Por Fernanda Vilar, no Buala
Os tempos sombrios vividos no Brasil espelham nossa perplexidade sobre o esmorecimento das notícias perante as fake news (1). A estratégia eleitoral onde uma mentira vira verdade não é exclusa das mídias sociais modernas. Falta-nos saber como devolver a verdade à verdade. Como conjugar a verdade com a construção da memória no fazer da história – especialmente nos casos recentes de incineração (in)voluntária de arquivos em importantes museus do Brasil (2).
Os incêndios do Museu da Língua Portuguesa (São Paulo) em 2015, e mais recentemente, em setembro de 2018, do Museu Nacional do Brasil (Rio de Janeiro), cujo acervo com mais de 20 milhões de arquivos virou cinza, são uma metáfora do que já acontece há anos na sociedade brasileira: o descaso com a cultura e a história do país. No Brasil, as minorias tentam falar, mas suas palavras nada dizem, pois não têm poder. Na década de 80 ocorreu um surto de suicídio de indígenas Guarani Kayowá. Desprovidos do poder da palavra, os indígenas encontraram nesse gesto brutal uma maneira de expressar seu abandono frente aos ataques ruralistas e ao desinteresse de uma nação. Hoje nem palavras nem suicídios chocam a população brasileira, anestesiada com a normalização do assassinato sistemático de sua população negra. Os arquivos dos museus e a voz das minorias, que poderiam se articular para pensar de outra maneira o país, se esvaem aos poucos. Como já dizia o escritor e jornalista Nelson Rodrigues: “subdesenvolvimento não se improvisa: é obra de séculos”.
Acredito que em 2019 tornaremos atual o livro L’Année terrible (3)de Victor Hugo, cujo poema “À qui la faute” (De quem é a culpa?) interpela aquele que incendiou a biblioteca, dizendo ser um crime hediondo cometido contra si próprio, pois pelos livros as gerações podem sair das trevas:
De todo o espírito humano tu fazes fumaça!
Esqueceste que teu libertador,
É o livro? O livro está lá, nas alturas;
Ele luz, porque brilha e ilumina,
Ele destrói o andaime, a guerra e a fome
Ele fala, basta de escravos e de párias […] (4)
Neste período eleitoral, duas das principais figuras políticas brasileiras não dialogam: um por estar preso e destituído de seu poder de fala, outro por recusar o diálogo. O que quer falar não pode, já o outro se esconde, preferindo a estratégia da guerrilha digital em que a sua verdade prevalece sem ser questionada por seus seguidores. Hoje a palavra seguidor adota seu mais cruel sentido, aliada a uma fé que nada questiona, inserida numa dicotomia maquiavélica entre o bem e o mal.
Como já explicava Eliane Brum (5), Jair Bolsonaro ganhou as eleições no momento em que tivemos que explicar o óbvio. O pior é saber que essas explicações não demovem seus seguidores, que veem nele um símbolo mítico – tal qual o Messias de seu nome. Arquivos mostram eleitores de Hitler afirmando que se tratava de um personagem engraçadinho e de pouca paciência e muita intolerância, mas não acreditavam que ele seria capaz de pôr em prática o que dizia. Esperança seria que o famoso livro Ele está de Volta (6)(Er ist wieder da, 2015) do escritor Timur Vermes, pudesse ao menos dissuadir o mais esclarecido dos eleitores ao ilustrar Hitler regressando com suas ideias nos dias de hoje. Sabemos que a história se repete e assim permanecem atuais as teses do livro Sobre o conceito da História, escrito em 1940 por Walter Benjamin, do qual destaco a tese 5: “Pois irrecuperável é cada imagem do passado que se dirige ao presente, sem que esse presente se sinta visado por ela”.
Ao não se abrirem os arquivos da ditadura, ao darem anistia a torturadores, ao não investirem em cultura e frente à indiferença em preservar lugares de memória de minorias, não fazemos o acerto de contas com a história. Dessa maneira, vemos o Brasil a condenar o seu presente ao não fazer seu dever de memória com o passado. O que não foi pensado, questionado e debatido corre o risco de virar um disco riscado, a repetir-se por saltos. Pelas vias do esquecimento e da omissão desencadeiam-se ações simbólicas que afetam a subjetividade individual e de grupos. Se nos últimos quinze anos houve uma pequena, mas significante, ascensão da diversidade na representatividade de minorias em postos de poder e educação, o retrocesso parece querer se instalar novamente. Quando o candidato Jair Bolsonaro declara que “as minorias têm que se calar e se curvar à maioria”(7)estamos a um passo da extinção da democracia por meio de um processo democrático. O caminho da opressão foi traçado há muito tempo na sociedade brasileira, com ataques contra minorias que não podem exercer sua subjetividade e tampouco se verem representadas nas esferas de poder. Eleger um sujeito como esse apenas facilita a estratégia de dominação nunca ultrapassada no Brasil.
Quando a história e o dever de memória não são tratados com o devido interesse, a verdade instala-se facilmente como escolha pessoal. Uma vez acomodadas no discurso do poder, as “verdades” tornam-se impunes; são muitas vezes relevadas e raramente condenadas, apesar de veicularem um discurso de ódio. O ódio foi normalizado e propulsionou um radicalismo onde o “bem” luta contra o “mal”. O mal sendo mais uma vez o diferente, o Outro. Um discurso que não humanize o Outro autoriza a barbárie –vide as reações que vimos no cenário pós-eleitoral (8).
A verdade é uma construção. A memória também. Por isso, há maneiras de manipular as duas. A verdade é constituída por fatos – supostamente verificáveis – mas, ao não termos acesso aos arquivos, esses fatos dependem de memórias. Se as minorias não têm suas vozes ouvidas, e uma vez que seus atos radicais já não têm valor simbólico, o que sobra das lutas? As memórias se transmitem, são apropriadas e são reutilizadas no presente. Por isso uma memória revela mais sobre o presente do que sobre o passado. Nas atuais conjunturas políticas do Brasil, onde verdade e memória se dissociam, o que restará das eleições de 2018?
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(1) O caso de Cambrige Analytica e a campanha de Bolsonaro explicado aqui.
(2) Em dez anos, foram oito instituições culturais que arderam em chamas.
(3) Poema de Victor Hugo, A qui la faute? extraído do livro L’Année Terrible, VIII, 1872.
(4) Tradução minha.
(5) Veja aqui.
(6) O livro também foi transformado em filme.
(7) Declaração do candidato.
(8) Todas as mortes que ocorreram decorrentes do processo eleitoral.
Foto: Futura Press/Folhapress