Jorge Eremites de Oliveira[i], para o Cafezinho
No dia 3 de fevereiro de 2019, o jornalista Lauro Jardim, d’O Globo, publicou num blog a postagem intitulada ‘Amiga de Tereza Cristina’, secretária diz que índios não foram os primeiros habitantes do Brasil[ii]. A fala é atribuída à advogada Luana Ruiz Silva de Figueiredo, citada como Luana Figueiredo, atual secretária-adjunta de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura do governo federal.
O assunto foi rapidamente divulgado em vários espaços virtuais (Brasil 247, Blog da Cidadania, Diário do Centro do Mundo, O Expresso etc.), e tem gerado polêmicas nas redes sociais. Há, inclusive, diversos comentários jocosos, haja vista que a afirmativa denota, à luz da antropologia e da arqueologia, um ponto de vista estapafúrdio sobre os povos indígenas.
Importa explicar que o termo “índio” foi cunhado no âmbito do encontro colonial, iniciado em fins do século XV. Passou a ser empregado para designar genericamente os povos originários das Américas, cujos antepassados mais antigos vieram da Ásia e aqui chegaram em tempos pleistocênicos, há mais de 12 mil anos. Naquela época, havia uma ponte de terra e gelo, a Beríngia, ligando a Sibéria ao Alasca. O clima do planeta era mais frio e seco e o nível dos oceanos era mais baixo em relação ao atual, cerca de 50 m aonde está o Mar de Bering. Interessante observar que quando se analisa o mapa-múndi, percebe-se que a Sibéria, na Rússia, está situada no lado oposto ao Alasca, nos Estados Unidos. A representação cartográfica tem a ver com os tempos da Guerra Fria e, consequentemente, atendia ao propósito de distanciar geograficamente os mundos capitalista (EUA) e socialista (antiga URSS).
Foi pela Beríngia que chegaram as primeiras levas de grupos humanos que passaram a ocupar o continente, inicialmente a partir da porção setentrional da América do Norte, posteriormente passando pela América Central, até atingirem a parte meridional da América do Sul. Significa dizer que não há evidências arqueológicas, linguísticas e genéticas que possibilitam afirmar que antes dos índios existiriam outros humanos no “Novo Mundo”. A própria Luzia, nome atribuído ao esqueleto da mulher mais antiga conhecida para o atual território nacional, com data estimada em mais de 10 mil anos, possui DNA tipicamente ameríndio e não australo-melanésio, como se pensava até pouco tempo[iii]. Ainda que fosse diferente, teria que ser considerada indígena porque o termo não está vinculado à genética, mas historicamente à ideia de pessoa originária do continente americano, onde ela nasceu, viveu e morreu.
Embora o termo índio seja uma categoria colonial, empregado para designar povos dos mais diferentes, vale dizer que há uma indianidade que os une como “parentes” ou “patrícios”, como costumam a se referir uns aos outros. Portanto, dizer que os índios não seriam os primeiros habitantes do Brasil e das Américas denota, dentre outras coisas, o propósito de desqualificar reivindicações pelo reconhecimento de terras tradicionalmente ocupadas por comunidades indígenas.
No Brasil, terra indígena é uma categoria jurídica, estabelecida no Art. 231 da Constituição Federal de 1988. Não tem a ver com antiguidade relacionada ao período pré-colonial, mas a formas tradicionais ligadas à ocupação costumeira de determinados espaços. Esta situação tem sido comprovada em diversos estudos antropológicos, elaborados por meio de procedimentos científicos mundialmente consagrados e orientados por legislação específica, como é o caso do Decreto n. 1.775 e da Portaria MJ n. 14, ambos de 1996.
No caso de Mato Grosso do Sul, onde há três décadas realizo estudos a respeito dos povos indígenas pretéritos e contemporâneos, sabe-se que toda sua atual extensão territorial estava ocupada pelos ameríndios desde muito antes dos primeiros europeus cruzarem o Atlântico em suas caravelas. Hoje em dia, as terras ali reivindicadas por comunidades Guarani, Kaiowá, Terena e de outras etnias têm a ver com áreas de onde muitas delas foram expulsas décadas atrás. Não estou a falar, que se faça bem entendido, de terras dos tempos de Colombo e Cabral, tampouco da Praia de Ipanema, no Rio de Janeiro, ou do bairro Morumbi, em São Paulo. Em livro de minha coautoria, intitulado Ñande Ru Marangatu[iv], escrito em parceria com o antropólogo Levi Marques Pereira, consta um laudo pericial produzido para a Justiça Federal sobre a terra indígena homônima, tradicionalmente ocupada por comunidade Kaiowá no município de Antônio João, na fronteira do Brasil com o Paraguai. Trata-se de área disputada por indígenas e fazendeiros, dentre os últimos alguns parentes da referida secretária-adjunta de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura. Resumos sobre o assunto constam nos artigos Para compreender os conflitos pela posse da Terra Indígena Ñande Ru Marangatu… e Para compreender Ñande Ru Marangatu[v].
