Por: Wagner F. de Azevedo, em IHU On-Line
O Instrumentum Laboris – IL do Sínodo Pan-Amazônico, apresentado pelo Vaticano no dia 17-06-2019, tem sido classificado por alguns de seus críticos como “sincrético”. Entretanto, na sua origem, “a palavra ‘sincretismo’ significava não uma fusão de doutrinas, mas um acordo dos cidadãos de Creta e das ilhas adjacentes perante um adversário comum, interno ou externo”, explica o teólogo Paulo Suess ao comentar uma das objeções feitas ao documento. Segundo ele, “o adversário comum da natureza e dos habitantes da Amazônia é o sistema econômico que exclui e mata”. Nesse contexto, menciona, “oxalá, que o IL e o Sínodo consigam unir os diferentes ‘cretenses’, credos e crenças da Amazônia, numa aliança inter-religiosa e intercultural contra o Minotauro, monstro, metade homem, metade touro, que aguarda os perdidos no labirinto”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail para a IHU On-Line, Suess afirma que “se o objetivo principal do Sínodo é a identificação de novos caminhos, então a Igreja admite que os antigos caminhos não deram o resultado desejado e que está na hora de mobilizar-nos ‘para um processo de reforma missionária ainda pendente’” (LS 3). Para atingir esse objetivo, frisa, é preciso conhecer os sintomas e as causas que impediram de alcançar os resultados desejados. Entre as causas, o teólogo menciona “as grandes distâncias e a diversidade cultural na Amazônia às quais a Igreja ainda não soube estrutural nem pastoralmente responder, devido a prescrições com mentalidade colonizadora e centralizadora”. E adverte: “Depois de 500 anos de presença missionária, ainda não existe uma Igreja com rosto amazônico”.
Paulo Suess também comenta os principais pontos do Relatório Final do Simpósio Teológico que ocorreu em Roma uma semana depois da publicação do Instrumentum Laboris.
Paulo Suess é doutor em Teologia Fundamental, fundador do curso de Pós-Graduação em Missiologia, na então Pontifícia Faculdade Nossa Senhora da Assunção, em São Paulo, assessor teológico do Conselho Indigenista Missionário – Cimi e professor em várias Faculdades de Teologia no ciclo de Pós-Graduação em Missiologia.
Entre suas últimas publicações, estão Introdução à Teologia da Missão (Petrópolis: Vozes, 4. ed., 2015); Dicionário de Aparecida. 40 palavras-chave para uma leitura pastoral do Documento de Aparecida (São Paulo: Paulus, 2007); Dicionário da Evangelii gaudium (São Paulo: Paulus, 2015); Missão e misericórdia – A transformação missionária da Igreja segundo a Evangelii gaudium (São Paulo: Paulinas, 2017); e Dicionário da Laudato si’ – Sobriedade feliz (São Paulo: Paulus, 2017).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como foi feito o processo das escutas sinodais e qual sua avaliação sobre o processo?
Paulo Suess – O “Instrumento de Trabalho” (Instrumentum Laboris – IL) responde à primeira parte de sua pergunta: “No dia 15 de outubro de 2017, o Papa Francisco anunciou a convocação de um Sínodo Especial para a Amazônia, dando início a um processo de escuta sinodal que começou na própria Região Amazônica com sua visita a Puerto Maldonado (19 de janeiro de 2018). O presente Instrumentum Laboris é fruto desse vasto processo, que inclui a redação do Documento Preparatório para o Sínodo […] e um amplo inquérito entre as comunidades amazônicas” (IL 1).
As sínteses das diferentes escutas, consultas, seminários, assembleias e rodas de conversa das comunidades e grupos interessados dos nove países que fazem parte deste bioma, que é a Amazônia, somam mais de 1.500 páginas. Para a sua confecção, o IL recorre muitas vezes a essa síntese. As escutas em função do Sínodo foram amplas e contundentes. Os padres e madres (se houver!) sinodais estarão bem informados sobre a realidade da Amazônia e sobre o que as comunidades esperam da Igreja.
Os autores do IL tiveram o cuidado de basear todas as propostas em fontes e documentos eclesiais do Vaticano II, dos papas (João Paulo II, Bento XVI, Francisco), das Conferências Latino-Americanas de Medellín (1968), Puebla (1979), Santo Domingo (1992), Aparecida (2007), de encontros regionais como os de Santarém (1972/2012) e Manaus (2013), e, sobretudo, nas sínteses das consultas.
