Na disputa da direita com a direita, pelas almas, pelos cliques e pelos votos, a milícia enfrenta dificuldades para mudar a imagem sem perder poder de pressão
O Brasil tem apenas três possibilidades de aborto legal: em caso de estupro, risco de morte da mãe e feto anencefálico. Ao propor um projeto na Câmara de Vereadores de São Paulo para dificultar a interrupção da gestação nestes casos, um dos mais conhecidos membros do Movimento Brasil Livre (MBL), Fernando Holiday (DEM), sabe que o projeto pode ser contestado na Justiça porque extrapola a competência do município. A constitucionalidade, porém, não importa. Não importa se o projeto vá adiante ou não, importa ser relacionado por eleitores à “defesa da vida”, mesmo que isso comprovadamente signifique a morte de mulheres. Importa manter seguidores que começam a se afastar e importa também conquistar seguidores novos, especialmente entre evangélicos neopentecostais. Nem que para isso seja necessário defender a tortura das mulheres. O cinismo se torna cada vez mais – literalmente – criminoso no Brasil.
A estratégia de Holiday e do MBL não é nova. Mas costuma funcionar. Nas eleições de 2010, o então candidato José Serra (PSDB) usou o aborto como moeda eleitoral. Para se manter competitiva, Dilma Rousseff (PT) recuou vergonhosamente de suas posições. Sob orientação de Lula, aceitou a “ajuda” de Eduardo Cunha (PMDB) junto aos evangélicos, o contingente que mais cresce no Brasil, para conquistar a presidência. O que aconteceu depois com os personagens todos sabem.
Desde então, as mulheres têm visto seus direitos serem leiloados no Congresso. No momento em que Jair Bolsonaro deve grande parte de sua eleição a líderes evangélicos do nível de Silas Malafaia e tem como principal interlocutor junto à bancada no parlamento o deputado federal e pastor Marco Feliciano (Podemos), chantagear com a vida das mulheres se tornou um esporte ainda mais popular.
O MBL tem usado essa tática desde 2017, quando percebeu o potencial de usar os temas chamados “morais” para manter o ódio ativo e os seguidores mobilizados. A estratégia funcionou (muito) bem quando uma massa de brasileiros se deixou convencer de que o grande problema do Brasil eram os pedófilos nos museus. Durante semanas, a falsa controvérsia ocupou as redes sociais. Protestos diante de centros culturais foram organizados contra artistas e curadores de exposições. O ataque era também contra a cultura e o financiamento da cultura, sempre relegados no Brasil, mas ainda assim alvos de ódio.
A estratégia foi usada primeiro em setembro de 2017, na exposição do “Queer Museu”. Os ataques levaram ao cancelamento da mostra pelo Santander Cultural, em Porto Alegre. Dali em diante, a estratégia foi replicada por semanas, em diferentes episódios pelo Brasil, provocando ataques contra artistas, que correram o risco de morte. Alguns até hoje estão juntando os pedaços de suas reputações destruídas pelo incitamento do ódio por milícias como o MBL.
Por que naquele momento? Porque Michel Temer (MDB) tornava-se um verbete de dicionário para político corrupto. Primeiro foi mala de dinheiro. Mais adiante, seu comparsas criariam a figura do “apartamento de dinheiro”. O MBL liderou as ruas pelo impeachment de Dilma Rousseff (PT) sacudindo a bandeira da anticorrupção. Mas foi bem mais compreensivo com a corrupção exponencialmente mais explícita de Temer e demorou a pedir sua renúncia nas redes sociais. Não houve manifestações gigantes exigindo o impeachment de Temer.
Quando o governo Temer completou um ano, em agosto de 2017, Kim Kataguiri, um dos principais líderes do MBL, deu uma entrevista à revista Exame. O jornalista perguntou: “Por que vocês não foram às ruas na votação da denúncia contra o Temer?”. E Kataguiri respondeu: “Em primeiro lugar porque, diferente do que aconteceria com Dilma, Temer será julgado pelos crimes pelos quais foi denunciado. A votação na Câmara apenas resulta numa suspensão. Perdendo o mandato de presidente da República, Temer será julgado como um cidadão comum. Além disso, não há alternativa. De que adianta tirar Temer para colocar Rodrigo Maia, que também é investigado e, para piorar, foi eleito presidente da Câmara com apoio do PT e do PCdoB?”.
