muito pelo contrário, a gente vai perceber todo um jogo de uma parte significativa da sociedade que quer proteger os seus privilégios contra um direito que deveria ser para todos”. Além disso, Itamar mencionou a morte brutal de Marcos Vinícius para demonstrar que a população não consegue se mobilizar de fato para proteger uma vida. De acordo com ele, hoje em dia cada um se protege como pode, sendo uma escola construindo muros cada vez mais altos, ou espaços subterrâneos. Para Itamar, surge o questionamento: o que falta para que as pessoas realmente se mobilizem para mudar o cenário de violência do Rio? “Eu sou contra a violência, por princípio”, afirmou Itamar, “mas acho que alguma atitude nós vamos ter que ter para poder rasgar essa cortina, esse véu. A gente vê através desse véu mas fica protegido atrás dele”, disse ele, concluindo que se a população não compreende verdadeiramente o que é a violência, é impossível promover a mobilização necessária para tomar medidas eficientes.
A próxima ao microfone foi Nísia Trindade, presidente da Fiocruz. Nísia trouxe a perspectiva da violência como uma questão de saúde. Ela afirmou que a desestruturação da esfera pública está fortemente ligada ao espalhamento de doenças como Sarampo e Poliomielite.
De acordo com Nísia, a Fiocruz tem um centro de estudos sobre violência e saúde. Ela disse que há um compromisso institucional, e que a instituição tem um congresso interno a cada gestão que reúne representações de dez estados do Brasil, onde se definiram diretrizes voltadas para a questão da violência. Ela também relatou que a própria Organização Mundial de Saúde, em 1996, reconheceu a violência como um problema de saúde.
Após o tempo de fala de Nísia, quem discursou foi Sílvia Ramos, coordenadora do Observatório da Intervenção – CESEC/UCAM. Sílvia foi extremamente prática em seus argumentos, propondo uma ideia: “Três semanas atrás saiu o Atlas da Violência dizendo que Queimados é o lugar com maior número de homicídios no Brasil. Aí em vez de falar ‘viu como o Rio é horrível? Viu como a intervenção tá funcionando?’ Mas se você é um interventor de verdade, no dia seguinte muda o seu gabinete pra Queimados e fala ‘vou derrubar essa taxa de homicídio em três meses. Cheguem lá em Queimados e comecem mudando todo mundo do batalhão, tira todo mundo que aí acabam os esquemas. Queimados é pequenininho, dá pra reduzir os índices para menos de um terço”. De acordo com a palestrante, violência tem solução. Segundo ela, muitos, assim como Brizola, ex-governador do Rio, apostam na educação, saúde e em outras medidas de longo-prazo. Entretanto, para ela a alta taxa de homicídios é um problema que demanda uma ação rápida e efetiva, como medidas de segurança pública, juntamente a medidas de longo-prazo. “Se você articular várias ações na área de segurança pública, despenca o homicídio”, afirmou Nísia.
A próxima palestrante foi Victoria Sulocki, pesquisadora do Núcleo de Direitos Humanos do Departamento de Direito da PUC-Rio. Victoria afirmou: “A ideia de como construir um pacto pela vida, na verdade tem que voltar ao passado pra desconstruir uma marca do imaginário social brasileiro que se chama escravidão. O Brasil é um país escravocrata”. Segundo Victoria, enquanto esse imaginário escravocrata persistir, as políticas públicas não serão iguais para todos. A pesquisadora disse que olhando para a história da própria Polícia Militar, podemos ver que ela veio da Guarda Real Portuguesa, que era responsável por perseguir os escravos foragidos nos quilombos, e que a Polícia Civil, formada no século XX, também passa a assumir uma postura militarizada e só nos anos 1930 que manifestações culturais da cultura negra passam a ser legalizadas. “Jogar capoeira na rua era proibido. Você ia preso”, disse ela. Victoria conclui que apesar das mudanças, a mentalidade escravocrata permanece, e para construir um real pacto pela vida é necessário desconstruir toda essa mentalidade histórica da população brasileira.
O último palestrante foi André Lima, historiador e morador de Manguinhos. André contou cenas de abusos policiais em sua vizinhança, e também na sua própria casa que foi invadida por policiais. Também contou do seu sobrinho, que jogava futebol quando começou um tiroteio e quando saiu correndo, policiais o levaram para a delegacia e o acusaram falsamente de tráfico de drogas. Para André, um pacto pela vida precisa ser um resgate da democracia, em que situações humilhantes como essas não voltem a acontecer. “Defender a democracia significa defender eleições limpas, e defender uma bandeira na qual possamos chamar os candidatos e mostrar o que nós precisamos que seja feito na área de segurança pública. Comprometer os partidos pra depois conseguir fiscalizar se eles fizeram o prometido”, afirmou André.
Após a fala de todos os palestrantes, as diferentes perspectivas sobre o pacto pela vida foram questionadas e incrementadas com perguntas da plateia. O espaço onde foi organizado o evento ficou lotado até o final, com a presença de alunos da PUC, professores, militantes e representantes de associações de moradores. A participação expressiva da sociedade civil em eventos como esse é de extrema importância para a real mobilização e promoção de medidas eficientes de segurança pública no Estado do Rio de Janeiro.