IHU On-Line – Pode nos dar exemplos de quais foram as demandas apresentadas pelas comunidades amazônicas, dos povos originários, leigos e religiosos no processo sinodal? Em que aspectos as demandas desses diferentes grupos convergem e se distanciam?
Paulo Suess – “Ao iniciar a redação do Instrumentum Laboris nós nos fizemos as mesmas perguntas. A região, marcada por grandes distâncias, diversidades socioculturais, uma natureza exuberante e ameaçada por um sistema econômico mundial de cobiça, desigualdade e exclusão que mata (cf. Discurso do Papa Francisco, no “II Encontro Mundial dos Movimentos Populares”, dia 9 de julho de 2015, em Santa Cruz de la Sierra, Bolívia), facilitou identificar certa convergência estrutural nas respostas. Procuramos encontrar um denominador comum das demandas apresentadas pelas comunidades dessa vasta região. O IL é a tentativa de uma síntese dessas demandas por “novos caminhos”.
No “Relatório Final” – RF de um “Simpósio Teológico”, uma semana depois da publicação do IL (17.06.2019), realizado em Roma, os participantes desse simpósio procuraram, com a ajuda de alguns conhecedores da Amazônia e de especialistas em questões de pastoral, sacramentos, ministérios, história e direito canônico, aprofundar aspectos mais importantes do IL para facilitar as decisões que o Sínodo em outubro haveria de tomar. Também esse texto, como o próprio IL, procurou não antecipar respostas do Sínodo, mas facilitar propostas que os participantes do Simpósio sintetizaram no item 3 (“Desde nosso simpósio, propomos”) de seu “Relatório Final”. Entre essas propostas estreitamente ligadas a propostas das diferentes comunidades amazônicas se encontram:
– Que o Sínodo inicie seu trabalho com uma sincera conversão (cf. IL 5, 102, 103), que deve ter três dimensões: “a conversão pastoral de uma Igreja que quer ser samaritana e profética” segundo a Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, a “conversão ecológica” integral proposta pela Encíclica Laudato Si’ e a “conversão sinodal” (cf. a Constituição Apostólica Episcopalis Communio), que descreve a função episcopal como a de “mestre e discípulo”, e reconhece a participação de todos os batizados que integram o povo de Deus e que receberam o Espírito que nos faz “infalíveis no ato da fé” (EC 5,3; 20).
– “O processo de conversão ao qual a Igreja é chamada implica desaprender, aprender e reaprender. Este caminho exige uma visão crítica e autocrítica que nos permita identificar aquilo que devemos desaprender, o que prejudica a Casa Comum e seus povos. Temos a necessidade de percorrer um caminho interior para reconhecer as atitudes e mentalidades que nos impedem de nos conectarmos conosco mesmos, com os outros e com a natureza” (RF; cf. IL 102).
– Que “o Sínodo não deve contentar-se em tratar esse ou aquele sintoma da situação eclesial. Devemos transformar nossa mentalidade. É preciso ir às causas. […] A cosmovisão dos povos indígenas amazônicos inclui o apelo a libertar-se de uma visão fragmentária da realidade, que não é capaz de entender as múltiplas conexões, inter-relações e interdependências” (RF; IL 95).
– Que a nova mentalidade seja de “uma Igreja em saída missionária desde e para as periferias, superando a mentalidade colonizadora em busca de uma «encarnação mais real para assumir diferentes modos de vida e culturas»” (RF; IL 113). Em Puerto Maldonado, o Papa Franciscose dirigiu aos sujeitos dessa encarnação: “Necessitamos que os povos originários moldem culturalmente as igrejas locais na Amazônia” (Fr.PM).
– Assumimos a orientação do Papa Francisco para “superar a rigidez de uma disciplina que exclui e distancia, por uma sensibilidade que acompanha e integra” (RF; IL 126b; Amoris Laetitia 297 e 132).
– Propomos uma encarnação mais real em todas as atividades, expressões, linguagens (IL 107) que abandone uma tradição colonial monocultural, clerical e impositiva para assumir, sem medo, as diversas expressões culturais (RF; IL 110, cf. EG 184, EG 40).
– Na Amazônia, como consequência das grandes distâncias, mas também por causa de uma teologia local e do povo de Deus, tudo aponta para uma “saudável «descentralização» da Igreja” (RF; IL 126d; EG 16), que exige “o passo de uma «pastoral de visita» para uma «pastoral de presença», para reconfigurar a Igreja local em todas as suas expressões: ministérios, liturgia, sacramento, teologia e serviços sociais” (RF; IL 128).
