Negros livres da senzala e presos na miséria

Nos 131 anos da Lei Áurea há muito pouco o que se celebrar: o Brasil continua essencialmente racista e segregador

Por Marcos Pedlowski, na Viu!

Dentre os muitos negacionismos, e olha que eles são muitos, que emanam do governo Bolsonaro o que mais me parece danosa é a negação de que somos um país estruturalmente racista.

É que segundo o próprio presidente Jair Bolsonaro, não há racismo no Brasil, e quem levanta a bandeira do antirracismo o faz apenas por motivos ulteriores.  A verdade, contudo, é que o nível de racismo que se manifesta na sociedade brasileira é histórico e se associa ao tráfico de escravos negros que foi iniciado pelos colonizadores portugueses entre os anos de 1539 a 1542, tendo sido oficialmente extinto apenas no ano de 1850 com a chamada Lei Euzébio de Queiroz.

Um dos fios de continuidade da ordem colonial baseada na escravidão negra e na articulação com o mercado mundial a partir do sistema de plantations, o racismo perdura no Brasil nas relações cotidianas, e se manifesta de forma mais explícita na forma pela qual o Estado nacional brasileiro se nega a estabelecer formas estruturais de compensação para os descendentes dos escravos, a começar pela implantação de um amplo processo de reforma agrária.

Se somos tão racistas, por que tradicionalmente se nega sequer a existência desse fenômeno em nossa sociedade?  Não acredito que haja uma resposta única para isso, mas a questão central é que as elites que controlam o Brasil desde o nosso nascedouro como colônia portuguesa não estão dispostas a abandonar sua condição de casta privilegiada e que concentra com avidez a grande parte da riqueza nacional.

É essa indisposição de repartir a riqueza que causa uma forma bem peculiar, mas profundamente autoritária e bem sucedida, de racismo, o qual está capilarizado em nossa sociedade.

IMIGRAÇÃO NO PARANÁ

Uma coisa que poucos sabem fora do Paraná é que quando os primeiros imigrantes europeus, principalmente os poloneses, chegaram para substituir a mão de obra escrava negra, eles não foram recebidos como seres humanos superiores aos que estavam substituídos.

Aliás, até hoje, a maioria dos descendentes daqueles imigrantes continuam ocupando, em sua maioria, estratos inferiores das classes sociais. A diferença fundamental é a cor da pele, pois por serem brancos, eles não recebem a mesma mão pesada que se abate sobre os descendentes dos escravos negros.

E isso não sou quem estou falando, mas as estatísticas oficiais sobre qualquer aspecto que for considerado, a começar, obviamente, pelo número de mortos pelas forças de segurança do estado brasileiro.

HERANÇA ESCRAVOCRATA 

Morando em Campos dos Goytacazes (RJ), cujos senhores de escravos foram os que mais longamente resistiram ao fim oficial da escravidão em 13 de maio de 1888, não posso deixar de notar que somos uma cidade de população majoritariamente negra.

Mas essa maioria de descendentes daqueles que fizeram a riqueza correr para dentro de grandes casarões onde a oligarquia se refastelava com o fruto do trabalho escravo, ainda continua sendo exposta ao que de pior pode ser oferecido a eles, a começar, obviamente, pela violência extrema em que vivem submetidos a todo tipo de negação a direitos básicos como a de viver em tranquilidade e como serviços básicos sendo oferecidos de forma digna.

Como vejo regularmente pelas ruas da cidade jovens negros sendo encostados em paredes para serem revistados sabe-se lá por qual razão, fico sempre com a percepção de que nascer e viver dignamente com uma pessoa negra no Brasil é acima de tudo um ato de resistência e coragem. É que os abusos e os riscos são de tamanha ordem que chega a ser inusitado encontrar pessoas negras que conseguem envelhecer dentro de um nível mínimo de dignidade, enquanto lhes [é] negado tudo que uma minoria branca de oligarcas tem como direito natural.

Por isso, no dia em que se completam 131 anos da assinatura da chamada “Lei Áurea”, penso que é preciso dizer claramente que a sociedade brasileira ainda nem começou a saldar a dívida histórica que existe com os descendentes dos que foram trazidos como escravos da África para viabilizar o sistema econômico colonial, e têm até hoje sobre as suas costas o peso maior de viver em um país que lhes nega a devida reparação.

A verdade é que não bastam celebrações protocolares para uma lei que só foi assinada por causa da determinação do Império Britânico em função de suas necessidades de expandir o Capitalismo.

O que precisamos de uma vez por todas reconhecer que a violência que grassa na sociedade brasileira é não apenas concentrada em regiões pobres e ocupadas por pessoas que descendem dos escravos africanos, mas que só será resolvida quando forem tomadas medidas estruturais para finalmente do Brasil uma sociedade que prestou contas a si mesma. Até que isso aconteça, celebrações protocolares não impedirão os massacres cotidianos que ocorrem nas favelas e comunidades pobres do nosso país.

Marcos Pedlowski – Professor Associado da Universidade Estadual do Norte Fluminense, Campos-RJ; Bacharel e Mestre em Geografia pela UFRJ e PhD em “Environmental Design and Planning” pela Virginia Tech.

A princesa Isabel num dos balcões do Paço da Cidade do Rio de Janeiro. Foto: Senado Federal

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