Ação Popular, uma alternativa ao materialismo histórico marxista e ao individualismo liberal-burguês. Entrevista especial com Fábio Pires Gavião

por Ricardo Machado, em IHU On-Line

A Ação Popular – AP, movimento de esquerda brasileiro fundado em 1962, tornou-se tema de debate recentemente quando veio à tona um texto do ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez, em que ele afirmava que o filósofo e pesquisador Pe. Henrique de Lima Vaz teria negociado um cargo na Capes e no CNPQ em troca do fim do combate armado do movimento. “As alusões contidas no texto carecem de qualquer sustentação do ponto de vista documental ou de simples coerência contextual. Para além, tal autor não tem relevância acadêmica como pesquisador nos debates sobre o período”, afirma o historiador e pesquisador Fábio Pires Gavião, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

Voltemos aos anos 1960 para entender como surgiu o movimento. Segundo a pesquisa de mestrado de Gavião, a AP se lançou no cenário político brasileiro com o objetivo de se distinguir de seus parceiros marxistas, principalmente antes do golpe de 1964. “O documento fundador revela uma relação ambígua com o marxismo. O documento-base sugere também que a AP não queria representar apenas uma esquerda católica, já que não há uma só referência explícita à doutrina social da Igreja, a documentos pontifícios ou a autores humanistas cristãos, nem mesmo a palavra “cristão” aparece no texto”, descreve.

Quanto à figura do Pe. Vaz, Gavião sustenta que ele foi “‘mentor’ intelectual dessa geração de militantes cristãos e católicos”. “Em suma, do ponto de vista de uma filosofia política, o humanismo cristão francês se caracterizou por uma posição de terceira via, recusando o materialismo histórico marxista e o individualismo liberal-burguês”, complementa. Entretanto, o devaneio conspirador que coloca Pe. Vaz como um negociador com a ditadura atesta a indigência intelectual de quem ataca sua memória. “Pe. Henrique de Lima Vaz é, no Brasil, um exemplo entre outros intelectuais ao longo da história que souberam compreender a essência do cristianismo e sua fundamental oposição a todas as formas de injustiça social. Sua obra e sua militância são testemunhos inequívocos da completa falta de coerência de qualquer tentativa de justificação evangélica para qualquer posicionamento político-ideológico de caráter conservador ou reacionário. Infelizmente, diante do atual quadro de analfabetismo funcional e analfabetismo político disseminado em amplos setores populares, grupos políticos puderam ascender ao poder manipulando a religiosidade popular como forma de justificar ideários profundamente anticristãos”, argumenta.

Fábio Pires Gavião é graduado em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Na Unicamp, obteve o título de mestre em História. Atualmente integra o corpo docente da Universidade Metodista de São Paulo, atuando no Núcleo de Formação Cidadã e nos cursos de graduação com disciplinas na área de Humanidades.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como se deu a origem da Ação Popular no Brasil? Qual sua relação com o contexto nacional e internacional da época (Guerra Fria, Relatório Kruschev, divisão do PCB no Brasil etc.)?

Fábio Pires Gavião – A Ação Popular – AP surge oficialmente em 1962, por ocasião de seu congresso de fundação realizado em Salvador. Sua militância foi egressa principalmente de setores politizados dos movimentos de Ação Católica e outros movimentos de apostolado laico, que vinham tomando posições políticas de acordo com a doutrina social da Igreja Católica, inspirados no humanismo cristão francês das décadas de 1930 e 1940.

Podemos sim compreender que o período de “revisionismo” que ocorre a partir do Relatório Kruschev de 1956 , denunciando as mazelas totalitárias do stalinismo, provocou uma reestruturação estratégica e programática no Partido Comunista Soviético e nos demais partidos comunistas em outros países.

Assistimos então ao reforço de uma pluralidade no campo marxista e em suas orientações leninistatrotskistacubana e chinesa. No Brasil, o histórico PCB, fundado em 1922, também adere às novas orientações do comunismo internacional sob a liderança de Kruschev, o que será pivô de uma ruptura em suas fileiras, levada a efeito por um grupo de militantes liderados por Maurício Grabois, resultando na criação do PC do B em 1962. Nesse período de favorecimento de um “revisionismo” das posições estratégicas e programáticas no campo marxista, há o favorecimento à pluralidade do campo progressista ou de esquerda. A atuação da Ação Popular ganhou destaque no movimento estudantil, sobretudo universitário, tendo seus militantes assumido a presidência da UNE entre 1962 e 1964.