– “Tendo em conta que a Igreja remodelou os ministérios ao longo de sua história, atendendo às transformações socioculturais, […] este simpósio sugere ordenar para o ministério presbiteral a homens casados, com experiência cristã, que sirvam a comunidade desde sua profissão e vida familiar e possam celebrar a Eucaristia, a penitência e a unção dos enfermos em sua comunidade. Se pede que «em vez de deixar as comunidades sem Eucaristia, se mudem os critérios para selecionar e preparar os ministros autorizados para celebrá-la»” (RF; IL 126c).
– “Da escuta da realidade amazônica, evidencia-se a missão indispensável que têm as mulheres. Portanto, é urgente para a Igreja identificar o tipo de ministério oficial que pode ser conferido à mulher, tomando em conta o papel central que hoje desempenha na Igreja amazônica (cf. IL 129 a3). Nesse sentido, propomos que se reconheça sua liderança, promovendo diversas formas ministeriais de exercício e autoridade, e em particular se retome a reflexão sobre o diaconato das mulheres na perspectiva do Vaticano II” (RF; cf. LG 29, AG 16, IL 129 c2).
IHU On-Line – Que balanço o senhor faz da participação das comunidades amazônicas no processo sinodal?
Paulo Suess – As consultas e sínteses das comunidades da Amazônia mostraram que uma macrorregião, por causa das enormes distâncias e da pluralidade de sua configuração sociocultural, exige uma descentralização e diversificação pastoral e estrutural da Igreja. Os povos indígenas têm demandas diferentes dos ribeirinhos. O Sínodo deve delegar muitas decisões para as respectivas competências regionais do povo de Deus, como estão previstas na Constituição Apostólica Episcopalis Communio. O processo sinodal começou com o encontro do Papa Francisco com os povos indígenas, em Puerto Maldonado (Peru, 19.01.2018). A escuta sinodal e as decisões sobre uma Igreja com rosto amazônico fazem parte de um processo histórico contínuo.
IHU On-Line – Como a comunidade eclesial de fora da Amazônia tem participado do pré-Sínodo?
Paulo Suess – Na realidade e visão da nova física, que é a física quântica, a comunidade eclesial de fora da Amazônia não existe. A Amazônia é um lugar de macroparentesco. Tudo está conectado. Não existem ilhas de bem-estar social. Miséria e violência não são acidentes locais, mas produtos dessa economia que mata e destrói a Mãe Terra. As principais questões da humanidade são transversais e se tornam evidentes na Amazônia, que é um lugar de responsabilidade pelo conjunto da humanidade e do planeta Terra. Com a ameaça à Amazônia, a esperança do mundo (IL 37) está ameaçada.
Por meio desse macroparentesco, tudo está ligado com tudo, na Pastoral e na ecologia. Somos todos vizinhos e parentes. Olhando, por exemplo, para o desafio dos refugiados. Onde não há refugiados? Em que parte do mundo não há famintos, violência, agrotóxicos e drogados? Nas Igrejas locais temos, às vezes, mentalidades de certo paroquialismo – enquanto a nossa casa não pegou fogo, não cuidamos dos hidrantes da cidade. Creio que a participação ou, ao menos, a partilha do interesse no “Sínodo para a Amazônia” deve ainda crescer. Compreende-se que a presença de todos os problemas, em todos os espaços do mundo, nos pode cansar. O amor cansa e energiza. A solidariedade e a luta para que seja feita justiça aos nossos parentes, à humanidade e à natureza, podem-se tornar horizonte e razão da nossa vida. Precisamos ainda trabalhar melhor a Igreja em saída das fronteiras paroquiais e diocesanas. Para a Amazônia, para a solidariedade, para o amor e para a esperança não existe “comunidade eclesial de fora”. O “Sínodo para a Amazônia” pode nos ensinar que a energia e a criatividade da comunidade local estão na capacidade de derrubar os próprios muros. Nas culturas que se abrem para outras culturas, sem perder a sua identidade, brota a semente de uma grande civilização.
IHU On-Line – Como o processo do Sínodo Pan-Amazônico contempla, até o momento, o “principal objetivo dessa convocação”, que é, segundo o Papa Francisco, “identificar novos caminhos para a evangelização daquela porção do povo de Deus, especialmente dos indígenas”?
Paulo Suess – Se o objetivo principal do Sínodo é a identificação de novos caminhos, então a Igreja admite que os antigos caminhos não deram o resultado desejado e que está na hora de mobilizar-nos “para um processo de reforma missionária ainda pendente” (LS 3). Quais seriam as razões para essa afirmação? Para acertar respostas e propostas, precisamos distinguir entre sintomas e causas.
