A Violência Contra a Mulher no Contexto das Remoções no Rio de Janeiro, Parte 2: Violência como Política de Controle

por Poliana Monteiro, em RioOnWatch

Como mencionado na primeira matéria da série, o programa Minha Casa Minha Vida (MCMV) materializou-se mais fortemente na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro, região que já contava com uma insuficiência de infraestrutura e serviços, e resultou em uma aguda ampliação do contingente populacional na área, que pressionou ainda mais a expansão urbana desordenada no local. Aliado a isso, a expansão do domínio das milícias amplia as graves consequências da ausência do estado democrático de direito, agravando a violência nessa região, e evidencia a parcialidade da associação entre violência e pobreza.

Em entrevista, um morador de um conjunto habitacional na Zona Oeste afirmou que “todo lugar tem um dono, cada um deve ficar no seu quadrado e andar na linha”. Essa afirmação, mais do que uma percepção da realidade, materializa-se de forma profunda como estratégia de sobrevivência. Por esse motivo, e devido à percepção difundida que em “briga de marido e mulher não se mete a colher”, a violência contra a mulher encontra terreno livre para se alastrar. Afinal, quem viria prestar socorro? A polícia? A milícia? Alguém?

A compreensão de como a violência é vivenciada pelas mulheres na esfera individual demanda a percepção de suas mediações sociais. Assim, as manifestações individuais de violência contra a mulher devem ser analisadas em uma perspectiva mais ampla de violência socialmente produzida, que viola sistematicamente os direitos econômicos e políticos das mulheres. A pressão econômica, social e política que determina a vivência em situação de violência generalizada, assim como a impunidade relacionada à ausência do estado democrático de direito e ainda à mistificação machista do estupro, que ainda hoje permite a culpabilização da vítima, determinam os índices alarmantes de estupro, por exemplo.

A concentração de ocorrências de estupro na Zona Oeste da cidade e a ampliação dos casos nessa região, a partir de 2009, sugere que o excessivo e desordenado aumento populacional determinado pela lógica de localização do MCMV e pela política de remoção podem ter influenciado nesse índice. O quadro e tabela abaixo sintetiza essa potencial relação.

As ocorrências de estupro registradas demonstram um padrão territorial diferenciado nas características desse tipo de crime. Nela podemos observar que a cor das vítimas, por exemplo, é distintivo e sintomático do padrão de periferização racista da produção do espaço capitalista e patriarcal. O percentual de mulheres negras ou pardas vitimadas pelo estupro é superior na Zona Oeste. A segregação territorial também determina especificidades em relação ao local do crime. Na Zona Oeste da cidade, o estupro é um crime majoritariamente domiciliar, representando 72% dos casos. O sombrio padrão de vitimização do estupro que atinge mais crianças e adolescentes se verifica na Zona Oeste, enquanto na Zona Sul e no Centro, esse padrão não se evidencia.

O Centro da cidade, por seu padrão de uso e ocupação diferenciado, é a região onde mais foram notificados casos de estupro em locais públicos. Na Zona Oeste, por outro lado, a ocorrência de estupros em transporte público representa 43,1% dos casos da cidade, sendo que boa parte dos crimes ocorreram dentro de vans do transporte alternativo. É importante lembrar que a circulação de vans foi proibida na Zona Sul pela Prefeitura após a repercussão gerada pelo caso de uma turista americana brutalmente estuprada dentro de uma van em 2013. No restante da cidade as vans continuaram a circular apenas com a restrição ao uso de película nos vidro.

A moradia popular foi utilizada historicamente como política de controle social visando fixar o trabalhador e moralizar seus hábitos. O estupro, por sua vez, sempre foi utilizado como arma de terror político, e com frequência emanou diretamente da política oficial. No Rio de Janeiro essa estratégia se evidencia, mas dessa vez a política de controle viabilizado com o MCMV recai gravemente sobre mulheres por meio da violência estrutural e institucionalizada.

Assim, quando considerados os valores absolutos, a Zona Oeste figura como a área que concentra mais ocorrências de estupro. A Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL), no entanto, recomenda que a produção de estatísticas de gênero seja padronizada, indicando a produção de indicadores de violência por meio de taxas por 100 mil e por 10 mil mulheres. Assim, o cálculo por taxa em relação ao Censo 2010 tem o intuito de verificar a tendência dos dados, ainda que a distância temporal em relação ao censo e as grandes transformações urbanas dificultem a realização de projeções. Nesse caso, o cálculo das taxas por 10 mil mulheres para 2010 atribui ao Centro os índices mais elevados, devido ao número relativamente grande de ocorrências, inflado pela população flutuante que circula pelo Centro, frente ao número reduzido de residentes.

A análise tanto por valores absolutos quanto por taxas demonstra os limites e as potencialidades da pesquisa territorializada sobre violência contra a mulher e evidencia a necessidade de ações integradas e inclusivas de planejamento urbano e de políticas públicas. A afirmação da responsabilidade do Estado na violência cometida contra mulheres é fundamental na luta contra a desigualdade de gênero.

Nas próximas matérias os dados sobre lesão corporal dolosa, que engloba a questão da violência doméstica, e as informações sobre morte violenta de mulheres e feminicídio serão apresentados com o intuito de continuar a debater a relação entre políticas públicas, território e violência contra a mulher.

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