Brasil à época

No Brasil, o período do governo de JK e o início dos anos 1960 registraram um forte acirramento do debate sobre os caminhos de superação da crise e do desenvolvimento econômico. O contexto pré-golpe civil-militar de 1964 foi marcado pelo auge do engajamento político organizado ao tempo de nossa primeira experiência democrática (1945-1964) em nome das reformas sociais, sobretudo a reforma agrária, dado o agravamento dos enfrentamentos pela sobrevivência dos trabalhadores do campo.

As universidades, sobretudo as faculdades de Ciências Humanas e Sociais, viveram intensamente esse debate político, produzindo uma geração de lideranças do movimento estudantil que terá influência duradoura tanto no campo acadêmico quanto político até mesmo no período da Nova República.

IHU On-Line – Qual foi o papel dos movimentos católicos de esquerda no surgimento da Ação Popular?

Fábio Pires Gavião – Os movimentos católicos de apostolado laico, entre eles os movimentos de Ação Católica, com destaque para os de juventude, JEC e JUC, vinham tomando posições políticas mais progressistas conforme ocorria o acirramento dos debates políticos acerca das chamadas “reformas de base”.

alta cúpula da hierarquia católica assumiu uma postura mais conservadora naquele contexto, o que levou a uma série de interdições às orientações dos jovens nos movimentos sociais e no movimento estudantil. Não tardou para que as lideranças da JUC percebessem que um movimento de apostolado com relação direta com a hierarquia católica não seria um instrumento adequado para o engajamento político que almejavam, ainda mais levando em consideração que sua atuação se dava em aliança com grupos marxistas nos movimentos sociais do campo e da cidade.

Dessa forma, organizam a Ação Popular – AP, desvinculada da Igreja Católica, ainda que fortemente inspirada no humanismo cristão do período anterior de apostolado laico, e tendo recebido desse seguimento social a maioria de seus militantes.

IHU On-Line – Qual era a orientação filosófica e política da Ação Popular?

Fábio Pires Gavião – Considerando apenas o período anterior ao golpe civil-militar de 1964, e tendo como referência o documento-base de 1963, podemos afirmar que a AP se lançou no campo político nacional buscando se distinguir de seus parceiros marxistas, com os quais formavam uma espécie de “frente única”.

O documento fundador revela uma relação ambígua com o marxismo. O documento-base sugere também que a AP não queria representar apenas uma esquerda católica, já que não há uma só referência explícita à doutrina social da Igreja, a documentos pontifícios ou a autores humanistas cristãos, nem mesmo a palavra “cristão” aparece no texto.

Isto não significa que há uma ruptura com a trajetória imediatamente anterior. Em seus fundamentos filosóficos, o documento-base segue a trilha do “ideal histórico” da JUC, principalmente quando adere às noções do Padre Henrique de Lima Vaz, ele próprio entusiasta da AP e inspirado no filósofo católico francês Emmanuel Mounier.

Contudo, aquilo que no “ideal histórico” da JUC em 1960 era apresentado como uma perspectiva cristã genuína, agora é apresentado como uma perspectiva humanista ampla. É compreensível esta atitude mediante a intenção da AP de apresentar-se como uma organização não confessional e aberta para não católicos ou cristãos.

O documento-base é dividido em 4 partes: 1 – Perspectiva histórica; 2 – Perspectiva filosófica: o homem e a história humana; 3 – O socialismo; 4 – A evolução da realidade brasileira. Logo na introdução os apistas declaram que “a direção de nossa ação não se traça a partir do cálculo prudente das posições do meio-termo”, marcando dessa forma o afastamento em relação aos ocupantes de posições “moderadas” ou de centro.

Naquele contexto de 1963, podemos dizer que “moderados” se referem aos chamados setores progressistas do clero e laicato católicos ou democrata-cristãos, os trabalhistas do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), os nacionalistas moderados de toda cor, ou até o próprio PCB; enfim, a AP queria surgir como uma organização revolucionária e não reformista.

IHU On-Line – Que papel Pe. Henrique de Lima Vaz desempenhou junto à AP? Ele foi um conselheiro espiritual, teórico ou político do movimento?

Fábio Pires Gavião – Não há dúvidas que Pe. Vaz foi o grande “mentor” intelectual dessa geração de militantes cristãos e católicos. Herbert de Souza, primeiro coordenador nacional da AP, afirmou (SOUZA, H. J. No fio da navalha. Rio de Janeiro: Revan, 1996, p. 38) que boa parte do documento-base foi redigido pelo próprio Pe. Vaz.

IHU On-Line – Que tipo de posição filosófica Lima Vaz tinha à época do surgimento da AP? De que maneira os escritos de Lima Vaz inspiraram, teoricamente, a Ação Popular?

Fábio Pires Gavião – Pe. Henrique de Lima Vaz foi um dos grandes jesuítas brasileiros, professor de Filosofia, e à época da organização da AP, era docente na Faculdade de Filosofia da Companhia de Jesus em Nova Friburgo.

