Aníbal Quijano e a crítica latino-americana à colonialidade do poder

Por Erick Kayser, em GGN / Servindi

No último dia de maio deste ano, faleceu em Lima, aos noventa anos de idade, o sociólogo Aníbal Quijano. Considerado um dos fundadores da “sociologia crítica” no Peru, seu trabalho ganharia relevância para além de suas fronteiras nacionais, sendo um dos mais significativos e influentes intelectuais latino-americanos da segunda metade do século XX. Suas investigações abarcam um intenso trabalho intelectual e político, marcados pela forma com que soube aliar a erudição de percorrer diversas correntes de pensamento da América Latina e do mundo, sem abdicar de coerência e um posicionamento crítico.

São inúmeros os aspectos do vasto trabalho intelectual de Quijano que merecem ser destacados, longe aqui de ter a pretensão de esgotá-los, mas apenas apontar alguns elementos que julgo significativos para lhe prestar um modesto tributo e estimular, para quem ainda não teve oportunidade, a leitura de suas obras. No âmbito do marxismo, por exemplo, ele foi um dos principais divulgadores e intérprete do também peruano José Carlos Mariátegui. Quijano contribuiria decisivamente para colocar em sua devida evidência as contribuições de um dos primeiros intelectuais a elaborar um pensamento marxista originalmente latino-americano, retirando Mariátegui, prematuramente falecido em 1930, da longa penumbra e ostracismo que o estalinismo e sua ortodoxia o relegaram.

Possivelmente a contribuição teórica de Quijano mais conhecida do grande público é o seu conceito de “colonialidade do poder”. Resumidamente, parte da constatação que a modernidade capitalista possui sua gênese na conquista colonial da América, que moldaria profundamente o sistema-mundo por ele engendrado. Não apenas pelos aspectos econômicos derivados do colonialismo, mas por introduzir em seu modelo de poder a classificação social da população mundial a partir da ideia de raça, em seus eixos fundamentais. Raça é uma construção mental que condensa a experiência básica da dominação colonial, atravessando, desde então, as dimensões mais importantes do poder mundial, inclusive sua racionalidade específica, o eurocentrismo. Mas, mesmo tendo uma origem e um caráter colonial, provou ser mais duradouro e estável do que o colonialismo, em cuja matriz foi forjado. Isto implica, consequentemente, num elemento de “colonialidade” no modelo de poder hegemônico atualmente em escala mundial.

A ideia de raça, na América, foi um modo de atribuir legitimidade às relações de dominação impostas pela conquista, como o uso de trabalho escravo. Inaugurou-se uma nova maneira de legitimar antigas noções e práticas de relações entre dominados e dominantes. Com a expansão do colonialismo europeu pelo mundo, se conduziu à elaboração da perspectiva eurocêntrica do conhecimento e, em decorrência, à elaboração teórica de raça como naturalização dessas relações coloniais de dominação entre europeus e não-europeus.

Por essa lógica, povos conquistados e dominados foram colocados numa posição de inferioridade naturalizada, em consequência, Quijano aponta que a raça tornou-se o primeiro critério fundamental para a distribuição da população mundial nas características, lugares e papéis da estrutura de poder. Esta colonialidade desenvolveu-se simultaneamente a uma nova e singular estrutura de relações de produção na experiência histórica do mundo: o capitalismo. Ainda que respondam a dinâmicas próprias, raça e classe, desta forma, apresentam-se de forma imbricada. As novas identidades historicamente produzidas a partir da ideia de raça foram associadas à natureza dos papéis e dos lugares na nova estrutura global de controle do trabalho. Assim, esses dois elementos, raça e divisão do trabalho, estruturalmente associadas, viriam a reforçarem-se mutuamente, apesar de que nenhum dos dois fosse necessariamente dependente um do outro, para sua existência ou evolução. Cada forma de controle do trabalho estave articulada com uma raça específica.

Com a associação entre dois fenômenos – etnocentrismo colonial e classificação racial universal – explica-se, parcialmente, o sentimento “natural” de superioridade dos europeus em relação aos outros povos do mundo. Seria através das lentes do eurocentrismo que os senhores brancos latino-americanos, donos do poder político e de escravos, tinham interesses antagônicos aos dos trabalhadores que constituíam a imensa maioria da população dos novos estados. A dependência dos capitalistas senhoriais desses países é resultado da colonialidade do seu poder, que os levava, de forma distorcida, a perceber seus interesses sociais como sendo idênticos aos dos brancos dominantes na Europa e nos Estados Unidos.

Os problemas relacionados a identidade latino-americana foram temas correntes na obra de Quijano, onde mais do que uma denúncia e um diagnóstico da situação, buscava também apontar para um novo horizonte de sentido histórico e a necessidade da “descolonialidade do poder”. Assim buscou delinear o dualismo fraturado da identidade latino-americana: de um lado seu desencontro consigo mesma, provocado pelo eurocentrismo, por outro, sua fertilidade potencialmente subversiva presente em aspectos nem sempre evidentes no campo estético, no cotidiano e, por certo no político.

Quijano, partindo de uma reorganização da história de América e da articulação do padrão colonial de poder, delineou como o eurocentrismo, entendido como um modo de controle da subjetividade mundial, produziu um empobrecimento do imaginário histórico e político, que revelou-se crucial para as derrotas dos povos iniciadas na década de 1960. Finalmente, levantou questões envolvendo as lutas contemporâneas das gentes “indigenizadas”, com seu heterogêneo legado, proveniente tanto de levantes anticoloniais na América, como das experiências subversivas mundiais do século XX. Estas lutas desenvolvem perspectivas de um novo horizonte histórico, abrindo a possibilidade de uma efetiva descolonialidade do poder. Como sentenciaria Quijano, “está na hora de aprender a liberar-nos do espelho eurocêntrico onde nossa imagem está sempre, necessariamente, distorcida. Já é hora, finalmente, de deixar de ser o que não somos.”

Foto: ElAntro

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