Enquanto isto, continuam sendo destruídas as últimas redes de segurança social que mantêm um resto de coesão social no país.
No GGN
Peça 1 – o Brasil legal e o criminoso
No momento, vive-se o maior desafio da história do Brasil.
Têm-se, de um lado, o desmanche do Estado brasileiro, das redes de proteção social, do direito ao trabalho e outros instrumentos básicos de cidadania. De outro, um avanço das organizações não estatais no amparo aos órfãos de Estado.
Há dois tipos de organização. Um deles, os movimentos sociais – como o MST (Movimento dos Sem Terra), MTST (Movimentos dos Trabalhadores Sem Teto), MAB (Movimentos dos Atingidos por Barragens) – organizando os desassistidos, dentro de um processo de inclusão democrática. Em geral, são reprimidos e tratados como criminosos, apesar de sua luta ser dentro dos limites legais.
O outro, organizações criminosas que controlam parte relevante do território nas maiores metrópoles, substituindo o Estado na segurança, na oferta de justiça, no apoio social, no amparo às famílias de presidiários, na atividade econômica clandestina, com uma diferença de estratégia. O PCC, em São Paulo, investindo na adesão das populações dos territórios controlados, e as milícias no Rio, com a estratégia de tomada do poder político local e estadual. Depois de acordos com o MDB do Rio de Janeiro, as milícias montaram seu próprio partido político e conseguiram emplacar aliados na presidência da República e no governo do Rio de Janeiro.
Enquanto isto, continuam sendo destruídas as últimas redes de segurança social que mantêm um resto de coesão social no país.
Peça 2 – o direito penal do inimigo
Peça central no desmonte do Estado foi a desmoralização da Justiça, com a consolidação do direito penal do inimigo.
Quando o STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu atropelar a Constituição, trabalho pertinaz de Luis Roberto Barroso, Luiz Fux, Dias Toffoli, Alexandre de Moraes, Rosa Weber, Luiz Edson Fachin, estava aberto o caminho para a selvageria generalizada.
A morte absolveu Teori Zavascki, o Ministro que tolerou os abusos iniciais da Lava Jato e abriu as portas para o arbítrio mais ostensivo, desde a não tomada de posição em relação ao vazamento dos diálogos de uma presidente da República (reagindo com uma mera advertência), até a decisão inconsequente de autorizar a prisão de um Senador da República, com base em um grampo armado.
Criada a onda, nada mais segurou o oportunismo, a sede de sangue, o atropelo de qualquer ordem jurídica ou política, o desrespeito aos direitos individuais e a instauração sem disfarces do direito penal do inimigo.
O garantismo – a defesa dos direitos individuais – passou a ser tratado como leniência para com o crime, e seus defensores apontados como e cúmplices da criminalidade. Nesses período, todos os abusos foram cometidos: juízes atuando como agentes da acusação, condução coercitiva de testemunhas com ampla publicidade na imprensa, antes que se recusassem a depor, condenações com base em delações negociadas. No Supremo, Ministros endossando, por oportunismo, os abusos e, no Twitter, as milícias digitais sendo insufladas por procuradores. Irresponsáveis!
Agora se está em outro momento de corte, quando os grupos que se aliaram no impeachment passam a disputar espaço político.
Alvo de medidas arbitrárias, a direita do Ministério Público invoca, agora, as garantias individuais, abominando qualquer forma de prática do direito penal do inimigo. Defende o juiz natural, critica os juízes que atuam como acusadores e juízes ao mesmo tempo, propõe habeas corpus coletivo – eles mesmos, que condenaram até o HC coletivo que pretendia mudar para prisão domiciliar penas de presidiárias com filhos recém-nascidos, em um capítulo em que a crueldade institucional rompeu com todos os limites de humanidade.
É esse o teor do Tweet da diretora da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), exigindo apoio dos “garantistas” através do expediente da provocação. É a isso que foi reduzido o sistema judicial. Doutrina, princípios, textos legais, tudo é instrumentalizado de acordo com a vontade política do agente público em cada momento, a partir dos exemplos emanados da Suprema Corte. Criou-se uma comunidade dos sem-noção.
E, hoje, há mais um avanço do arbítrio, com a decisão do Ministro da Justiça Sérgio Moro de convocar a Força Nacional para policiar a Praça dos Três Poderes, sem uma justificativa plausível.
