Processo que requer o reconhecimento do líder guarani como Santo pela Igreja Católica desperta a memória de uma das sociedades mais evoluídas que a história registrou e, em consequência, de um dos crimes mais hediondos que o imperialismo praticou contra um povo
Por Marcos Corbari, na Rede Soberania
A igreja deu o start no processo de beatificação de Sepé Tiarajú no final de 2015, repercutindo em instâncias diversas de trâmite burocrático até que, em meados de 2018 veio a notícia mais esperada entre todos os envolvidos: através da diocese de Bagé, região administrativa da Igreja Católica onde está a paróquia de São Gabriel, local do martírio do líder Guarani pelo exército luso-espanhol, estava autorizado o início do processo. Para o povo, porém, Sepé já é santo desde sua morte, a partir do que se mistura com intensidade os caracteres históricos e místicos: “cânon é medida que une a terra gaúcha aos céus, a paisagem do pampa à sua estrela, a simplicidade dos gaúchos à grandeza da alma heróica que deu a vida por seu povo”, expressou em carta um dos articuladores do processo, o teólogo e frei capuchinho Luiz Carlos Susin. “Santo, ainda que tarde!”, arremata.
Dom Gílio Felício, então bispo titular de Bagé, hoje emérito, foi o portador à Roma das razões e as assinaturas de mais de uma centena de autoridades políticas e religiosas, além de intelectuais de diversas áreas que irmanaram-se na causa. A resposta veio rápida, recebendo o Nihil Obstat do Vaticano, ou seja, via livre e sem objeções para começar o processo de reconhecimento oficial da santidade do índio protogaúcho Joseph Yarayú, o Sepé Tiarajú. E junto veio o esclarecimento: ele já pode ser invocado como “Servo de Deus”, primeiro passo no processo que leva à beatificação e depois à canonização. “Conhecemos a história de Sepé, tanto o que chegou como fatos, como registros históricos, quanto os elementos que foram sendo moldados pela tradição popular ao longo dos tempos”, explica Dom Gílio.
– A causa é justa e importante, tanto para o povo que expressa sua devoção, quanto para a Igreja enquanto instituição, que assim tem oportunidade de reconhecer a importância deste mártir”, acrescenta o bispo emérito. Para ele está claro que “ao dar andamento no processo estamos fazendo justiça a um clamor que começa desde o instante do martírio de Sepé Tiarajú e se estende até os dias de hoje quando tantos irmãos vivem privados de condições dignas de vida, sendo excluídos, marginalizados e perseguidos”.
À frente de projetos voltados à economia solidária na região de Santa Maria – reconhecidamente inspirados pela experiência da sociedade guaranítico-missioneira –, a vice-presidente da Cáritas no Brasil, Irmã Lourdes Dill é uma entusiasta da causa: “Sepé Tiarajú é o profeta dos povos indígenas, especialmente da resistência dos Guaranis. Toda sua luta por estes povos foi uma marca para história da humanidade”. Ao saudar a notícia da autorização papal para que desde já Sepé fosse reconhecido como “Servo de Deus” – fato que inicia o processo legal para que um dia seja oficializado pela Congregação da Causa dos Santos, Dill expressa confiança de que em breve isso poderá se confirmar:
– Tenho certeza total e absoluta que o Papa Francisco fará a canonização de Sepé, que para mim já é santo, mártir e exemplo de resistência para todos nós”. Para a religiosa, no momento atual a canonização de Sepé ganha importância concreta para a igreja e especialmente para os povos originários: “Nossa afirmação nesse sentido é para que todos e em especial os povos indígenas sejam tratados com a justiça e a solidariedade que merecem, reconhecendo seu papel na história e a dignidade dos povos”, arremata.
Índio, guerreiro e cristão
Para quem não está afeito à história da invasão portuguesa e espanhola no sul da América, pode soar confusa a intenção de buscar reconhecimento por parte da Igreja para um indígena local que teve forte participação nos combates das Guerras Guaraníticas. Acontece que Joseph Tyarayú era cristão já de terceira geração, batizado e educado pelos padres da Congregação Jesuíta, junto aos quais gozava de respeito e prestígio. Alçado ao posto de Alferes Real, Sepé, como era chamado pelos seus, tinha na maior das cidades da época – São Miguel – função semelhante a de um corregedor, atuando como uma espécie de prefeito, juiz e presidente do cabildo. Em seu nome reunia os dois campos simbólicos aos quais hoje sua memória serve de elo: José, nome cristão que relembra o pai adotivo de Jesus; Tiarajú, nome guarani que significa “facho de luz”.