Hoje, Kim Kataguiri é deputado federal pelo DEM de Rodrigo Maia, que é novamente presidente da Câmara. Já naquele momento, porém, até mesmo os seguidores mais obtusos eram capazes de enxergar que algo não fechava. Nenhum fato relacionado a Rousseff, a presidente destituída, chegava sequer perto do que já era evidente na conduta de Temer desde o início do governo. Tanto que, depois de sair da presidência, ele já foi preso duas vezes e ela nenhuma. Os líderes do movimento “anticorrupção”, porém, pareciam muito menos revoltados.
Como explicar o inexplicável? Como explicar não liderar movimentos de rua contra a corrupção explícita do presidente que ajudaram a catapultar para o poder? Criando um falso inimigo. Tática velhíssima que aqueles que são chamados de “nova” direita usam abertamente, apostando na estupidez de parte da população. E assim, em 2017, com o povo perdendo direitos, o desemprego e a pobreza aumentando e a popularidade de Temer despencando, de um dia para o outro o grande problema nacional virou a pedofilia nos museus. Parece uma insanidade, mas aconteceu. Funcionou. O MBL conseguiu.
Serviço feito, a campanha eleitoral de 2018 começou muito antes do início oficial, os ódios foram mobilizados pelo bolsonarismo e pela disputa se Lula poderia ou não ser candidato a presidente. Os pedófilos que nunca foram pedófilos, mas sim vítimas de uma campanha de ódio, sumiram do noticiário de mentira das redes sociais das milícias.
Com o ódio calculadamente canalizado contra falsos monstros em 2017, os homens que pregam e praticam monstruosidades aumentaram suas chances de serem eleitos em 2018. O resultado da ampliação da base eleitoral a partir da criação de monstros foi a eleição de uma criatura humana bem real chamada Jair Bolsonaro. O “mito” – ou o “coiso”, conforme o interlocutor – deve parte de sua vitória eleitoral às milícias, e especialmente ao MBL, mesmo que a organização não tenha apoiado o candidato de extrema direita explicitamente na eleição de 2018.
Politicamente espertas, lideranças do MBL tiveram o cuidado de, ao mesmo tempo, reforçar o antipetismo sem se comprometer por completo com um candidato imprevisível como Bolsonaro. “Voto no Bolsonaro, mas é voto útil. Não é o cenário ideal, existem pessoas mais preparadas, mas infelizmente é o que a gente tem”, afirmou Kataguiri após ser eleito deputado federal por São Paulo. “Não dá para a gente arriscar ter o programa do Haddad, um cenário de totalitarismo assustador.”
Em 2019, o MBL dá sinais de buscar o reposicionamento da marca. Depois dos grandes protestos pelo impeachment de Dilma Rousseff, alguns de seus principais líderes, como Kim Kataguiri e Fernando Holiday, passaram a disputar eleições e foram eleitos por um partido de política tradicionalíssima como o DEM. Aliar-se explicitamente a Bolsonaro não lhes interessa. Primeiro, porque é um governo cujo futuro é imprevisível, e que tem como estratégia se opor ao Congresso, espaço onde Kataguiri quer alcançar proeminência. Segundo, porque seriam engolidos pelo bolsonarismo, o que enfraqueceria o grupo que se empenharam em construir e que lhes garante tanto a sobrevivência quanto um lugar na disputa pelo poder. O bolsonarismo já tem vários personagens disputando protagonismo, além da própria criatura que dá nome ao fenômeno.
O DEM, partido de Kataguiri e de alguns membros do MBL que se candidataram a cargos eletivos, lidera a Câmara e o Senado, o que soa muito mais promissor. Kim Kataguiri voltou a se concentrar nas bandeiras de fato liberais, buscando ganhar destaque na aprovação da reforma da previdência. Tem apostado na construção do personagem do conservador moderado. Parece estrategicamente importante se opor também na estética aos conservadores da linhagem de Olavo de Carvalho e sua turma – barulhentos, sem limites e muito parecidos com o que o MBL era até bem pouco tempo atrás, e explicitamente contra o Congresso.
O MBL compreendeu que, com Bolsonaro no poder, era necessário diferenciar as direitas para manter protagonismo. Para isso, é necessário também deixar de se comportar como milícia. No quesito “milícia”, o bolsonarismo liderado por Carlos Bolsonaro nas redes sociais se tornou imbatível. O MBL tenta virar menos uma milícia e algo mais parecido com um partido, mas sem tornar-se formalmente um partido, para poder seguir criticando todos os partidos e tomar partido (e deixar de tomar partido) do que for mais conveniente para a ocasião.