Peça 3 – o país legal caótico e o ilegal organizado
Tem-se, então, esse paradoxo. O país institucional se desmoralizando a cada dia. A Lava Jato mantendo a prática de vazamentos, com amplo apoio das milícias digitais e de veículos associados, e avançando na campanha contra Ministros do STF, e agora fortalecidos por ter um dos seus no Ministério da Justiça. O Ministro Alexandre Moraes propondo censura aos veículos adversários e invasão de domicílios. A Procuradora Geral da República Raquel Dodge desautorizando decisões do STF, ainda que estapafúrdias. No Senado, tentativas de CPI contra o Supremo. No Planalto, Bolsonaro desvirtuando o BNDES e ordenando a abertura de linhas de financiamento para despesas operacionais de caminhoneiros.
O punitivismo cego está sendo utilizado para desmontar toda a estrutura política, social e de regulação do país. Quer acabar com um órgão? Anuncie uma devassa em suas contas e criminalize qualquer problema administrativo. Dentro de pouco tempo, a CGU (Controladoria Geral da República), junto com TCU (Tribunal de Contas da União) e Ministérios Públicos retomarão as ofensivas contra as universidades públicas
Enquanto isto, nos territórios ocupados, o PCC continua oferecendo segurança, um sistema de justiça mais eficiente que o sistema legal (amplo direito de defesa as partes, mas incluindo a pena de morte nas penas), uma economia informal pujante, na forma de projetos imobiliários clandestinos, transporte de passageiros em vans.
O combate ao crime organizado não se trata apenas de um fenômeno criminal. Se desalojar o PCC das áreas ocupadas, haverá a substituição do crime organizado pelo crime desorganizado, pois cada vez menos o Estado terá condições de substituir os serviços ofertados pelo crime.
Peça 4 – os desmontes irreversíveis
Mais cedo ou mais tarde Jair Bolsonaro cai. Ele e os quatro filhos tornaram-se uma espécie de Hidra de Lerna do jogo político brasileiro, enquanto Hamilton Mourão está se tornando o barqueiro da Barca de Caronte.
Mas, enquanto a racionalidade não é restabelecida, está ocorrendo um desmonte irreversível do Estado brasileiro. Acabou-se com a Embraer desconsiderando toda a malha de fornecedores que orbitavam no seu entorno. Parte-se agora, para o desmonte da Eletrobrás, abrindo mão de setores estratégicos, como a geração de energia e a transmissão. A privatização significará um novo salto nas tarifas de energia, comprometendo a competitividade da economia.
Já se liquidou a indústria naval em pleno processo de avanços na curva de aprendizado. Matou-se a engenharia nacional, com a liquidação das empreiteiras. Desmonta-se a mais tradicional instituição brasileira, o Itamarati. Aparelha-se a Apex (Agência de Promoção das Exportações), IBAMA (Instituto Brasileiro de Meio Ambiente), Anvisa (Agência de Vigilância Sanitária). E, a cada dia, liquida-se com cada avanço na área dos direitos sociais. E cada espaço aberto pelo país legal é imediatamente ocupado pelas organizações criminosas.
Resta saber quanto tempo de destruição será necessário, ainda, para promover uma pactuação em defesa do país.
Muito mais importante que as manifestações sem rumo da PGR, os coordenadores e membros titulares das Câmaras de Coordenação e Revisão do Ministério Publico Federal e a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, divulgaram ontem uma Nota Pública relevante em defesa dos direitos sociais, contra o decreto de Bolsonaro extinguindo os conselhos e comitês de participação popular na definição de políticas públicas.
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NOTA PÚBLICA
Os coordenadores e membros titulares das Câmaras de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal abaixo assinados e a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, em atenção à publicação, pelo Poder Executivo, do Decreto nº 9.759, de 11 de abril de 2019, que “extingue e estabelece diretrizes, regras e limitações para colegiados da administração pública federal”, e tendo em vista que a Constituição Federal de 1988 confere ao Ministério Público a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (art. 127), vêm fazer as seguintes ponderações e considerações sobre o referido decreto presidencial.
