Exilada, Maria Thereza Goulart foi impedida pela ditadura de acompanhar enterros dos pais
Por Paula Sperb, na Folha
Há 55 anos, Maria Thereza Goulart deixava o Palácio da Alvorada com os dois filhos pequenos, João Vicente e Denize, carregando uma pequena mala de mão com duas mudas de roupa.
A primeira-dama do presidente João Goulart, hoje com pouco mais de 80 anos (nem seu biógrafo conseguiu cravar o ano de nascimento devido a imprecisões nos registros), deixava todos os pertences pessoais para trás, incluindo uma carta escrita por Frank Sinatra e os discos autografados enviados por ele.
Maria Thereza era mundialmente conhecida pela beleza, alguns diziam que até desbancava Jaqueline Kennedy. Por causa do golpe militar de 1964, a família presidencial era obrigada a abandonar o país rumo ao exílio do Uruguai. Do contrário, seriam, na melhor hipótese, presos.
A biografia de Teca, como Jango a chamava, “Uma Mulher Vestida de Silêncio”, de Wagner William (Record), recupera essa história e traz detalhes inéditos ou pouco conhecidos da primeira-dama, como suas prisões no exílio, quando chegou a ficar incomunicável e precisou tirar toda a roupa em um quartel na cidade gaúcha de Rio Grande. “Meu marido nunca ficou sabendo. Ele já sofria tanto que não era necessário”, disse à Folha.
Antes do golpe de 1964, com a renúncia de Jânio Quadros em 1961, a “Operação Mosquito”, de militares da Aeronáutica, queria abater o avião de Jango no trajeto de Porto Alegre a Brasília, evitando sua posse. Jango assume após a campanha da legalidade, conduzida por Leonel Brizola no Rio Grande do Sul. Porém, ele acaba fazendo um acordo para assumir em um regime de parlamentarismo, com Tancredo Neves como primeiro-ministro. A sra. era contra esse acordo?
[Os militares] já pretendiam fazer o que fizeram depois, já eram as Forças Armadas de muito tempo. Eu era totalmente contra o parlamentarismo. Eu achava que ele, por ser vice, tinha que assumir diretamente. Aí foi o grande problema. O parlamentarismo já era uma trava para que ele não assumisse, já tinha começado um movimento de tirá-lo do poder, sempre pensei dessa maneira.
Já no exílio no Uruguai a sra. não foi autorizada pelos militares brasileiros a participar dos enterros dos seus pais. Como se sentiu?
Perdi minha mãe, perdi meu pai, mas não me deixaram entrar no Brasil. Não pude nem me despedir. Fui até ameaçada de ser presa, caso entrasse no país. Para o meu coração, foi um momento muito difícil, quase não superei isso. Fiquei abalada. Eu não representava perigo para o Brasil. Foi tudo muito injusto e muito violento também.
Sua biografia narra suas prisões no exílio, quando ficou incomunicável em uma delegacia no interior do Uruguai e um policial pediu suborno para autorizar um telefonema, e, no Brasil, quando precisou ficar nua. Como foram esses momentos?
Foi muito humilhante. A gente estava viajando, me prenderam com a minha prima e com o esposo da minha prima. Viram meu passaporte e me levaram para o destacamento militar [em Rio Grande]. Passamos duas noites e só no terceiro dia que nos deixaram sair. Era uma humilhação, com gente armada me levando até o banheiro, gente armada na hora do café. Até hoje penso que aquilo não tinha sentido, não tinha necessidade. Me mandarem ficar do jeito que fiquei [nua], foi uma coisa impressionante. Meu marido nunca ficou sabendo. Fizemos um acordo de nunca contar. Ele já sofria tanto que não era necessário, disse à Folha.
O livro também relata uma tentativa de suicídio, pouco tempo depois do casamento, quando a sra. tinha 18 anos e vivia na fazenda. De que maneira esse episódio lhe marcou?
Aquilo foi uma tentativa de chamar atenção para o meu esposo, que estava viajando, eu era recém-casada. Foi um pouco de imaturidade e não tinha sentido fazer aquilo, um momento de criança.
A sra. e o presidente tinham consciência da interferência dos Estados Unidos no golpe?
Sim, completamente. Todo mundo já sabia que eles estavam armando juntamente com os militares, os políticos todos já sabiam, a gente tinha consciência de tudo.