Em 2019, o MBL parece outro, como foi apontado por parte de seus seguidores em manifestações na internet – e também nas ruas. Aparentemente ficaram para trás os tempos de chamar artistas de “pedófilos”, destroçar reputações (e vidas) de opositores nas redes sociais com informações forjadas, chamar todos os que contrariavam seu projeto de poder de “esquerdopatas”, converter qualquer pessoa que deles discordasse num inimigo a ser destruído. Pelo menos temporariamente, já que milícias como o MBL agem por conveniência e são capazes de realinhar suas táticas rapidamente se o momento exigir.
A palavra que têm usado para justificar a mudança é “amadurecimento”. O vereador Fernando Holiday declarou em abril que passou a olhar os professores com melhores olhos. “Amadureci”, disse ele. Depois de invadir escolas públicas e incitar alunos a gravar aulas de professores que, segundo ele, pregavam ideologia, declarou-se “arrependido”. “A forma como eu defendia o projeto (“Escola Sem Partido”) estava absolutamente errada, que é transformar o professor em um dos maiores problemas da nossa educação”, afirmou à Folha de S. Paulo. “Uma parte da direita realmente deu início à perseguição (aos professores). A principal diferença no projeto está entre quem vê a maioria dos professores como doutrinadores e quem vê uma minoria como doutrinadores. A maior parte dos professores dá sua aula sem colocar sua opinião. Vi isso na minha vida escolar. Essa parte que enxerga a maioria dos professores como doutrinadores vê como problema grave, a ponto de querer o direito de filmar as aulas. É um grande equívoco.”
Quando o MBL declarou que não apoiaria as manifestações a favor de Bolsonaro – e contra o Supremo Tribunal Federal e o Congresso –, ocorridas em 26 de maio de 2019, Holiday tuitou: “A direita não é uma coisa uniforme, e isso é bom. Existem várias vertentes, e usar guerrilhas digitais contra quem pensa diferente não ajuda a convencer o outro. Não vamos às manifestações porque consideramos um erro estratégico. Mas isso não significa que ficaremos parados”. Sim, é isso mesmo. O MBL estava acusando as “guerrilhas digitais” de atuarem contra quem pensa diferente.
Dias antes das manifestações de 26 de maio, em entrevista ao jornal O Globo, Kim Kataguiri mostrou-se abismado por estar sendo chamado de “comunista”: “Estão me chamando de comunista. (…) Todo mundo que se posiciona contrário é comunista. Quem discorda do Bolsonaro é comunista. Essa é a definição histórica de comunismo, discordar do Bolsonaro. É um discurso do Olavo (de Carvalho) demonizar qualquer pessoa que discorde do discurso dele”. Kataguiri também se revelou chocado com a “demonização” dos políticos e da política.
Sim, vivemos para ver isso.
Aqueles que compõem o terço da população que, segundo as pesquisas de opinião, têm demonstrado apoio incondicional a Bolsonaro, independentemente das bobagens que ele faz e diz como presidente, reagiu. O MBL foi acusado de “traidor” nas redes sociais e nas ruas por seguidores fiéis até ontem. Mesmo sem apoio do grupo, as manifestações de apoio a Bolsonaro foram maiores do que seus líderes calculavam que seriam, o que mostrou tanto que poderiam perder mais seguidores do que supunham quanto que a multidão não está sob seu controle.
Em março de 2016, às vésperas de uma manifestação “anticorrupção”, Kim Kataguiri fez uma analogia entre as massas nas ruas e a série de TV Power Rangers, em artigo na Folha de S. Paulo: “Com seis anos, eu lutava contra monstros que eram derrotados e voltavam gigantes. Lula, depois de ter sido derrotado no mensalão, voltou ainda maior no petrolão. Os Rangers uniam-se e fundiam seus veículos para compor o robô gigante. Precisamos de algumas centenas de milhares de brasileiros para montar o nosso”. Em 2019, o MBL está descobrindo, como o PT descobriu anos antes, que o “robô gigante” é fora de controle. Em algum momento, Bolsonaro também descobrirá.
Nas manifestações convocadas pelo MBL e outros movimentos, em 30 de junho último, realizadas para apoiar Sergio Moro, a Lava Jato e a reforma da previdência, parte dos apoiadores compareceu, mas alguns chamaram o MBL e seus líderes de “traidores”. Houve violência física no Rio de Janeiro e gritos de “Ei, MBL, vai tomar no cu”, em São Paulo. Essa parcela da direita, treinada por milícias como o MBL a odiar qualquer opositor de ideias, exige que o MBL apoie o governo Bolsonaro contra os “esquerdopatas” e “comunistas”. A “Marcha para Jesus”, ocorrida em 20 de junho, mostrou de forma inequívoca o quanto os evangélicos neopentecostais vão se tornando mais e mais importantes, agora que ocupam pela primeira vez o centro do poder com Bolsonaro.