Sintomas
Depois de 500 anos de presença missionária, ainda não existe uma Igreja com rosto amazônico. A maioria dos bispos, sacerdotes e religiosos ou religiosas que trabalham na Amazônia brasileira, vinda de outras regiões ou outros países, não é nativa da região amazônica. Trata-se de uma Igreja missionária no sentido estrito. Ela não brotou dos diferentes povos e culturas locais. Trata-se de uma Igreja não inculturada que emergiu das respectivas culturas locais, nas quais se fez presente.
Causas
Causas são as grandes distâncias e a diversidade cultural na Amazônia às quais a Igreja ainda não soube estrutural nem pastoralmente responder, devido a prescrições com mentalidade colonizadora e centralizadora. O Instrumentum Laboris observa bem que essas causas fizeram da Igreja Católica na Amazônia, em muitas partes, um Igreja minoritária, porque as comunidades preferem um pardal (pastor) na mão à arara (sacerdote) no telhado:
“Entretanto, no meio da Floresta Amazônica há outros grupos presentes ao lado dos mais pobres, realizando uma obra de evangelização e de educação; são muito atraentes para os povos, embora não valorizem positivamente suas culturas. Sua presença permitiu-lhes ensinar e divulgar a Bíblia traduzida nas línguas autóctones. Em grande parte, estes movimentos se propagaram por causa da ausência de ministros católicos. Seus pastores formaram pequenas comunidades com rosto humano, onde os indivíduos se sentem valorizados pessoalmente. Outro fator positivo é a presença local, próxima e concreta dos pastores que visitam, acompanham, consolam, conhecem e rezam pelas necessidades reais das famílias. Trata-se de pessoas como as outras, fáceis de encontrar, que vivem os mesmos problemas e se tornam «mais próximas» e menos «diferentes» para o resto da comunidade. Elas nos mostram outro modo de ser Igreja, onde o povo se sente protagonista, onde os fiéis podem expressar-se livremente, sem censuras, dogmatismos, nem disciplinas rituais” (IL 138).
Propostas
Realisticamente, haverá propostas que corresponderão a três tempos diferentes:
(a) decisões imediatas que já estão sendo esperadas desde o Vaticano II;
(b) as de longo prazo, que são horizontes, como as questões do gênero, do sacerdócio das mulheres, e da sexualidade, que necessitam mudanças culturais, já em andamento na sociedade civil, mas que na Igreja Católica por causa de estruturas internas e desnivelamentos culturais ainda não encontram um consenso. Entre decisões preparadas no tempo pós-conciliar, possíveis de serem tomadas aqui e agora, e horizontes sonhados a longo prazo que necessitam uma evolução histórica e cultural no interior da Igreja, haverá
(c) propostas a médio prazo, como, por exemplo, a assunção consensual do espírito sinodal ou do diaconato das mulheres, que por hora enfrentam ainda alguns obstáculos de mentalidades. Decisões/propostas que de imediato podem e devem ser tomadas pelo Sínodo, presentes no Instrumentum Laboris e no já mencionado Relatório Final do recente Simpósio Teológico de Roma, são, por exemplo, que: “em vez de deixar as comunidades sem Eucaristia, se mudem os critérios para selecionar e preparar ministros autorizados para celebrá-la” (IL 126c), ou que se ordene “para o ministério presbiteral a homens casados, com experiência cristã, que sirvam a comunidade desde sua profissão e vida familiar e possam celebrar a Eucaristia, a penitência e a unção dos enfermos em sua comunidade” (RF 3).
Essas propostas urgentes pressupõem a passagem de uma “pastoral de visita” para uma “pastoral de presença” (IL 128; RF 3).
IHU On-Line – Qual o papel/missão que o Sínodo pode atribuir à Igreja na proteção da Amazônia em sua integralidade, sobretudo diante das transformações recentes no Brasil, no que tange à proteção florestal e à demarcação dos territórios indígenas?
Paulo Suess – O Instrumentum Laboris para o Sínodo da Região Pan-Amazônica é a síntese de um amplo processo de escuta sinodal das comunidades e Igrejas locais. “O progresso humano autêntico possui um caráter moral e pressupõe o pleno respeito pela pessoa humana, mas deve prestar atenção também ao mundo natural e «ter em conta a natureza de cada ser e as ligações mútuas entre todos, num sistema ordenado»” (LS 5). Com a integralidade da visão pastoral aprendemos que “são inseparáveis a preocupação pela natureza, a justiça para com os pobres, o empenho na sociedade e a paz interior” (LS 10).
