Por Cynthia Torres Cristófaro, em Alguém em Nós
Outro dia, numa rua totalmente congestionada nos dois sentidos, eu estava parada com a janela do carro aberta pensando na vida. Levei um susto enorme quando um homem passou de motocicleta entre os carros que tentavam ir e os carros que tentavam vir e, bem na minha janela, gritou bem alto para mim: “vai se f… você também!”. Parece bobo, mas fiquei tão ofendida.
Veja, eu também gosto de andar de moto, então não sou o tipo de motorista que fica bestando no meio da rua atrapalhando a passagem das motocicletas. O xingamento do sujeito foi totalmente despropositado… o que na verdade nem faz tanta diferença, porque a pergunta que me pegou foi: quando foi que a gente perdeu completamente a educação?, seguida pela triste constatação de que não perdemos só a educação, perdemos foi o limite mesmo.
Quando você vê um sujeito à vontade para sair xingando mulheres com palavrões só porque ele (e a torcida do Corinthians, né, querido) está irritado com o trânsito, quando você vê três sujeitos super à vontade para segurarem uma moça pelo pescoço em plena Avenida Paulista só porque não gostam da orientação política dela, não tem como não perceber que a violência está à solta, e pior, legitimada, na nossa sociedade.
Quem já teve filhos adolescentes sabe que a “idade da razão” é um desespero contínuo para os pais. Os adolescentes estão no movimento de descolamento dos valores paternos, é um questionamento sem fim de valores, uma energia interminável para testar limites. O que resta é rezar para que eles sobrevivam… e para que pelo menos o básico de tudo aquilo que você foi enfiando na cabeça deles desde que eram pequenininhos tenha ficado lá.
No processo de conviver com a adolescência alheia, você acaba percebendo uma coisa: enquanto eles estão fazendo escondido as coisas que não deveriam fazer de jeito nenhum, ainda há esperança.
Como assim???? Estão mentindo para você, enganando, escondendo as desobediências! Pois é, meu amigo. É que se estão escondendo os malfeitos é porque ainda sabem que são malfeitos, a noção de certo e errado está ali na consciência dando algum sentido de culpa, vergonha, medo. Quando estiverem fazendo os malfeitos na sua cara e na cara do mundo, já era; os valores que você tentou ensinar não colaram.
Por isso que a sociedade violenta e escandalosa que estamos sendo ultimamente é tão assustadora para mim. A sociedade que acha que está ok xingar os outros no trânsito, dar uma gravata em três contra um no diferente político, enforcar um rapaz na frente da mãe desesperada no supermercado, honrar torturadores e coisas quetais não está com nenhuma vergonha. Não sente culpa alguma. Perdeu mesmo a noção do certo e errado.
“Melhor assim, pelo menos a gente sabe o que está dentro das pessoas”. Será? É que quando o racismo, o machismo, a intolerância ao diferente, o egoísmo social estavam só dentro das pessoas, mas elas não se sentiam à vontade para gritar esses (des)valores na Praça da Sé virtual do Facebook, o monstrinho do mal ainda estava guardado na caixa da vergonha.
Quando o mal se esparrama nu e orgulhoso pelo meio de nós, quem pode prever de que tamanho ele vai ficar?
–
Cynthia Torres Cristófaro – Juíza de Direito em São Paulo desde 1994
‘O Grito’, de Edvard Munch. Recorte