Fiel aos padres, foi o último dos líderes das reduções jesuíticas a convencer-se que não havia outra opção senão resistir à força frente ao expurgo que o exército luso-espanhol impunha aos Guaranis após a assinatura do Tratado de Madrid (1750), pelo qual os reis de Espanha e Portugal decidiram trocar os Sete Povos das Missões (que até então pertencia à coroa espanhola) pela Colônia de Sacramento (que então pertencia à coroa portuguesa). Por esse acordo assinado entre os dois impérios predominantes na época, se exigia que padres e índios abandonassem suas cidades, igrejas, lavouras, fazendas e – principalmente – a terra de seus ancestrais, a qual consideravam que se lhes havia sido dada por Deus, através de São Miguel Arcanjo e dos demais santos que denominavam as reduções e aos quais rendiam devoção.
Assim iniciaram as chamadas Guerra Guaraníticas, que colocariam fim a comunidades que deixaram um legado cultural, social, político e econômico inestimável à região ainda hoje conhecida como “Missões” ou “Missioneira”, que compreende parte do estado do Rio Grande do Sul e dos países vizinhos Uruguai, Argentina e Paraguai. Os padres jesuítas foram expulsos, a Companhia de Jesus foi alvo de intensa campanha difamatória e o povo Guarani massacrado até quase o extermínio. Nos poucos sobreviventes, dispersos pela região, ficou guardado o legado histórico de um tempo onde se desenvolveu um modelo de convivência social próximo do ideal, com forte inspiração das primeiras comunidades cristãs e influência de princípios socialistas de convívio (democracia, igualdade, solidariedade, etc), sendo destacado até pelo pai do Iluminismo, Voltaire, que escreveu: “A experiência Cristã das Missões Guaranis representa um verdadeiro triunfo da humanidade”.
Santo do povo, Santo da Igreja
Padre Alex José Kloppenburg, que atuou como administrador da Diocese de Bagé durante o período de vacância do bispo titular (Dom Gílio afastou-se por motivos de saúde), reforça a interpretação: “Entendemos que ele está na religiosidade popular e já foi canonizado pelo povo, São Sepé Tiarajú está na alma do povo. “É muito importante este processo para toda a história do RS e também dos povos da América Latina, o significado disso é reconhecer a grande contribuição dos povos indígenas para nossa formação enquanto povo, para nossa identidade”, acrescenta, frisando ainda que ao ser iniciado o processo de beatificação na instância oficial da igreja, se está procedendo também o reconhecimento da religiosidade e da fé do povo: “Foi uma alegria muito grande receber a autorização para iniciar o processo, ainda mais porque ela vem no momento em que o Papado é exercido por Francisco, um latino-americano, argentino, alguém que nos motiva a continuar o trabalho”, explica.
O momento histórico presente e as turbulências que se somam no que diz respeito às pressões do poder constituído sobre os movimentos populares, povos indígenas e minorias é objeto de reflexão do religioso, que coloca o legado dos Guarani como símbolo de resistência que precisa ser reconhecido e preservado: “Um povo que perde a memória histórica é um povo sem consciência crítica e facilmente manipulável”. Segundo ele, é preciso ter em mente que os vencedores sempre querem contar a história na sua versão, minimizando ou marginalizando a interpretação daqueles que foram reprimidos: “O sonho dos Guarani de ontem e de hoje é possível. É preciso lembrar às novas gerações que nosso mundo tem uma grande bagagem de lutas, de sofrimentos, de opressões e de vitórias. Lembrar que a fé nos ajuda nesta caminhada de libertação, alimentando nossa mística e animando nossa esperança”.