Desde as descobertas da sincronicidade de C. G. Jung e das redes energéticas da física quântica, compreendemos melhor que tudo no universo, mas também nas relações humanas e, por conseguinte, na pastoral está interligado. “No território amazônico não existem partes que podem subsistir por si sós, apenas externamente relacionadas entre si, mas sim dimensões que existem constitutivamente em relação, formando um todo vital. Por isso, o território amazônico oferece um ensinamento vital para compreender de forma integral nossos relacionamentos com os demais, com a natureza e com Deus, como explica o Papa Francisco” (IL 21; cf. LS 66). Questões pastorais são sempre também questões humanitárias, ecológicas e políticas. “Reconhecemos a conexão íntima que existe entre evangelização e promoção humana, que se deve necessariamente exprimir e desenvolver em toda a ação evangelizadora” (EG 178).
O grito e a canção dos povos da Amazônia são também um grito e uma canção da natureza amazônica. E a missão que o Sínodo pode atribuir à Igreja na proteção da Amazônia é a escuta das vozes dessa região, que é um lugar teológico (IL 144), um lugar de experiência pascal, um lugar onde Deus interpela sua Igreja, um lugar ferido por interesses econômicos sem amparo de valores humanitários, e um lugar de feridos, socialmente pobres e culturalmente outros, onde a natureza é destruída e povos inteiros são exterminados e ameaçados de extinção (IL 23).
À escuta e ao conhecimento da realidade segue, em busca da harmonia e da paz, a ação solidária, que “influi diretamente sobre nossa relação com Deus” (EG 183). Para resgatar a paz social, a fé nos estimula a “mudar o mundo, transmitir valores, deixar a terra um pouco melhor depois da nossa passagem por ela” (EG 183). A justa ordem social é dever central da política, mas “a Igreja «não pode nem deve ficar à margem na luta pela justiça»” (EG 183). A proteção da floresta e a defesa da demarcação dos territórios indígenas fazem parte dessa luta pela justiça. A Igreja está ao lado dos povos indígenas e vai defender com todos os meios de justiça esses povos cuja vida depende da demarcação dos seus territórios. Uma política que declara a não demarcação das terras indígenas e a revisão dos territórios já demarcados como programa político declara guerra contra essa Igreja e grandes parcelas da sociedade civil. Essa política deve contar com tolerância zero, porque na luta pela vida, essa política se colocou ao lado da morte e da inconstitucionalidade.
IHU On-Line – Qual o potencial de o Sínodo impulsionar novas práticas pastorais na Igreja Amazônica? E na Igreja universal?
Paulo Suess – Segundo a Constituição Apostólica Episcopalis Communio – EC, de 15 de setembro de 2018, “o Sínodo dos Bispos (…) teria normalmente função consultiva, oferecendo ao Romano Pontífice, sob o impulso do Espírito Santo, informações e conselhos acerca das várias questões eclesiais. Entretanto o Sínodo poderia gozar também de poder deliberativo, sempre que o Romano Pontífice lho quisesse conferir” (EC 3,3). No “Sínodo para a Amazônia” é o Papa que pede “novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral”. Esse pedido corresponde, praticamente, a uma concessão do poder deliberativo, desde que não ameace a unidade da Igreja. As propostas de novas práticas pastorais vão depender muito da sensibilidade “de seguir a intuição que o povo de Deus tem para encontrar novas sendas” (EC 5,3), e da criatividade de transformar as escutas do povo de Deus em realidades pastorais. “O Sínodo não vive separado do resto dos fiéis”, exorta o Papa. “Pelo contrário, é um instrumento adequado para dar voz a todo o povo de Deus precisamente por meio dos Bispos, constituídos por Deus «autênticos guardiões, intérpretes e testemunhas da fé de toda a Igreja», mostrando-se de Assembleia em Assembleia uma expressão eloquente da sinodalidade como «dimensão constitutiva da Igreja»” (EC 6,2).
Na Amazônia haverá questões específicas, que devem ser encaminhadas. Mas, por analogia, muitas questões ecológicas, sociais, econômicas e pastorais, pela interligação das realidades, se revelarão como universais. No contexto da responsabilidade da Igreja local pela Igreja universal vale lembrar o Vaticano II, mencionado na Constituição Apostólica Episcopalis Communio: “Sobretudo é necessário, como já almejava o Concílio, que o Sínodo, ciente de que «o cuidado de anunciar o Evangelho em todas as partes da Terra pertence, antes de mais, ao corpo episcopal», se empenhe em «atender de modo especial à atividade missionária, que é a principal e a mais sagrada da Igreja»” (AG 29 e cf. LG 23). “Tornou-se definitivamente claro que cada um dos Bispos possui, simultânea e inseparavelmente, a responsabilidade pela Igreja particular confiada aos seus cuidados pastorais e a solicitude pela Igreja universal” (EC 2,1).
