“Brasil é, de longe, o país mais perigoso para os defensores dos direitos indígenas”

Informe da ONU sobre direitos dos povos tradicionais no mundo denuncia que país, ao lado de Colômbia, México e Filipinas representam 80% das mortes de defensores indígenas

Por Lola Hierro, no El País Brasil

“Infelizmente, não posso, não posso nomear nenhum país que esteja dando proteção real aos povos indígenas”. Não se trata de uma opinião qualquer. Vem dos lábios de Victoria Tauli-Corpuz, a relatora especial da ONU para os direitos dos povos indígenas. Ela antecipou suas impressões durante uma entrevista no Fórum de Florestas de Oslo, realizado em junho. Agora ela as colocou por escrito e divulgou nas páginas de seu relatório anual sobre a situação desses povos. Sob o título Eles Deveriam ter Sabido Antes, a relatora denuncia que Governos e empresas em todo o mundo estão tornando cada vez mais difícil e letal a proteção das terras e florestas pelas comunidades indígenas. Elas possuem tradicionalmente mais de 50% do território mundial, mas só têm direitos legalmente reconhecidos em 10%, algo que dá liberdade aos governos para declará-los ilegais em terras que têm sido seus lares há gerações.

Tauli-Corpuz divulga em seu relatório os dados da organização Front Line Defenders, que argumenta que dos 312 defensores dos direitos humanos assassinados em 2017, 67% eram indígenas que protegiam suas terras ou direitos, quase sempre contra projetos do setor privado. Destes, 80% ocorreram em quatro países: Brasil, Colômbia, México e Filipinas, embora a situação do Equador, Guatemala, Honduras, Índia, Quênia e Peru também receba destaque. A ONG britânica Global Witness, contabilizou pelo menos 207 assassinatos em seu relatório de 2017, apresentado em julho e que a relatora também menciona.

De acordo com o relatório, o Brasil é de longe o país mais perigoso do mundo para os defensores dos direitos humanos dos indígenas. Tauli-Corpuz conta que, durante a visita ao País, em 2016, membros de uma comunidade no Mato Grosso do Sul mostraram feridas de bala em seus corpos e levaram a equipe aos lugares onde membros de suas famílias foram mortos. Eles também relataram incidentes de detenções arbitrárias, tortura e criminalização de seus líderes. O governo e as organizações da sociedade civil que trabalham com os povos indígenas, aponta Tauli-Corpuz, fizeram relatos “perturbadores” de um padrão regular de ameaças e intimidação por parte de atores estatais e privados.

“Reconhecer a importância de proteger os defensores da terra e do meio ambiente é um tema que aparece com frequência no Fórum, mas nas sessões de que participei não ouvi nada sobre a violência e a intimidação sofridas rotineiramente por esses grupos por parte empresas que querem explorar seus territórios”, diz Patrick Alley, cofundador da Global Witness, durante o encontro em Oslo. Alley fez a declaração durante uma das sessões paralelas do Fórum na qual era o moderador. Sob o título Abordando as Causas dos Ataques aos Defensores do Meio Ambiente e dos Indígenas, o pesquisador apresenta quatro pessoas que sofreram em sua própria carne a perda de um ente querido de forma violenta por sua militância.

Entre eles, Claudelice da Silva, do Estado do Pará, que é o lugar no mundo onde ocorre a maioria dos crimes desse tipo. “Sempre defendi a floresta, mas me tornei mais ativista porque meu irmão foi morto com sua companheira. Eles os mataram como uma mensagem para que aqueles que continuassem com a luta soubessem que teriam o mesmo destino”, exclama Silva diante da plateia. Refere-se a José Claudio Ribeiro da Silva e sua mulher, Maria do Espírito Santo, executados em 2011 por vários tiros de espingarda.

Também dá seu depoimento Julio César López, coordenador da Organização dos Povos Indígenas da Amazônia colombiana. O líder comunitário explica que a dissidência das FARC está na região e pretende continuar operando nesses territórios, mas também existem outros atores armados que protegem os interesses dos narcotraficantes. E os povos indígenas estão no meio dessa luta, que lhes causa “medo” e “incerteza”.