O Frei Luis Carlos Susin, que por muito tempo trabalhou lado a lado, dividindo o estudo da causa e a luta pela canonização de Sepé Tiarajú com o saudoso irmão marista Antonio Cechin (falecido em 2016), destaca a importância da figura do líder Guarani para a formação identitária do povo gaúcho e reconhece na sua história e – principalmente – no seu martírio, as virtudes para o acolhimento do pleito pela Congregação para a Causa dos Santos:
– De um lado temos essa percepção popular difusa, que afirma Sepé como Santo pela voz do povo, recebendo desse mesmo povo a devoção ao modo dos santos católicos, de onde procede o título que lhe é dado: São Sepé -, argumenta. De outra forma, “podemos destacar essa característica de não ter sido vencedor, ser justamente uma vítima da política de dois impérios agressores, martirizado assim como foi o povo pelo qual lutava”, acrescenta. Para o teólogo “a figura heróica de Sepé, como aquele que, morrendo na defesa do seu povo, ressurge altivo, à cavalo, erguendo sua lança e brilhando o luzeiro que demarcava a testa remete a ideia do vencido que permanece na história com protagonismo sobre o vencedor, aquele que mesmo derrotado não abandona os seus, mas justifica a esperança e a resistência, afirma-se como defensor daqueles que não tem defesa”.
No altar e na luta
Se a relevância de Sepé para a instância espiritual encontra-se em processo de confirmação pela Igreja Católica, sua importância na resistência popular ao longo dos tempos é uma certeza, especialmente nos movimentos sociais. É o que afirma João Pedro Stédile, dirigente do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), movimento que acolhe desde a sua criação no final da década de 1970, Sepé como padroeiro e protetor.
– Poderiam ter construído uma bela República dos Guaranis, se não fosse a sanha perversa do capital mercantil europeu – afirma. “Com a derrota guarani nasce o latifúndio gaúcho, distribuído primeiramente entre os invasores vencedores, contra o qual estamos lutando até hoje”, acrescenta. Para o dirigente camponês, existe ainda uma “grande dívida histórica do povo gaúcho com os remanescentes Guaranis, que vagueiam por nossas estradas, sem terra e sem destino”.
Outro que cita a virtude da figura de Sepé como lutador do povo é Frei Sérgio Görgen, dirigente do movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), que vê na figura do líder indígena e dos demais Guaranis massacrados em Caiboaté, precursores dos movimentos sociais e populares que hoje empenham-se em defender o conceito de soberania do povo brasileiro sobre sua nação: “Ele se transformou na condensação histórica da luta, dos sonhos, dos feitos, do projeto, do heroísmo de um povo. É um mito fundador e transforma-se num símbolo. É o símbolo maior de um projeto de civilização que foi brutalmente interrompido, mas que continua vivo como sonho coletivo de uma sociedade de irmãos e de iguais”.
O escritor José Roberto de Oliveira (autor do livro “Pedido de Perdão ao Triunfo da Humanidade – A importância dos 160 anos das Missões Jesuítico-Guarani”) afirma que por Sepé Tiarajú “ser um nativo da terra da América Latina e brasileira, um índio, por si só já representa a luta de sobrevivência dos naturais em relação a opressão dos mais fortes”. Segundo Oliveira, daí parte a compreensão da parte dos movimentos sociais em ver nele “o símbolo maior de alguém que se posiciona contra as opressões externas e dos poderosos internos”.
– Em um mundo brasileiro que sempre se valorizou e louvou o que vinha da Europa, é uma simbologia para todos nós de que os da terra podem se sentirem donos e gestores da territorialidade -, acrescenta o escritor, em entrevista publicada pela revista IHU. “Em um tempo onde a grande maioria da sociedade vive alheia às grandes lutas sociais, Sepé Tiarajú se apresenta como a grande simbologia de que os pequenos podem”, arremata.
Antônio Cechin, prefaciando a edição de 2010 do livro “A República Guarani” (originalmente intitulado “A República Comunista Cristã dos Guaranis”), de Clóvis Lugon, também fez referência ao legado que Sepé e seus companheiros deixam aos militantes sociais do nosso tempo e propondo a interpretação que há algo além dos Sete Povos das missões originais: “Nos damos conta de que, na construção das Comunidades Eclesiais de Base e nos movimentos Populares de hoje, tipo MST, Pequenos Agricultores, Movimentos de Mulheres, Movimento de Catadores, et. Estamos na verdade construindo o Oitavo Povo das Missões em total continuidade à saga abruptamente interrompida no ano de 1756 com o martírio de São Sepé Tiarajú e seus 1.500 companheiros Guarani massacrados em São Gabriel”.