Em Aparecida, na V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, e quatro meses mais tarde, em Manaus, no Documento do IX Encontro de Bispos da Amazônia (13.09.2007), os delegados pediram à Igreja “criar nas Américas consciência sobre a importância da Amazônia para toda a humanidade” (DAp 475). “Atividade missionária” significa sempre responsabilidade local e universal. Nas periferias se encontram as soluções para problemas do centro e para impasses locais. Mesmo sem essa “recompensa” da prática solidária, na ética cristã, o valor da gratuidade e o interesse pelos últimos estão acima do interesse próprio.
IHU On-Line – Diante do contexto de críticas ao papado de Francisco, quais as possibilidades de o Sínodo Pan-Amazônico apresentar transformações na Igreja? Que tipo de transformações o senhor espera?
Paulo Suess – O “Sínodo para a Amazônia” não é um sínodo do Papa Francisco. É um sínodo “com Pedro e sob Pedro” (EC 1,1) da Igreja Católica, que os bispos da região, ao pedir uma especial atenção para a Amazônia e com propostas concretas, prepararam muito tempo antes do pontificado de Francisco. Seis anos antes do “Sínodo para a Amazônia”, no “Encontro da Igreja Católica na Amazônia”, de outubro de 2013, todos os problemas pastorais já estavam presentes e elencados com seus desdobramentos nos campos da ecologia e economia, do desenvolvimento urbano e rural, da mobilidade humana, da concentração da terra, do desmatamento e da monocultura, agronegócio, mineração e trabalho escravo. Ao todo, 56 bispos e 109 sacerdotes, religiosas/os e leigas/os, junto com a Comissão Episcopal para a Amazônia, assinaram os compromissos desse Encontro, lamentando sua “profunda dor em ver milhares de nossas comunidades excluídas da Eucaristia dominical”, sabendo que “nenhuma comunidade cristã se edifica sem ter a sua raiz e o seu centro na celebração da santíssima Eucaristia” (Presbyterorum Ordinis, 5).
No mesmo Encontro, de 2013, já afirmaram que são “conscientes de que a problemática da Amazônia é global”. Por isso “queremos abrir-nos a uma visão pan-amazônica que nos convoca a buscar caminhos de colaboração e compromisso entre as Igrejas na América Latina” (Desafio missionário. Documentos da Igreja na Amazônia, Ed. CNBB, p. 262).
No Sínodo, ninguém vai impedir propostas de transformação que foram almejadas nos anos que precederam o sínodo. Pode ser que algumas delas não recebam uma maioria significativa. Mas tampouco se pode esperar uma “unanimidade burra” (Nelson Rodrigues), como a conhecemos de regimes ditatoriais. O Sínodo não decide, faz propostas que serão entregues ao Papa.
Eu, pessoalmente, diria que o meu desejo tem asas e minha esperança tem pernas. Meu desejo vai mais longe que minha esperança curtida nas estruturas eclesiásticas. Concretamente espero:
- sinais que apontam para a igualdade entre mulheres e homens nas funções ministeriais da Igreja;
- uma participação sinodal em todas as instâncias da Igreja guiada mais pelo bom senso do que pela rigidez doutrinal, sempre para o bem comum;
- uma descentralização das estruturas e decisões eclesiais;
- a passagem de uma pastoral de visita a uma pastoral de presença;
- uma encarnação mais real do rosto amazônico da Igreja (ministérios, liturgia, linguagem, organização);
- a Eucaristia em todas as comunidades e ministros (viri probati) que pertençam às respectivas comunidades; sua escolha não se deve só justificar funcionalmente;
- viver e anunciar um modelo de desenvolvimento alternativo, integral e solidário, baseado em uma ética que inclua a responsabilidade por uma autêntica ecologia natural e humana (cf. IX Encontro, em: Desafio missionário, p. 176).
IHU On-Line – Qual a linha de discussão que o Instrumentum Laboris aponta para a reunião sinodal de outubro?