Assim sendo, a fala atribuída à advogada está situada no senso comum das frases feitas, espécie de pós-verdade que causa impacto negativo sobre o imaginário das pessoas, especialmente daquelas que a priori se opõem aos direitos dos indígenas. Ao que tudo indica, faz parte do que poderá ser o norte colonialista da política indigenista oficial, orientada por viés integracionista e assimilacionista, via aculturação, dos povos indígenas à chamada “comunhão nacional”.
A citada postagem também registra que a advogada “desce a borduna nas políticas de demarcação de terras e diz que os índios do Mato Grosso do Sul estão obesos, com pressão alta e diabetes, doenças estranhas aos indígenas”. Falas nesta direção são antagônicas ao que tenho observado em várias aldeias Guarani e Kaiowá, no centro-sul do estado. Apenas para exemplificar, naquela parte do Centro-Oeste, episódios ligados à desnutrição infantil ficaram conhecidos internacionalmente nos anos 2000, e ainda hoje assombram a região.
No artigo Conflitos pela posse de terras indígenas em Mato Grosso do Sul, publicado na revista Ciência e Cultura[vi], apresento uma pequeníssima relação de lideranças indígenas assassinadas no estado: Marcos Veron, Kaiowá, 72 anos (Juti, 13/01/2003); Genivaldo Verá, 21 anos, e Rolindo Verá, 23 anos, ambos Guarani (Paranhos, 31/10/2009); Oziel Gabriel, Terena, 35 anos (Sidrolândia, 30/05/2013); Nísio Gomes, Kaiowá, 69 anos (Aral Moreira, 18/11/2011); Marinalva Manoel, Kaiowá, 27 anos (Dourados, 01/11/2014); Simeão Fernandes Vilhalba, Kaiowá, 24 anos (Antônio João, 29/08/2015); Clodiodi Aquileu Rodrigues de Souza, Kaiowá, 26 anos (Caarapó, 14/06/2016). Somam-se à lista outros tantos homicídios, como o do Kaiowá Nelson Franco, em 1952, e do Guarani Marçal de Souza, no dia 25/11/1983, no mesmo município de Antônio João, mencionado anteriormente.
No meu entendimento, o Brasil é um país de dimensões continentais e nele há espaço para todos vivermos bem e em paz, especialmente em estados como o de Mato Grosso do Sul, onde a maioria das terras indígenas possui tamanho diminuto para uma população que atualmente supera a 80 mil pessoas, considerando o crescimento demográfico verificado no último censo do IBGE, de 2010.
Notas:
I Graduado em História pela UFMS, mestre e doutor em História/Arqueologia pela PUCRS, com estágio de pós-doutoramento em Antropologia Social pelo Museu Nacional/UFRJ, e professor na Universidade Federal de Pelotas.
II ‘Amiga de Tereza Cristina’, secretária diz que índios não foram os primeiros habitantes do Brasil (https://blogs.oglobo.globo.com/lauro-jardim/post/amiga-de-tereza-cristina-secretaria-diz-que-indios-nao-foram-os-primeiros-habitantes-do-brasil.html).
III DNA antigo conta nova história sobre o povo de Luzia, de 8/11/2018, assinada por Silvana Salles e publicada no Jornal USP (https://jornal.usp.br/ciencias/ciencias-biologicas/dna-antigo-conta-nova-historia-sobre-o-povo-de-luzia/).
IV Ñande Ru Marangatu (http://files.ufgd.edu.br/arquivos/arquivos/78/EDITORA/catalogo/nande-ru-marangatu-laudo-antropologico-e-historico-sobre-uma-terra-kaiowa-na-fronteira-do-brasil-com-o-paraguai-municipio-de-antonio-joao-mato-grosso-do-sul.pdf).
V Para compreender os conflitos pela posse da Terra Indígena Ñande Ru Marangatu (http://ojs.ufgd.edu.br/index.php/anpege/article/view/7093/3934) e Para compreender Ñande Ru Marangatu (http://www.ihu.unisinos.br/noticias/546492-para-compreender-nande-ru-marangatu).
VI Conflitos pela posse de terras indígenas em Mato Grosso do Sul (http://cienciaecultura.bvs.br/pdf/cic/v68n4/v68n4a02.pdf).
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Imagem: Ricardo Stuckert
Triste ter de ler uma pessoa criticando “ponto(s) de vista estapafúrdio(s) sobre os povos indígenas” e repetindo e assim prolongando, ela mesma, outro estereotipo ultrapassado vulgo “foi pela Beríngia que chegaram as primeiras levas de grupos humanos que passaram a ocupar o continente”.
Esta tese não tem como ser mantida mais. Niede Guidon e as suas equipes trabalhando no sul do Piauí sabem disto (e publicaram isto) faz décadas. E os tão resistentes cientistas estadunidenses que por mais tempo se apegaram a esta ideia da Estrada de Beríngia como primeira e única porta de entrada porque não queriam perder o “título de ter as primeiras populações humanas” da Abya Yala no país deles, também, já começam entender que a História da imigração nas Terras da Águia e do Condor não foi monofásico assim. Com cada nova descoberta que fazem (e admitem).
https://museudoamanha.org.br/pt-br/a-presenca-feminina-na-ciencia-homenagem-a-niede-guidon