NYT: Uma operação contra a corrupção na política brasileira, mas nem tanto

Uma das principais figuras na luta do Brasil contra a corrupção, atual ministro da Justiça, Sérgio Moro,  foi desmascarado como corrupto em série de reportagens do The Intercept Brasil

Por Vanessa Barbara, The New York Times /Estadão

SÃO PAULO – Na superfície, a Operação Lava Jato é uma virtuosa cruzada contra a corrupção na política brasileira. Nos cinco anos mais recentes, essa investigação federal revelou vastos esquemas de suborno envolvendo os mais importantes políticos e empresários do Brasil, levando ao indiciamento criminal de 429 indivíduos e à condenação de 159 deles. Os veículos de notícias cobriram entusiasmados cada passo da investigação, pressionando pelo fim de uma cultura de corrupção na política do país. Em tese, a investigação deveria ser uma fonte de orgulho para nossa jovem democracia – mas a história não termina aí.

Desde o início, a Operação Lava Jato recorreu a procedimentos questionáveis, como detenções preventivas para extrair confissões, apostando alto em generosos acordos de delação premiada. Mas esses pareceram insuficientes para desmerecer o esforço contra a corrupção em larga escala, ao menos aos olhos do público.

Então, no dia 9 de junho, o site de notícias The Intercept Brasil publicou a primeira de uma série de reportagens lançando dúvidas em relação à integridade dos principais atores da investigação. Os jornalistas obtiveram de uma fonte anônima um imenso arquivo de mensagens particulares, trocadas no serviço Telegram, entre procuradores federais e o principal juiz da Operação Lava Jato, Sergio Moro.

As mensagens mostram que Moro extrapolou com frequência o papel de juiz – que deveria ser imparcial – para atuar como uma espécie de conselheiro da promotoria. Ele ofereceu uma série de orientações aos promotores: sugeriu que invertessem a ordem de diferentes fases da investigação; que repensassem determinada moção que pretendiam apresentar; que acelerassem determinados processos; e retardassem o andamento de outros. Repassou à acusação informações a respeito de uma nova fonte potencial; repreendeu os promotores quando demoraram para montar novas operações; aprovou ou criticou as táticas deles; e deixou que tomassem conhecimento antecipadamente de suas decisões.

As revelações colocaram sob nova perspectiva a condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva por Moro em 2017. O político de esquerda, que governou o país de 2003 a 2010, se encontra preso, condenado por corrupção e lavagem de dinheiro. Foi declarado inelegível quando as pesquisas de intenção de voto mostravam seu nome liderando a corrida pelas eleições de 2018. A conveniente detenção de Lula abriu caminho para a eleição de Jair Bolsonaro, da extrema direita, que, uma vez eleito, nomeou Moro como ministro da justiça. Pois é.

De acordo com material publicado pelo The Intercept, ao longo da investigação, Moro interferiu em questões ligadas à cobertura da imprensa e se preocupou em obter o apoio do público à promotoria. “O que acha dessas notas malucas do diretório nacional do PT? Deveríamos rebater oficialmente?”, perguntou ele certa vez ao promotor federal Deltan Dallagnol, referindo-se a uma declaração do Partido dos Trabalhadores segundo a qual o indiciamento de Lula seria uma perseguição política. Repare o uso da primeira pessoa do plural, como se Moro e Dallagnol estivessem no mesmo time.

Tudo isso é altamente imoral – ou mesmo ilegal. Trata-se de uma violação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que diz: “Todo ser humano tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir sobre seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele”. De acordo com o código processual brasileiro, os juízes devem ser árbitros neutros e não podem orientar nenhuma das partes do caso. Moro também violou vários termos do código de ética, em particular aquele segundo o qual o juiz deve manter “uma distância equivalente em relação às partes”, evitando comportamentos que possam indicar “favoritismo, predisposição ou preconceito”.

Quando o vazamento foi noticiado, a força-tarefa da Lava Jato e Moro não negaram a autenticidade do material, dizendo em vez disso que, de acordo com Moro, as mensagens “não mostram sinais de anormalidade ou direcionamento da atuação enquanto magistrado”. Ele também se mostrou frustrado com a “falta de indicação da fonte ou pessoa responsável pela invasão criminosa de celulares de procuradores”. Mas, depois de alguns dias, Moro mudou de estratégia. Ele começou a questionar a autenticidade das mensagens, que, na opinião dele, poderiam ter sido adulteradas. 

Durante audiência no senado no dia 19 de junho, ele tentou as duas explicações ao mesmo tempo: se determinada mensagem “for autêntica”, disse ele, “mesmo se for autêntica, o conteúdo é absolutamente legal. Não há problema nesse tipo de declaração. Se a mensagem for totalmente autêntica. Como eu disse: não consigo lembrar se, três anos atrás, enviei uma mensagem dessa natureza”. 

Meu trecho favorito do material vazado, aliás, é um diálogo entre Moro e Dallagnol. Na mensagem, Dallagnol informa a Moro que enviou a ele uma petição como jogada estratégica, mas “não é essencial”. A Moro, Dallagnol diz, “fique à vontade, desnecessário dizer, para indeferir” a solicitação. Admiro as boas maneiras do procurador, que parece não querer pressionar, chegando até a oferecer ao juiz a escolha de decidir livremente nessa ocasião

Os textos também revelam outras violações, como o fato de os promotores terem debatido estratégias para impedir Lula de conceder entrevistas da prisão antes das eleições, já que isso poderia ajudar o candidato do PT, Fernando Haddad. No seu conjunto, os vazamentos revelam um juiz imoral, que juntou forças com promotores movidos por motivações políticas para deter e condenar indivíduos que eles já consideravam culpados. Para eles, a única questão era a melhor maneira de enquadrá-los.

No ano passado, os advogados de Lula entraram com recurso na suprema corte e solicitaram novo julgamento, argumentando que Moro não tinha sido imparcial; as mensagens vazadas foram agora somadas à petição. A Ordem dos Advogados do Brasil pediu a suspensão dos envolvidos no escândalo, dizendo em comunicado por escrito que “Não se pode desconsiderar, contudo, a gravidade dos fatos, o que demanda investigação plena, imparcial e isenta”. Mas um mês se passou desde as primeiras reportagens do Intercept. Na prática, nada foi feito. E Sergio Moro ainda é nosso ministro da justiça.

Vanessa Barbara é editora do site literário A Hortaliça, e autora de dois romances e dois livros de não ficção. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

Foto: GGN

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