No panteão dos heróis
– Sepé não é um mito e sim um sujeito histórico concreto e datado, alferes e corregedor do Povo de São Miguel Arcanjo e um dos principais comandantes da resistência guarani-missioneira à implementação do tratado de Madri em terras do hoje estado do Rio Grande do Sul -, aponta Görgen, fazendo referência à importância do índio Guarani como personagem histórico. Sua relevância é reconhecida em lei, tendo sido declarado “Herói Guarani Missioneiro Rio-Grandense” pela Lei estadual número 12.366 (D.O.E. de 04/11/2005) e inscrito no “Livro dos Heróis da Pátria” pela Lei federal 12.032 (D.O.U. de 21/09/2009).
– Por sua bravura, Sepé Tiarajú se fez santo pelo povo gaúcho, que, por conta própria o canonizou como São Sepé -, expressou o então deputado federal Marco Maia, propositor da Lei que inseriu Sepé no panteão dos heróis da Pátria, em 2010. “Pelo legado de tenacidade em defesa do solo em que nasceu, tornou-se uma referência na luta pela preservação da terra”, registrou o parlamentar ao comparar o nome do líder indígena missioneiro com outras personalidades históricas como Tiradentes e Zumbi dos Palmares.
Para Görgen, é preciso que “o povo gaúcho e brasileiro, reencontrando-se com suas raízes mais profundas, cravadas no chão fértil da cantante civilização Guarani, retome em suas mãos a construção do projeto de sociedade justa e feliz interrompido a canhonaços nas coxilhas de São Gabriel no fatídico fevereiro de 1756”. Para ele, através da luta popular dos movimentos sociais Sepé segue presente e vivo, “renasce e ressuscita das entranhas da terra, na organização e nas lutas dos pobres, na resistência popular, no sonho e no projeto de um mundo de irmãos, de uma sociedade de iguais, de uma terra de justiça, de uma vida com dignidade”.
“Santo, ainda que tarde!”
Levando as palavras de ordem acima expressas como título, o documento levado em mãos por Dom Gílio até Roma expressa como Sepé Tiaraju – que já é Santo Popular pela devoção dos povos – merece como Guarani cristão e católico, morto na defesa do seu povo contra dois impérios, também figurar nos altares das igrejas. “Não será um trabalho fácil, possivelmente ainda haverá demora”, afirma Suzin, concordam Susin e Klopemburg, explicando a complexidade do processo e o rito que necessariamente se deve seguir até a beatificação e posterior canonização.
O fato que anima todos os envolvidos no processo é que – ainda que tenha sido preciso se passar mais de dois séculos e meio do martírio de Sepé e do genocídio dos Guaranis -, a Igreja dá sinais concretos de que em algum momento se poderá sim oficializar o status de Santo que desde o instante da morte o povo vem legando a líder indígena. Consultado neste início de ano, Padre Alex Klopemburg informou à reportagem que em março deverá ser realizada uma reunião para definir quais serão os próximos passos a serem tomados no processo de beatificação de Sepé Tiarajú.
Algumas etapas formais precisam ser desenvolvidas, vide: colocar o novo Bispo da Diocese, Dom Cleonir Paulo Dalbosco a par de todos os eventos ocorridos até agora; definir com toda clareza quem será – pessoa, grupo ou instituição – que assume a figura de “Autor” e a quem será confiada a importante figura de “Postulador” da causa; bem como seguir os passos do documento Sanctorum Mater, que orienta o trâmite (criação de uma comissão de juízes, historiadores, notário, etc. na fase de inquérito diocesano, modos de entrevistas, investigações, entre outros procederes).
Em carta dirigida às personalidades que assinaram a primeira petição em defesa da abertura do processo de beatificação/canonização de Sepé, Frei Susin explica: “ele já pode ser invocado como “Servo de Deus”, o primeiro título de reconhecimento de santidade”. Ao que acrescenta: “Embora seja normal que os que o invocam na verdade o reconheçam desde o começo como santo: São Sepé! Santo de cara e valor de índio, santo gaúcho, protogaúcho”.
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Ilustrações: “Sepé Tiarajú: herói guarani, missioneiro,rio-grandense e, agora, herói brasileiro (Câmara dos Deputados)