Editorial da Ponte
“Se é necessária uma vila inteira para cuidar de uma criança, também é necessária uma vila inteira para abusar de uma.” A frase é dita por um personagem de Spotlight – Segredos Revelados, filme de 2015 premiado com o Oscar que celebra o jornalismo investigativo ao contar a história real de repórteres do Boston Globe que trouxeram à tona o pavoroso escândalo de padres católicos que estupraram mais de 500 crianças pobres ao longo de décadas. Crimes dessa proporção, ensina o filme, só podem ocorrer porque contam com a conivência de toda a comunidade, especialmente de seus membros mais influentes.
Trazendo essa mesma noção para a realidade brasileira, podemos dizer que as mortes de meninos negros pelas mãos das forças de segurança, que também são crimes que se repetem há décadas deixando milhares de vítimas, não poderiam ser levadas a cabo sem uma ampla rede de incentivos velados, silêncios e acobertamentos, reunindo as figuras mais respeitáveis da sociedade.
Quando um grupo de policiais militares matou 15 jovens no Morro do Fallet, na região central do Rio, atirando em suas costas, esfaqueando seus corpos até arrancar seus intestinos para fora e dizendo para o irmão de uma das vítimas “bem feito que eu matei seu irmão, cresce para eu te matar também”, segundo denúncias de familiares, ou quando o segurança Davi Ricardo Moreira Amâncio, do supermercado Extra, imobilizou o jovem Pedro Gonzaga e passou a sufocá-lo, ignorando a pequena multidão que o rodeava egritava para que parasse, e não saiu de cima do rapaz de 19 anos até que estivesse morto – esses são crimes que não ocorreriam sem a presença de cúmplices, aqueles que nunca estão na cena do crime.
Os assassinos de jovens negros, sejam os policiais do Estado ou os seguranças do poder privado, não são lobos solitários ou serial killers matando com base em motivações pessoais. Estudos sobre as motivações de PMs matadores, como o do livro “O Guardião da Cidade”, de Adilson Paes de Souza, apontam que esses assassinos acreditam estar cumprindo a missão para que foram designados e fazendo o que a sociedade espera deles.
No caso de Pedro Gonzaga, o supermercado Extra lamentou a morte do jovem por meio de uma nota enviada por escrito – os executivos do Grupo Pão de Açúcar não acharam que a vida de um jovem negro valia tanto a ponto de forçar algum deles a se expor publicamente –, tratando o caso como algo excepcional e isolado. A violência racista dos seguranças e outros funcionários de lojas, lanchonetes e supermercados, porém, está distante de ser isolada: o Habib’s arrastou João Victor, 13 anos, como se fosse um saco de lixo, o Burger King já maltratou criança de 12 anos por ser negra e o Shopping Higienópolis já foi acusado de fazer o mesmo com um menino negro de 7 anos. É muito raro encontrar pessoas negras que não tenham alguma história a contar sobre serem seguidas, xingadas ou espancadas por seguranças de estabelecimentos comerciais.
Por que o segurança do Extra acreditou que era seu trabalho tratar um jovem, negro como ele, como se fosse um inimigo que merecia ser sufocado até a morte? O Extra e o Grupo Pão de Açúcar não teriam responsabilidade por evitar combater uma possível cultura racista existente entre seus seguranças? São perguntas que precisam ser respondidas.
Já na matança dos 15 jovens assassinados no Morro do Fallet, alguns dos cúmplices do crime estão bastante expostos. Um deles, por exemplo, chama-se Wilson Witzel: é um ex-juiz que há 18 dias ocupa a cadeira de governador do Rio e, ao saber dos assassinatos, fez questão de gravar um vídeo de apoio aos policiais, parabenizando-os pela matança e dizendo que “nossa policia militar agiu para defender o cidadão de bem” (como se sabe,cidadão de bem, além de ser o nome de um jornal da Ku Klux Klan, pode ser definido como “aquele que se sente protegido pelo evisceramento de jovens negros”). Isso antes de o resultado do inquérito policial ter confirmado se os PMs agiram dentro da lei. Tão chocante quanto as cenas da morte de Pedro Gonzaga, o vídeo de Witzel é um flagrante das redes de cumplicidades que se formam nas aldeias para garantir que chacinas continuem a ocorrer.
A boa notícia (sim, há uma boa notícia) diz respeito às mobilizações nas redes sociais e os protestos de rua que, neste domingo, levantaram a bandeira de que vidas negras importam. Servem para deixar claro que há muita gente que não quer mais ser vítima nem cúmplice das matanças nessa aldeia chamada Brasil.
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Ato em supermercado Extra na Barra da Tijuca, onde Pedro Gonzaga morreu (17/2/2019). Foto: Ana Paula Souza /Ponte Jornalismo