Reposicionar a marca MBL e manter os apoiadores não é uma tarefa fácil num momento em que cerca de um terço da população considera de centro tudo o que não é extremo. A direita mais moderada não teve nenhuma chance nas eleições presidenciais de 2018. Foi vista como de “centro”. E essa parcela da população que se mantém fiel a Bolsonaro não quer “centro”, quer extremo. Afirmam que são a “direita verdadeira”. MBL e outros, acusados de não ser “de verdade”, a chamam pejorativamente de “direita true”.
O que fazer então para conquistar esse público, sem ter que se alinhar a Bolsonaro? Como a reforma da previdência está longe de ser um dos temas mais populares do país, o mais óbvio, e que já deu certo antes, é apelar para os temas “morais”. Manter o ódio ativo. E, principalmente, deslocá-lo para longe de si.
É neste contexto que pode ser compreendida a segunda ofensiva do MBL no chamado “campo dos costumes”, (que está mais para campo do ódio), representada pelo projeto de Fernando Holiday. Apesar de ser um projeto de vereador, ele conseguiu enorme destaque no noticiário nacional. O tema do aborto é um dos que mais mobiliza as paixões nacionais e um dos que mais encontra adesão nas camadas da população que se definem pela religião, como os evangélicos. Kataguiri disputa protagonismo na defesa da reforma da previdência no Congresso, Holiday age nos temas morais na Câmara de Vereadores da maior cidade do país. Tudo é notícia e mobilização.
O que defende Fernando Holiday em seu projeto contra as mulheres? Criar dificuldades para aquelas que engravidaram do estuprador ou que podem morrer se continuarem a gestação ou que estão gerando um feto incompatível com a vida, caso da anencefalia. Aparentemente, para o MBL, não basta o sofrimento de gerar um bebê do estuprador, o sofrimento de ter que escolher interromper a gestação para não perder a própria vida, o sofrimento de gerar um filho que vai morrer antes mesmo de nascer ou minutos ou horas depois de nascer. Não. É preciso que as mulheres sofram um pouco mais, impedindo-as de exercer o seu já tão restrito direito assegurado por lei. Pesquisa recente mostrou que o aborto legal é negado em quase 60% dos hospitais públicos listados pelo governo para fazer a interrupção da gestação, o que torna o acesso ainda mais difícil para mulheres já numa condição extremamente difícil.
O projeto de lei 01-00352/2019 (leia aqui), de Fernando Holiday, determina que as mulheres só tenham acesso aos seus direitos depois de emitido um alvará judicial, que será submetido à Procuradoria-Geral do Município. Ainda assim, antes de poder realizar a interrupção da gestação (em caso de estupro, risco de morte da mulher e feto anencefálico), a mulher tem que esperar 15 dias e obrigatoriamente se submeter aos seguintes procedimentos: “I) atendimento psicológico com vistas a dissuadi-la da ideia de realizar o abortamento; II – atendimento psicossocial que explique sobre a possibilidade de adoção em detrimento do abortamento; III – exame de imagem e som que demonstre a existência de órgãos vitais, funções vitais e batimentos cardíacos; IV – demonstração das técnicas de abortamento, com explicação sobre os atos de destruição, fatiamento e sucção do feto, bem como sobre a reação do feto a tais medidas”.
Sim, é isso mesmo. A liderança do MBL quer que a mulher que foi estuprada e engravidou do estuprador, a mulher que se encontra em situação de risco de morte e a mulher cujo filho não vai poder viver por conta de uma malformação incompatível com a vida seja obrigada a ouvir o coração do bebê, a ver a sua imagem e a assistir a demonstrações de “atos de destruição, fatiamento e sucção do feto, bem como à reação do feto a tais medidas”.
Mas não é só isso. O artigo sexto do projeto diz o seguinte: “Se, em qualquer caso de atendimento médico, for detectada uma gravidez em que as condições sociais e psicológicas da gestante indiquem propensão ao abortamento ilegal, o Município requererá medidas judiciais cabíveis para impedir tal ato, inclusive a internação psiquiátrica”.
Sim, Holiday quer fazer a sua parte para o retorno dos manicômios e quer mandar as mulheres para lá. Como a reação negativa ao projeto de lei foi grande, inclusive porque é um projeto claramente contra a lei e contra tratados aos quais o Brasil é signatário, Holiday afirmou ao repórter Felipe Betim, do EL PAÍS, que pretende rever alguns pontos do projeto.