Paulo Suess – O Instrumentum Laboris é um documento de inspiração e de memória daquilo que foi discutido desde o Vaticano II e está presente nas Conferências Gerais do Episcopado Latino-Americano e, sobretudo, nos “Documentos da Igreja na Amazônia” (2014). Para uma parte dos bispos que, por causa de sua idade ou porque nas Faculdades de Teologia, onde fizeram seus estudos, o pano de fundo da teologia latino-americana não estava presente, não acompanharam esses processos pós-conciliares, o Sínodo terá a função de um aggiornamento. Contudo, o IL não tem a função de pressionar os e as representantes sinodais a tomar uma ou outra direção. Quem vai pressionar o Sínodo são a própria realidade da Amazônia e a voz das comunidades, que procuram converter a Igreja e mudar a mentalidade “que considera a Amazônia colônia ou periferia” (Santarém, 2012, n. 4.8) dos respectivos estados nacionais. Portanto, os imperativos que emergem do IL são: escutem a voz da realidade e a voz das comunidades, escutem a voz dos seus colegas que passaram grande parte de sua vida na Amazônia e a voz do Papa Francisco, que ressoa nos três documentos particularmente relevantes para o Sínodo: a Exortação Evangelii Gaudium, a Encíclica Laudato Si’ e a Constituição Apostólica Episcopalis Communio.
IHU On-Line – Quais pontos devem ser destacados como principais no Instrumentum laboris?
Paulo Suess – O IL oferece muitas pérolas que configuram um colar bonito: a conversão, um olhar diferente, a encarnação, descentralização sacramental e ministerial, pastoral de presença, plural e profética.
No início e perpassando todo o IL está a tríplice conversão (por exemplo: 5, 102, 103):
(a) a conversão pastoral de uma Igreja que quer ser samaritana e profética através da Exortação Apostólica Evangelii Gaudium,
(b) a conversão ecológica (ecologia integral) através da Encíclica Laudato Si’, e
(c) a conversão sinodal através da Constituição Apostólica Episcopalis Communio, que estrutura a função episcopal como “mestre e discípulo” e a participação de todos os batizados que receberam o Espírito, que os faz “infalível in credendo” (EC 5,3; 20). “O processo de conversão ao qual a Igreja é chamada implica desaprender, aprender e reaprender. Este caminho exige uma visão crítica e autocrítica que nos permita identificar aquilo que devemos desaprender, o que prejudica a Casa Comum e seus povos. Temos necessidade de percorrer um caminho interior para reconhecer as atitudes e mentalidades que nos impedem de nos conectarmos conosco mesmos, com os outros e com a natureza” (IL 102).
O fio que une as pérolas do colar da LS é formulado no Capítulo VIII da Parte II, sobre “educação integral”: o Sínodo não deve se contentar em tratar deste ou daquele sintoma da situação eclesial. Devemos mudar a nossa mentalidade. Não podemos nos contentar em olhar para os sintomas. Precisamos ir às causas. Precisamos de um olhar e um agir diferente, mais evangélico e pentecostal.
Este olhar diferente exige uma Igreja em saída e missionária, em busca de sua descolonização e inculturação assumindo diferentes modos de vida e culturas (cf. IL 113). Essa inculturação “encontra sua expressão na pluralidade de seus povos, culturas e ecossistemas […], em todas as suas atividades, expressões e linguagens” (IL 107). E o IL cita Santo Domingo: “Uma meta da Evangelização inculturada será sempre a salvação e libertação integral de determinado povo ou grupo humano, que fortaleça sua identidade e confiança em seu futuro específico, contrapondo-se aos poderes da morte” (DSD 243). Em Puerto Maldonado, o Papa Francisco apontou para os sujeitos dessa inculturação: “Precisamos que os povos indígenas plasmem culturalmente as Igrejas locais amazônicas” (Fr. PM).
Ao propor os povos amazônicos como sujeitos da inculturação, o IL pede para “superar a rigidez de uma disciplina que exclui e aliena” (IL 126b; AL, 297 e 312).
Na Amazônia, por causa das grandes distâncias, mas também por causa de uma teologia da comunidade local e do povo de Deus, tudo aponta para uma “salutar «descentralização» da Igreja” (IL 126d; EG, 16), que exige “a passagem de uma ‘pastoral de visita’ para uma ‘pastoral de presença’, a fim de voltar a configurar a Igreja local em todas as suas expressões: ministérios, liturgia, sacramentos, teologia e serviços sociais” (IL 128). Mas “plasmar uma Igreja com rosto amazônico possui uma dimensão eclesial, social, ecológica e pastoral, muitas vezes conflituosa” (IL 111), que exige uma dimensão profética e militante. A Amazônia “espera uma pastoral específica, missionária e profética” (IL 132).
IHU On-Line – Quais questões faltaram ser abordadas no Instrumentum Laboris?
