A Constituição contra o genocídio: a resistência Waimiri-Atroari e o direito de consulta na obra do Linhão de Tucuruí. Por Julio José Araujo Junior*

Do blog de Frederico Vasconcelos, na Folha

O Tribunal Regional Federal da 1ª Região vai analisar no dia 19 de junho a nulidade do leilão que impôs o linhão de Tucuruí ao território do povo Waimiri-Atroari

Na história do Brasil, a relação com os povos indígenas é marcada por diversos capítulos de negação da identidade e violação de direitos. A ditadura militar foi mais um. Em nome de políticas integracionistas e da defesa do chamado “interesse nacional”, o Estado brasileiro promoveu deslocamentos forçados e desterritorializações, provocou mortes e acentuou os processos de invisibilização desses grupos.

Um episódio emblemático foi a construção da Rodovia BR-174, que liga Manaus a Boa Vista.

Segundo a Comissão Nacional da Verdade, 2.650 indígenas da etnia Waimiri-Atroari foram mortos durante a sua construção nos anos 1970. Além da adoção de políticas de “pacificação” para atrair os índios e afastá-los do local da obra, com fortes impactos decorrentes do contato interétnico, a ditadura lançou mão de políticas de extermínio contra aquele povo, adotando mecanismos de enfrentamentos diretos e ataques às aldeias.

O genocídio do povo Waimiri-Atroari é objeto de uma ação judicial na qual se busca a declaração de responsabilidade do Estado brasileiro e o estabelecimento de medidas de reparação que garantam a não-repetição das atrocidades cometidas.

No dia 27 de fevereiro deste ano, a Justiça Federal realizou uma audiência na terra indígena para ouvir os sobreviventes acerca dessa atrocidade. Mortes de familiares, ataques por tiros e bombas, de forma terrestre ou aérea, foram relatados. Segundo os indígenas, homens fardados esfaquearam seus parentes e provocaram diversos danos às suas terras.

No mesmo dia, o governo federal deu um passo rumo à reprodução do mesmo cenário de violações do passado.

Enquanto os indígenas traziam à tona memórias sufocadas sobre um empreendimento construído no período autoritário, o Conselho de Defesa Nacional realizava reunião para definir a construção de uma linha de transmissão em traçado paralelo ao da rodovia sem a observância dos procedimentos legais. Na oportunidade, o conselho declarou estratégica a obra, que faz parte do Linhão de Tucuruí, sob o fundamento da soberania e da defesa nacionais.

O objetivo, assumido pelo Ministério de Minas e Energia, é acelerar o processo de licenciamento e afastar a realização de procedimentos legais de consulta aos indígenas Waimiri-Atroari.

Licitada em 2011, a obra do Linhão não foi iniciada em razão de ilegalidades insanáveis na sua formatação, já reconhecidas pelo Judiciário, decorrentes justamente da falta da consulta prévia, livre e informada aos índios, assegurada pela Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Além disso, alternativas de traçado ou outras fontes energéticas não foram sequer consideradas à época, o que tornou o procedimento totalmente nulo, conforme manifestação em primeiro grau e que será analisada pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região no próximo dia 19 de junho.

Agora, diante do cenário de crise geopolítica, alude-se ao rótulo genérico da “defesa nacional” para uma obra que só ficará pronta, no melhor dos cenários, no prazo de três anos.

A solução do problema de energia em Roraima é importante, mas nunca houve preocupação governamental em analisar, como a lei manda, as diversas possibilidades que se apresentaram. Ao contrário, insistia-se em ilegalidades que foram rechaçadas pelo Judiciário em mais de uma oportunidade.

Havia cinco traçados para a linha de transmissão, um deles sugerido pelos próprios Waimiri-Atroari, porém foram descartados de plano. O traçado que cruza o território indígena foi definido após um único ato: a realização de um sobrevoo na área.

Soma-se a isso o fato de que a possibilidade de utilização de energia solar não foi cogitada. Além de não causar os mesmos danos socioambientais, a outra fonte energética seria implementada em prazo menor, conforme demonstram estudos até agora ignorados pelo governo federal.

Caso repita um padrão decisório que já legitimou atrocidades massivas no passado, o governo federal mostrará não apenas que lições não foram aprendidas, mas também que ignora o legado que a Constituição de 1988 insiste em fazer valer.

Se a legislação tivesse sido observada desde o início, é possível que a consulta já tivesse sido realizada e que a obra até já houvesse sido definida. Mas preferiu-se o clássico caminho da negação de direitos, pois reconhecê-los implicaria adotar o mesmo procedimento em todos os casos e para todos os grupos, como manda a Constituição e o tratado internacional.

É por isso que a luta do povo Kinja, como os Waimiri-Atroari se autodenominam, não pode ser resumida a um interesse de um grupo contra a população do Estado de Roraima ou contra a soberania nacional. Trata-se de uma luta pela afirmação de direitos básicos dos povos indígenas consagrados na Constituição e que impõem um dever estatal e uma garantia de que genocídios e atrocidades não mais se repitam.

Julio José Araujo Junior é procurador da República no Rio de Janeiro. O autor é coordenador do Grupo de Trabalho Povos Indígenas e Regime Militar (6ª Câmara do Ministério Público Federal), mestre em Direito Público pela UERJ e autor do livro “Direitos territoriais indígenas – uma interpretação intercultural”.

Terra Indígena Waimiri-Atroari: ditadura militar atacou com napalm o povo. Foto: Arquivo Empresa Brasil de Comunicação (EBC)

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