Pedro Calvi, CDHM
Há 30 anos era criada na Paraíba, a Comissão Pastoral da Terra Nordeste 2. Hoje, no mesmo estado, essa CPT contabiliza 320 assentamentos da reforma agrária onde vivem 17 mil famílias, num total de 98 mil pessoas. Mas, nesse caminho, mulheres e homens trabalhadores rurais foram vítimas de violência, despejos e até assassinatos. Nos últimos anos, 29 foram mortos na Paraíba em conflitos agrários. Essa trajetória de lutas, vitórias e perdas também aconteceu nos outros três estados que formam a CPT Nordeste 2: Alagoas, Rio Grande do Norte e Pernambuco.
Para contar e lembrar essa história, a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados fez, nesta quarta-feira (31), uma audiência pública. São relatos de uma resistência que começou ainda na época do Brasil Colônia.
“Ainda hoje encontramos na região formas de produção do período de colonização, porque foi lá que tudo começou. Os grandes latifúndios, o trabalho escravo e a agricultura voltada só para exportação. E é nessa região cheia de contradições que fazemos nosso trabalho, que começou nos anos 70 e 80, quando ajudamos na retomada dos sindicatos que haviam sido tomados pelos militares. Logo depois, em 1980, a primeira ocupação de terra ainda sob resquícios da ditadura militar. De lá para cá, surgiu o MST e hoje atuamos também junto das populações tradicionais como quilombolas, pescadores artesanais, indígenas, posseiros e pequenos proprietários sem o título de posse”, conta Jose Plácido da Silva Júnior que é coordenador da CPT Nordeste 2 em Pernambuco.
José Plácido destaca que o desafio atual é enfrentar a força do poder privado na fruticultura. “Secularmente temos o poder dos empresários e do outro lado o poderio do Estado, que executa despejo, manda prender trabalhador e financia as empresas que empurram o agronegócio. As transformações não veem do planalto, mas da planície, no trabalho de base”, conclui Plácido.
Ele sugere, ainda, que todos os débitos das usinas da região junto ao estado e à União, sejam arrecadadas em terras para promover a reforma agrária.
Antônio Nilton Bezerra Júnior, coordenador da CPT Nordeste 2 do Rio Grande do Norte, lembra que a instituição surgiu em um momento conturbado, onde camponeses sofriam muita perseguição com os resquícios da ditadura militar.
“Foi na diocese de Mossoró, região oeste do estado, que concentra o maior número de famílias assentadas, que tivemos o primeiro apoio para o nosso trabalho. Uma região até hoje disputada por causa da qualidade da terra e muita água subterrânea. Lá, conseguimos construir um modelo produtivo a partir das comunidades camponesas com a agroecologia e na convivência com o semi árido. Porém, agora essa região, maior produtora de mel de abelha e caprinocultura, corre o risco de desaparecer por causa da atuação das grandes empresas frutíferas, que usam agrotóxicos na produção. Um estudo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte mostra que a incidência de câncer aumentou. Se nos anos 90 houve a luta pela terra, agora é pela permanência e também no zelo pela água também, que corre o risco de ser contaminada justamente por esse modelo de produção”, alerta Antônio Nilton.
“Corre muito sangue naquelas terras”
José Carlos da Silva Lima, que coordena a CPT Nordeste 2 em Alagoas, ressalta que o Nordeste é um espaço de resistência e de luta no país.
“Alagoas era um canavial, onde 80 por cento área era voltada para a produção da cana de açúcar. Terras usadas de forma irregular por propriedades particulares. Lembro que fizemos oficinas para quebrar o medo e, numa delas, uma mãe contou que o filho, criança, voltou para a casa brincando com um braço. E era um braço de gente encontrado no canavial, onde matavam e largavam os corpos dos trabalhadores. Um povo trabalhador silenciado pelo poder. Muitos foram mortos porque optaram pela luta agrária. Os senhores de engenho foram sucedidos pelos usineiros. E no sertão ainda sobrevive o coronelismo. Alagoas é sangrenta, corre muito sangue naquelas terras”, denuncia José Carlos.
29 mil conflitos dos anos 80 até hoje
Para Tânia Maria de Sousa, coordenadora da CPT Nordeste 2 na Paraíba, o trabalho é uma “pastoral de risco”.
“Surgimos num momento muito difícil com a expulsão de posseiros das terras. Hoje somos 10 equipes nos quatro estados para apoiar o povo camponês. São famílias que conquistaram suas terras, com escola, estrada, e produção agroecológica. Temos 40 feiras de agroecológicos em todo o estado. Essas equipes trabalham de acordo com as demandas de cada região. Seja na produção, com mulheres e com juventude camponesa, por exemplo”.
Irmã Jeane Bellini, da Executiva Nacional da CPT, lembra que a Comissão foi criada em 1975 pelos bispos da Amazônia para combaterem a expulsão de famílias de posseiros e o trabalho escravo de nordestinos, que eram levados para lá.
“A CPT é ecumênica e assume a feição de cada região, é a metodologia do trabalho popular, indo ao encontro das comunidades. Não importa a religião, o que conta é querer ajudar quem precisa. Seja os atingidos por barragens ou agricultores sem terra. Procuramos vias de participação popular, não como porta voz, mas como apoio. Também temos um levantamento único no país, com o registro dos conflitos agrários. Foram 29 mil casos de conflitos dos anos 80 até hoje. Também ajudamos na construção de conceitos importantes para a produção de conhecimento. Hoje são quase 20 categorias de pessoas que vivem do campo, quebradeiras de coco, seringueiros e muitos mais”, conta a religiosa.
“Sou filho da CPT, fundador da Comissão junto com leigos, religiosos e bispos. Tenho muito orgulho em ser formado e gestado dentro dessa Comissão. Assim como na Bíblia, a CPT acolhe quem está à margem, os que sofrem e principalmente os deserdados da terra. Acompanhei muitos despejos, violência, mulheres massacradas, trabalhadores assassinados. O meu chão é a luta pela terra”, testemunha o deputado estadual Frei Anastácio (PT/PB).
Para o presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, Luiz Couto (PT/PB), a Comissão Pastoral da Terra tem uma “mística” que fortalece a luta do dia a dia.
“Não podemos perder o sentido da indignação, como a cidadã. Temos que reagir. Temos que acender luzes nesse ambiente de trevas que o país está vivendo e reunir forças para reafirmar nossos compromissos. Essa audiência pública é para homenagear e agradecer a CPT. A reforma agrária foi um trabalho da CPT e dos movimentos sociais e não de cima para baixo. Quem é de luta, não foge. É como naquela música, “Maria, Maria”….
“Mas é preciso ter força
É preciso ter raça
É preciso ter gana sempre
Quem traz no corpo a marca
Maria, Maria
Mistura a dor e a alegria”
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Foto: Fernando Bola.