Considerando que o Estado Democrático de Direito é aquele fundado na soberania popular, manifestada em eleições livres, que aprofunda seus mecanismos de participação, além do exercício do voto, incorporando e garantindo os direitos fundamentais individuais, coletivos, sociais, econômicos e culturais, sendo o poder exercido em consonância com a Constituição e que tenha como objetivo a promoção do bem estar e a justiça social entre seus cidadãos (art. 1º, 2º e 3º da CF/88);
Considerando que o art. 6º da CF/88 assegura os direitos sociais à educação, à saúde, à alimentação, ao trabalho, à moradia, ao transporte, ao lazer, à segurança, à previdência social, à proteção à maternidade e à infância, à assistência aos desemparados, bem como confere “a participação dos trabalhadores e empregadores nos colegiados dos órgãos públicos em que seus interesses profissionais ou previdenciários sejam objeto de discussão e deliberação” (art. 10);
Considerando que o texto constitucional dispõe que “a ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais” (art. 193), e que “a seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social” (art. 194);
Considerando que a efetividade político-jurídica dos direitos previstos na ordem social constitucional depende de uma inter-relação entre o Estado e a sociedade civil, para a elaboração de políticas públicas, para a decisão de aplicação de recursos, a exemplos de conselhos e comissões de saúde, assistência social, segurança pública, entre outros, além do orçamento participativo;
Considerando que essa corresponsabilidade da sociedade civil, cuja participação verificase na própria elaboração das políticas públicas, está delineada na CF/88, por exemplo, nos arts. 194, inciso VII (seguridade social de forma genérica); 198, inciso III (saúde); 204, inciso II (assistência social); 205 (educação); 215 (cultura); 216, § 1º (proteção do patrimônio histórico e cultural); 227, inciso II (pessoas portadoras de deficiência); 230 (direitos do idoso); 232 (índios); e é expressão do exercício da cidadania, um dos fundamentos da nossa República (art. 1º, II);
Considerando que são as políticas públicas que representam a eficácia social do direito do cidadão a obter prestações positivas do Estado, voltadas para a concretização da ordem social, que visam à realização dos objetivos da República;
Considerando que a participação popular na gestão pública é pressuposto do sistema democrático-participativo adotado pela CF/88, o que garante, não só aos indivíduos, como também aos grupos e associações, o direito à representação política, à informação e à defesa de seus interesses, possibilitando-lhes a atuação na gestão dos bens e serviços públicos;
Considerando que a partir da CF/88, com base em reivindicações de participação da sociedade na gestão das políticas sociais, foram criados conselhos co-gestores de políticas públicas, desde o âmbito municipal até o federal, consistentes em canais efetivos da sociedade civil, permitindo o exercício da cidadania ativa, incorporando as forças vivas de uma comunidade à gestão de seus problemas e à implementação de políticas públicas que possam solucioná-los;
Considerando que após a promulgação da CF/88 foram criados, por lei, alguns conselhos gestores na área de políticas sociais, como o Conselho Nacional de Saúde (Lei nº 8.142/90), o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.242/91) e o Conselho Nacional de Assistência Social, criado pela Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS) (Lei nº 8.742/93), cujo objetivo foi o de possibilitar a inclusão de amplos setores sociais nos processos de decisão pública, fornecendo condições para a fortalecimento da cidadania e para o aprofundamento da democracia;
Considerando que o Decreto nº 9.759/2019 extinguirá, a partir de 28 de junho de 2019, ao menos 35 órgãos instituídos por decretos, a exemplo do Comitê Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (Conatrap); da Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae); do Conselho Nacional de Combate a Discriminação e Promoção dos Direitos de LGBT (CNCD/LGBT); do Conselho Nacional dos Direitos do Idoso (CNDI); do Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (Conade); da Comissão Nacional de Educação Escolar Indígena; da Comissão Nacional de Florestas (Conaflor); do Conselho da Transparência Pública e Combate à Corrupção (CTPCC); do Conselho Nacional de Segurança Pública (Conasp); da Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT); da Comissão de Coordenação das Atividades de Meteorologia, Climatologia e Hidrologia (CMCH); do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad); do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), entre outros;
Com essas considerações, os coordenadores e membros integrantes das Câmaras de Coordenação e Revisão do MPF abaixo assinados e a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão – PFDC manifestam preocupação com as consequências do Decreto nº 9.759, de 11 de abril de 2019, esperando que os colegiados, especialmente aqueles previstos na CF/88 ou em tratados internacionais, sejam mantidos em observância ao Estado Democrático de Direito.
Brasília, 16 de abril de 2019.
ELIZETA MARIA DE PAIVA RAMOS
Subprocuradora-Geral da República
Coordenadora da 1ª CCR
LUIZA CRISTINA FONSECA FRISCHEISEN
Subprocuradora-Geral da República
Coordenadora da 2ª CCR
ANTONIO AUGUSTO BRANDÃO DE ARAS
Subprocurador-Geral da República
Coordenador da 3ª CCR
NIVIO DE FREITAS SILVA FILHO
Subprocurador-Geral da República
Coordenador da 4ª CCR
ANTONIO CARLOS FONSECA DA SILVA
Subprocurador-Geral da República
Membro Titular da 5ª CCR
ANTONIO CARLOS ALPINO BIGONHA
Subprocurador-Geral da República
Coordenador da 6ª CCR
DOMINGOS SAVIO DRESCH DA SILVEIRA
Subprocurador-Geral da República
Coordenador da 7ª CCR
DEBORAH DUPRAT
Subprocuradora-Geral da República
Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão
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