Tomando como referência os documentos fundamentais da JUC em 1960 e depois o documento-base da Ação Popular em 1963, ambos certamente redigidos sob influência de Pe. Vaz, podemos identificar claramente a influência de Jacques Maritain, a partir da obra Humanismo Integral, de 1936, o que fica evidente pela adoção da noção de “ideal histórico” por Pe. Vaz e nos documentos da JUC. Também é clara a inspiração de Emmanuel Mounier e sua produção publicada na Revista Esprit a partir de 1932, formulando a noção de Personalismo.

Outros pensadores cristãos como Pe. Lebret e Pierre Teilhard de Chardin eram fortes referências. Em suma, do ponto de vista de uma filosofia política, o humanismo cristão francês se caracterizou por uma posição de terceira via, recusando o materialismo histórico marxista e o individualismo liberal-burguês.

IHU On-Line – O ministro Ricardo Vélez Rodríguez publicou um artigo em que afirma que o Pe. Lima Vaz teria negociado com a ditadura militar para que a AP abandonasse a luta armada em troca de cargos na Capes e CNPQ. Tal publicação gerou um desagravo à memória de Vaz. O senhor conhece o artigo de Rodríguez? Que tem a dizer sobre o texto?

Fábio Pires Gavião – Tomei conhecimento desse texto recentemente, e ao lê-lo, fico em dúvida se podemos afirmar se tratar de um artigo, seja jornalístico ou acadêmico. De fato, as alusões contidas no texto carecem de qualquer sustentação do ponto de vista documental ou de simples coerência contextual. Para além, tal autor não tem relevância acadêmica como pesquisador nos debates sobre o período. A meu ver, o texto não justifica qualquer credibilidade ou atenção a ele dispensada.

IHU On-Line – O que levou ao racha na Ação Popular e ao surgimento da Ação Popular Marxista Leninista – APML?

Fábio Pires Gavião – Do ponto de vista da conjuntura pós-golpe civil-militar de 1964, há uma reorientação de praticamente todas as organizações de esquerda. A adesão ao marxismo pela AP é um processo lento que se completa em 1971, quando a organização muda seu nome para Ação Popular Marxista Leninista – APML. Devemos mencionar que para a adesão do marxismo foi importante o impacto da obra de Louis Althusser entre os militantes da AP. Entretanto, ao longo desse processo a organização abrigou uma disputa interna entre uma “corrente 1” maoísta e uma “corrente 2” inspirada na Revolução Cubana. Em 1968, os maoístas vencem a disputa interna e expulsam os adeptos da “corrente 2”.

IHU On-Line – De que forma a China e a Revolução Cultural chinesa influenciaram o movimento?

Fábio Pires Gavião – A influência se deu por meio da noção de “guerra popular prolongada” como etapa de uma revolução que partiria do campo para a cidade, pressuposto que o Brasil teria ainda um caráter semifeudal. Para além, as ideias de “proletarização” da Revolução Cultural chinesa tiveram forte influência na AP, levando os militantes a se integrarem na produção como forma de “purgar” suas origens pequeno-burguesas.

IHU On-Line – Que grupos políticos progressistas, para além da AP, se formaram na época?

Fábio Pires Gavião – Considerando o contexto pré-golpe, além da AP e do já citado PC do B, tivemos também o surgimento da Polop, em 1961, que igualmente buscou se contrapor ao PCB. Depois do golpe civil-militar de 1964, os agrupamentos de esquerda sofreram um forte processo de fragmentação, dando origem a diversas siglas, todas elas perseguidas e desbaratadas pelo desproporcional aparato repressivo do regime civil-militar instalado no Brasil entre 1964-1985.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Fábio Pires Gavião – Creio que Pe. Henrique de Lima Vaz é, no Brasil, um exemplo entre outros intelectuais ao longo da história que souberam compreender a essência do cristianismo e sua fundamental oposição a todas as formas de injustiça social. Sua obra e sua militância são testemunhos inequívocos da completa falta de coerência de qualquer tentativa de justificação evangélica para qualquer posicionamento político-ideológico de caráter conservador ou reacionário. Infelizmente, diante do atual quadro de analfabetismo funcional e analfabetismo político  disseminado em amplos setores populares, grupos políticos puderam ascender ao poder manipulando a religiosidade popular como forma de justificar ideários profundamente anticristãos. Novos Henriques de Lima Vaz são urgentes em nosso país para tentar reverter esse quadro nefasto que tomou de assalto as instâncias decisórias no Brasil.

Em 1945, foi decretado o fim do Estado Novo no Brasil. Foto: Reprodução

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