Para Tauli-Corpuz, o problema é que todo o desenvolvimento para o qual o mundo se adaptou é um modelo que continuamente extrai recursos, e boa parte deles é encontrada principalmente em terras indígenas. “Tanto faz se falamos de ouro, lítio, cobalto ou madeira: se há estoques, lá vão atrás deles. Os fazendeiros de cultivos extensivos querem expandir suas plantações e vão lá e tomam o que querem, mesmo que pertençam aos povos indígenas. Essa é a foto que nós temos do mundo de hoje”, reconhece a este jornal. “As empresas são privilegiadas em razão dos interesses econômicos e comerciais que estão por trás delas”, denuncia, referindo-se à expansão dos projetos de desenvolvimento de infraestrutura, agricultura e mineração em terras indígenas sem o consentimento prévio dos legítimos donos.

Essa situação tem dado impulso ao aumento drástico da violência e do assédio legal contra os povos indígenas pelo setor privado, que atua em cumplicidade com os governos. Assédio por parte daqueles que primeiro deveriam protegê-los, diz ela em seu relatório, no qual inclui dezenas de exemplos (nove em países latino-americanos, quatro na África e sete na Ásia) de ataques físicos ou com base em leis perpetrados em rincões em todo o mundo. É apenas uma seleção, diz ela, porque “centenas” chegam a seus ouvidos.

“Corporações e políticos corruptos conspiram com frequência para outorgar concessões e contratos. Esta corrupção impede que as comunidades responsabilizem seus agressores, ou que elas possam acessar os canais legais e democráticos que, pelo contrário, deveriam estar abertos para elas. Os perpetradores da violência são muitas vezes da polícia e do Exército”, diz Alley. O pesquisador lembra ainda que os assassinatos são apenas a ponta do iceberg: “Os defensores do meio ambiente enfrentam extrema violência física, intimidação, criminalização … E as mulheres são particularmente afetadas pela disseminação da violência sexual”.

O modus operandi
Esses assassinatos quase sempre ocorrem no contexto de ameaças contínuas contra comunidades inteiras. Primeiro, com campanhas de difamação e discursos de ódio que apresentam os povos indígenas como “obstáculos ao desenvolvimento”, ou, no pior dos casos, como “terroristas” ou “bandidos”, ressalta o relatório de Tauli-Corpuz. Em seguida surgem mandados de prisão com base em acusações falsas, que às vezes são deliberadamente deixadas pendentes para que as comunidades vivam sob uma ameaça perpétua. Quando os líderes indígenas são detidos, muitas vezes permanecem na prisão por anos aguardando julgamento. Nos piores casos, o militarismo, a legislação antiterrorista e os “estados de emergência” são usados para justificar uma crescente violência física.

Victoria Tauli-Corpuz viveu na carne a perseguição. Mulher indígena e líder do povo filipino kankanay igorot, em março o presidente Duterte pediu que fosse incluída em uma lista de 600 terroristas perseguidos pelas autoridades do país, em retaliação por defender os povos da ilha de Mindanao, muitos dos quais deslocados para outras áreas pela crescente militarização de uma zona convulsionada por conflitos com a milícia islâmica que opera no território. Em agosto, seu nome foi retirado da tal lista.

Nesse sentido também se pronuncia Víctor Armando López Illescas, da Aliança Mesoamericana de Povos e Florestas, uma rede dessa região formada por comunidades indígenas que se associaram para o manejo das florestas, água, terras agrícolas, etc. “Há vários exemplos, como o do povo q’eqchi, da Guatemala, que fez um trabalho muito forte para recuperar suas formas de organização e direitos sobre suas terras, mas enfrenta tanto os projetos privados como a criação de áreas protegidas.”