Também repetiu o discurso do “amadurecimento”, que busca ancorar o reposicionamento da marca MBL: “Acredito que a gente (MBL) ajudou a simplificar o debate político de uma forma perigosa, resumindo tudo a memes e aumentando a tensão política. Nesse sentido, acho que o MBL precisa e já está fazendo essa autocrítica de tentar qualificar o debate político como um todo, algo menos simplificado e não tão polarizado como a gente fez no passado. Nos nossos encontros regionais temos escutado nossa militância e feito autocrítica diante de nossa militância. E acho que faz parte do caminho natural do crescimento e do amadurecimento político pelo qual estamos passando”. Como compatibilizar o “amadurecimento” com o projeto para dificultar o aborto legal protocolado em maio, não explicou.
Mesmo que Holiday altere o projeto, até porque vários juristas disseram ser inconstitucional, o objetivo já foi alcançado. As ideias nele contidas já foram lançadas, e as camadas da população às quais ele e o MBL querem agradar já as ouviu e já se manifestou sobre elas. O MBL já fez, mais uma vez, o serviço de criminalizar inocentes, neste caso mulheres num momento de intenso sofrimento, tentando exercer um direito legal que o Estado falha em garantir.
O próprio Holiday admite ter se inspirado em legislações de estados americanos conservadores, “especialmente o Alabama”. Vale a pena ver o que aconteceu no Alabama recentemente. Em dezembro, Marshae Jones, 27 anos, estava grávida de cinco meses quando foi baleada no ventre durante uma discussão. O tiro atingiu o feto, que morreu. A polícia entendeu que a mulher que puxou o gatilho tinha cometido homicídio involuntário. Mas o grande júri da cidade de Jefferson decidiu que a atiradora não tinha responsabilidade. Ao contrário: condenou a mãe do bebê por assassinato, argumentando que foi ela quem iniciou a discussão e, portanto, é ela a culpada pela morte do feto.
É esse tipo de raciocínio mais do que tortuoso que vem sendo construído. Em maio, o Alabama aprovou uma lei que restringe o direito ao aborto apenas aos casos em que a vida da mãe está em risco. No conservador estado do sul, quem foi estuprada ou foi vítima de incesto já não pode interromper a gestação. Médicos que não cumprirem a nova lei se arriscam a pegar até 99 anos de prisão. Estas são as fontes onde a liderança do MBL foi buscar inspiração no seu período de “amadurecimento”.
O novo ataque do MBL, agora em disputa com a ultradireita bolsonarista pelas almas de direita do país, é desferido contra as mulheres. É obrigatório observar, porém, que as mulheres não são um genérico. Quem precisa dos hospitais públicos para abortar no Brasil são as mulheres mais pobres. E as mulheres mais pobres no Brasil são negras. Segundo o relatório “Entre a morte e a prisão – quem são as mulheres criminalizadas pela prática do aborto no Rio de Janeiro”, da Defensoria Pública do Rio, entre 2000 e 2012 o número de mulheres negras mortas por aborto cresceu de 34 para 51 mortes por 100 mil partos. No mesmo período, o número de mulheres brancas diminuiu de 29 para 15 mortes por 100 mil partos.
A falta de acesso ao aborto legal é também resultado do racismo estrutural do Brasil. Propor uma lei para dificultar ainda mais o acesso das mulheres ao aborto legal é propor uma lei para barrar principalmente o acesso das mulheres negras ao aborto legal. É ainda colaborar ativamente para que mais mulheres negras morram ao fazer abortos. E mais crianças negras fiquem órfãs porque perderam as mães por falta de acesso à saúde. E, então, mais famílias negras ficarão socialmente vulneráveis, como mostram as pesquisas nessa área. E assim segue o genocídio. Holiday, vale lembrar, também já protocolou na Câmara de Vereadores um projeto contra as cotas raciais e para acabar com o Dia da Consciência Negra.
Em junho de 2018, ele gravou um vídeo, disponível no YouTube, para reafirmar aos seguidores que “o MBL é oficialmente contra o aborto”. Nele, reproduz imagens de um vídeo anterior de Kim Kataguiri, no qual o hoje deputado mostra a imagem de um feto e diz que só “um psicopata” chama aquilo de “amontoado de células”. O MBL já estava preocupado com acusações de seus seguidores de não ser a “direita verdadeira”.
Quem converte o corpo das mulheres em moeda ideológica, e no Brasil é principalmente o corpo das mulheres negras, está defendendo a cultura da morte. E não a da vida. A guerra da direita com a direita pelas almas e pelos votos já mostrou quais são os corpos que serão sacrificados. Mais uma vez.
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Foto: CHARLES SHOLL (FOLHAPRESS)