Paulo Suess – O IL não tem a função de ser uma enciclopédia exaustiva sobre a realidade e a pastoral da Amazônia. Tampouco tem a tarefa de sugerir ou proibir aos sinodais, que se reunirão em outubro/2019 em Roma, respostas. Metaforicamente poder-se-ia dizer que o ILnão prendeu a bola no meio do campo. Chutou a bola perto do gol. Mas são dos padres e das madres sinodais a grande responsabilidade de marcar os gols. Pela grande maioria dos destinatários, o IL foi recebido nessa perspectiva de um serviço aberto e um texto de inspiração para posteriores decisões.
IHU On-Line – O que a repercussão do Instrumentum Laboris nos indica das principais discussões para o encontro em outubro?
Paulo Suess – O Sínodo precisa assumir uma visão histórica da própria Igreja e deixar espaço para a criatividade de uma nova época. O Papa Francisco espera que os sinodais façam bom uso desta liberdade: “A pastoral em chave missionária exige o abandono deste cômodo critério pastoral: «fez-se sempre assim». Convido todos a serem ousados e criativos nesta tarefa de repensar os objetivos, as estruturas, o estilo e os métodos evangelizadores das respectivas comunidades. Uma identificação dos fins, sem uma condigna busca comunitária dos meios para os alcançar, está condenada a traduzir-se em mera fantasia. A todos exorto a aplicarem, com generosidade e coragem, as orientações deste documento, sem impedimentos nem receios” (EG 33). Não existem desafios sem soluções. Na escuta recíproca e através de uma nova presença prolongada, as comunidades amazônicas, em comunhão com seus pastores, são capazes de encontrar os novos caminhos, segundo o Evangelho.
Como já foi dito, o caminho sinodal não é o caminho da unanimidade, mas tampouco o caminho de lutas partidárias de donos da verdade. A unidade no Espírito Santo não é unanimidade ou uniformidade que sufoca a diversidade nem diversidade que ganhou no grito mais alto. A unidade no Espírito Santo é uma unidade no plural de experiências reciprocamente reconhecidas. Uma região tão grande e tão plural como a Amazônia convida concomitantemente para diferentes experiências ministeriais, litúrgicas e administrativas. Os próprios Evangelhos, que nasceram em comunidades culturalmente diferentes, nos dão exemplos dessa unidade no plural do Espírito Santo.
IHU On-Line – Na apresentação do documento, o cardeal Baldisseri afirmou que o celibato sacerdotal “é uma disciplina, não uma doutrina”. Na sua avaliação, a possibilidade – tão discutida nesse período pré-sinodal – de ordenar padres casados torna-se cada vez mais concreta? E como deveria ser o exercício desse ministério?
Paulo Suess – Num Simpósio Teológico já mencionado, do qual participei como um dos relatores, tivemos a oportunidade de apreciar um dossiê histórico do renomado historiador Hubert Wolf sobre o celibato na história da Igreja que repercutiu no “Relatório Final”, em que consta: “Este simpósio sugere ordenar para o ministério presbiteral homens casados, com experiência cristã, que servem à comunidade a partir de sua profissão e vida familiar, e podem celebrar a Eucaristia, a Penitência e a Unção dos enfermos em sua comunidade”. Pede-se que “em vez de deixar as comunidades sem Eucaristia, se mudem os critérios para a seleção e preparação dos ministros autorizados para essa celebração” (RF; IL 126c). Essa decisão, neste momento histórico, faz parte dos “novos caminhos”, que são um imperativo deste sínodo. O “como” do exercício desse ministério pode ser regionalmente diferente, segundo um processo sinodal descentralizado e uma experiência de vários anos.
IHU On-Line – Como avalia as críticas de uma ala conservadora que julga o documento como “sincrético”?
Paulo Suess – Na sua origem, a palavra “sincretismo” significava não uma fusão de doutrinas, mas um acordo dos cidadãos de Creta e das ilhas adjacentes perante um adversário comum, interno ou externo. O adversário comum da natureza e dos habitantes da Amazônia é o sistema econômico que exclui e mata. Oxalá, que o IL e o Sínodo consigam unir os diferentes “cretenses”, credos e crenças da Amazônia, numa aliança inter-religiosa e intercultural contra o Minotauro, monstro, metade homem, metade touro, que aguarda os perdidos no labirinto.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Paulo Suess – Concluímos o texto final do Simpósio Teológico, de Roma, recordando uma das propostas finais do Instrumentum Laboris: “Dadas as características próprias do território amazônico, sugere-se considerar a necessidade de uma estrutura episcopal amazônica que leve adiante os encaminhamentos do Sínodo” (RF; IL 129 f3).