Ele se refere ao polêmico caso do Parque Natural Semuc Champey, joia do ecoturismo no país, criado em terras Q’eqchí e que as comunidades tomaram à força, expulsaram os funcionários e administraram por conta própria durante pouco mais de um ano. “As terras foram tiradas deles para a criação de uma área protegida que hoje é um destino turístico de alto nível no país”, resume López. “Quando essas comunidades decidiram recuperá-las, foram expulsas, catalogadas como invasoras, e atualmente 15 pessoas estão sendo julgadas por vários crimes, como instigação para cometer crimes, usurpação de propriedades estatais … Onde já se viu que uma comunidade de 200 pessoas tenha 50 delas com mandados de captura para serem presas por defenderem seu território?”, protesta, indignado.

Ao mesmo tempo em que os sistemas da Justiça são usados como “armas”contra os povos indígenas, há uma impunidade generalizada para aqueles que cometem atos de violência contra eles. “Alguns meses antes de ser morto, Cláudio me disse que qualquer dia amanheceria com uma bala na cabeça. Ele escrevia cartas a ministros, fez denúncias ao Governo e nunca houve uma investigação do que aconteceu com eles. Ninguém está preso, há impunidade total”, diz Silva em um de seus depoimentos.

Outro caso bem conhecido é o assassinato de Berta Cáceres, indígena hondurenha que obteve o maior reconhecimento por ativistas do meio ambiente por seu trabalho, o Prêmio Goldman Environmental. Ela foi morta em sua casa em 3 de março de 2016, presumivelmente por sua luta para paralisar a construção de uma represa em um rio em seu país, do qual dependem várias comunidades da etnia lenca. Apesar da pressão internacional para a investigação do crime, apesar das evidências reunidas por especialistas e das palavras de uma testemunha ocular, não houve nenhum julgamento.

“O caso de Berta mostra a falha deliberada em proteger as vidas das pessoas que estão defendendo seus recursos naturais, seus povos e, neste caso, seus rios.” Isso é algo crônico em nossos países, estão sendo assassinadas, criminalizadas comunidades inteiras “, diz López. “O que é necessário é um compromisso dos Governos para proteção mínima.”

Os Governos têm de agir
Para López, as demandas mais urgentes são concluir os processos de devolução, demarcação e saneamento das terras indígenas. “Existe uma legislação excelente no papel, mas na prática não é aplicada; pelo contrário, mantém-se um estado de abandono à lei do mais forte”, diz ele. Em segundo lugar, reconhecer e apoiar as formas próprias de jurisdição, organização e administração de terras e florestas que as comunidades possuem. E, terceiro, a coerência em termos de políticas públicas: “que não se estabeleça uma terra protegida e ao mesmo tempo seja promovida a expansão do cultivo da palma (dendezeiros) ou projetos hidrelétricos abusivos”, especifica.

Para César, os indígenas colombianos também são importantes para que recebam medidas de proteção coletiva, e não individuais, como as oferecidas pelo governo colombiano. “O que está sendo feito atualmente é conceder medidas individuais, como aquelas dadas a qualquer cidadão colombiano, o que significa que muitos líderes que têm atuações firmes em territórios indígenas precisam abandonar suas comunidades e suas próprias lutas para se abrigarem nas grandes cidades.”. Lá, eles ficam totalmente isolados e abandonados, e as ações promovidas nas comunidades são interrompidas”, denuncia.

“Eles [os povos indígenas] precisam ter seus direitos respeitados no papel e na prática.” Mesmo nos países onde a lei os contempla, não há garantia de que não serão minados pelos interesses econômicos, que prevalecem. Então, eles precisam de proteção real e implementação real das leis nacionais e internacionais que já existem e que foram votadas e aprovadas por muitos Governos”, recomenda Tauli-Corpuz em Oslo. Entre outras medidas, a relatora pede que os Estados conduzam investigações imediatas e imparciais dos crimes, que obtenham o consentimento livre, prévio e informado dos donos das terras sobre as quais qualquer projeto for realizado e que a legislação atual imponha obrigações às empresas quando houver risco de violações de direitos humanos, e seja revogada toda a legislação que criminalize o modo de vida indígena.

Foto: Ruy Sposati/Cimi.

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