Como foi o exílio?
No início, me senti muito bem. O Uruguai é maravilhoso, é minha segunda pátria. Fomos muito bem recebidos. Mas depois veio a ditadura lá também, começou a perseguição. A família toda estava apreensiva, não sabíamos o que íamos fazer, onde ficar. Depois, mudamos para a Argentina. Lá aconteceu a mesma coisa, ficamos acuados. Aí veio a decisão do Jango de mandar os meninos [os filhos João Vicente e Denize] para Londres. Foram tempos difíceis, especialmente para o Jango, que era constantemente ameaçado.
A sra. desde cedo se acostumou com mudanças, saiu de São Borja e viveu na casa de parentes em Porto Alegre e no Rio de Janeiro e no colégio interno. Acredita que isso a ajudou a lidar com o exílio melhor do que Jango?
Desde criança, quando tinha nove anos, já fui pra dentro do colégio, sempre fui muito independente, meu pai me incentivava. Isso tudo me ajudou no exílio, mas eu também tinha dois filhos pequenos e pensava no futuro deles, não queria nada triste. Me determinei a tocar minha vida. Jango teve mais problemas, nunca conseguiu superar esse momento. Era um político de carreira brilhante, desde moço com grande destaque. Então, quando chegou no exílio, ele sentiu muito. Foi uma injustiça que fizeram com ele. Ele era tão bem intencionado que não entendia tudo aquilo. Eu ficava triste de vê-lo tão abatido.
O que a sra. pensa sobre as acusações de que Jango, um fazendeiro rico, implantaria um regime comunista no país?
Imagina, comunista! Nunca passou pela cabeça dele. Ele vem de uma família extremamente católica, uma família bonita, dedicada, muito católicos. Era uma coisa que não tinha explicação. Não tinha nada de comunista.
O que a sra. acha das tentativas de revisar o golpe de 1964 para torná-lo um ato de salvação do país contra os comunistas?
As pessoas são muito fora da realidade. Sinceramente, tudo que passou no Brasil, as pessoas que perderam familiares, que sofreram torturas… Tenho amigas que sofreram torturas. Decerto com eles [aqueles que negam o golpe] não aconteceu nada. É um problema da cabeça deles. Não vou discutir. É uma falta de respeito com as pessoas que sofreram tanto na ditadura.
Antes de dormir, na noite em que morreu, Jango estava lendo um gibi do Tex. Ele gostava do personagem?
Ele adorava revistinha de caubói, aí começou a ler, mas estava muito cansado. Aí dormiu. O engraçado é que ele sempre dizia que queria morrer dormindo para não sentir dor. Ele tinha pavor de sentir dor, tinha pavor até de dentista, tinha que anestesiar.
O contexto da morte de Jango envolvia o assassinato de diversos líderes, incluindo seus amigos. A sra. acredita que ele foi assassinado?
Sempre pensei que foi realmente um infarto. Quando o médico chegou, ele informou que foi um infarto. Tinha a marca na região do coração. Mas depois que surgiram todos esses fatos novos, do remédio [segundo depoimento em uma CPI de um ex-soldado, o remédio para o coração, que vinha da França, teria sido trocado propositalmente antes de Jango retirá-lo], aí fiquei meio em dúvida. Tenho minhas dúvidas até hoje.
A recepção popular ao corpo de Jango foi uma surpresa?
Foi tanta dificuldade para o corpo do Jango entrar no Brasil [o governo não queria autorizar o enterro no país]. Foi emocionante quando entramos no Rio Grande do Sul, fiquei impressionada. O povo inteiro no meio da estrada abanando, com lenços, gritando “Jango”, vestidos de gaúchos, de bombacha, saudando.
Quando Jango era presidente, planejava medidas progressistas para o país, a sra. era considerada por alguns a primeira-dama mais bonita do mundo e o Brasil era conhecido mundialmente pela bossa nova, pelo Cinema Novo. O Brasil pode voltar a ter esse protagonismo internacional político e cultural?
O país vivia um momento de grandes acontecimentos. Era uma democracia total, era tudo muito bonito, com música, com juventude. Com o caminho que estamos andando é muito complicado para voltar àquele Brasil cheio de alegria, de boas intenções e movimentos jovens. Tomara que aconteça, mas é meio complicado nesse momento.
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Foto: João Houlart e Amaria Thereza,no Comício da Central, em 1964