A legitimidade das eleições, um dos pilares de nossa democracia, tem sido questionada com uma facilidade bizarra.
Neste domingo (16), foi Jair Bolsonaro, mantendo uma cruzada contra seus moinho de vento, as urnas eletrônicas afirmou: ”a grande preocupação não é perder no voto, é perder na fraude. Então, essa possibilidade de fraude no segundo turno, talvez até no primeiro, é concreta”. Já, em 9 de setembro, foi Eduardo Villas Bôas, comandante do Exército, que afirmou que o atentado contra Jair Bolsonaro pode levar o futuro governo a ter dificuldade em garantir estabilidade e governabilidade, ”podendo até mesmo ter sua legitimidade questionada”, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo. Extrapolou, dessa forma, as funções constitucionais das próprias Forças Armadas, que não incluem opinar sobre a validade de eleições, mas atender a demandas dos Três Poderes.
Imaginar que o sistema de Justiça está viciado para devolver o PT ao poder é ignorar a Operação Lava Jato, as decisões do Supremo Tribunal Federal e, principalmente, as decisões do Tribunal Superior Eleitoral – que não apenas rejeitou a candidatura de Lula por 6 a 1, como também passou por cima de sua jurisprudência para possibilitar que isso ocorresse antes do início do horário eleitoral em rádio e TV, impedindo o PT de mostrá-lo como candidato à Presidência. Por que o TSE, que controla as eleições, votaria em peso contra o PT para, depois, permitir que as urnas fossem viciadas a favor do partido? Afinal, uma fraude nessa escala, avisada com tanta antecedência, demandaria a cumplicidade de muitas instituições e pessoas.
Isso não sobrevive a um minuto de reflexão solitária sem grupos de WhatsApp dizendo o que é verdade e o que é mentira. Como aqui já disse, diante dessa sensação de vazio deixada pela aparente falta de sentido de uma realidade política que transforma em estagiários os roteiristas de Game of Thrones, muitos buscam preencher a lacuna de explicação com qualquer informação que lhe faça sentido. Coletam dados e montam suas próprias teorias ou compram de terceiros, que as criaram por ignorância ou má fé. Se invadem até meu computador por que não urna? Mesmo que sejam elementos de realidades diferentes, apesar de ambos terem uma CPU.
Imagine um popular técnico de futebol do time líder do campeonato que, antes de entrar em campo para disputar as finais, dispara sucessivas declarações, em entrevistas e vídeos na internet, dizendo que a arbitragem não é confiável, sem apresentar provas. E se o seu time não se sagrar campeão, o torneio terá sido uma grande marmelada. Imagine a declaração ser repetida por todos os jogadores, comissão técnica, diretoria a ponto de cair na boca dos torcedores, que passam a distribuir a tese em redes sociais e aplicativos de mensagens. Ressalte-se que a temperatura é quente porque o time rival, que teve o seu técnico expulso e, por isso, tem dado instruções de fora do campo, também ajudou a aprofundar a ultrapolarização e a deflagrar os ânimos.
Tendo em vista que o técnico que acredita em conspiração considera que seu time é o melhor e ouve isso de todos aonde quer que vá, nenhum resultado, independentemente da performance em campo, será aceito que não for a vitória. Mesmo se a equipe não tiver jogado bem e, portanto, não merecido a taça. Dependendo do tamanho dos protestos, o não-reconhecimento da derrota pode levar à criação de uma liga paralela com outros clubes também insatisfeitos com a federação por outros motivos. Ou descambar para atos de violência entre rivais na rua.
Democracia pressupõe possibilidade de alternância de poder. Não a alternância em si, mas a existência de condições reais dele trocar de mãos através do voto popular. E isso, apesar dos inúmeros defeitos da democracia brasileira, tem ocorrido de fato. Quem não considera que a passagem da faixa presidencial entre Fernando Henrique e Lula, em 2003, é prova dessa alternância pacífica, pois defende que PT e PSDB são a mesma coisa, esta tendo o mesmo tipo de problema que os brasileiros que tentam convencer a Embaixada da Alemanha no Brasil que o nazismo não era um movimento de extrema direita.
Qualquer candidato que afirme que, se não ganhar é porque houve fraude, plantando dúvidas sem apresentar provas para possibilitar uma investigação pública, abre um precedente perigoso. Não apenas da legitimidade ser questionada por qualquer derrotado em qualquer eleição, mas também da autoridade de governantes eleitos não serem reconhecidas. Por que devo seguir as regras aprovadas por um governo que considero como ilegítimo?
Muitos chamam o governo Temer de ilegítimo como forma de crítica à forma como ocorreu o processo de impeachment de Dilma. Mas esse grupo que usa a expressão como palavra de ordem não se organizou para uma campanha de sonegação de impostos, para minar o Estado, por exemplo. Até porque é mais difícil aos mais pobres sonegar impostos, muitos dos quais embutidos no consumo, do que aos mais ricos. Os dados mostram, aliás, que grandes devedores de impostos estão entre empresários e políticos que apoiaram a chegada de Temer ao poder.
Um quadro de quebra institucional derivado da acusação de fraude eleitoral no ambiente ultrapolarizado que sairá das urnas no final de outubro pode causar um impacto muito maior do que a ação movida pelo candidato derrotado nas eleições de 2014, Aécio Neves, que afirmou ter questionado a vitória de Dilma apenas para “encher o saco do PT”. Estamos falando do respeito a elementos que nos mantém minimamente coesos como uma sociedade e um país. Há responsabilidade de pessoas públicas, consideradas exemplos aos demais, diante disso. E é necessário que elas assumam essa responsabilidade.
Questionar, antecipadamente e sem elementos que corroborem, a lisura das escolhas da população é um ataque ao processo eleitoral e, portanto, à própria democracia. De seus sete mandatos, Jair Bolsonaro foi eleito quatro vezes através de urna eletrônica. O sistema, convenientemente, funciona quando ele ganha e é manipulado quando isso não acontece? No futebol de rua, quem ameaça a levar a bola embora se perder uma partida é criança mimada. Na política, é chamado de mito?
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Foto: Luis Moura/Estadão