Walter Delgatti contou à polícia como partiu do Telegram de um promotor de Araraquara para violar os dados da cúpula da República e mencionou Manuela D’Ávila como elo até Greenwald
Por Joana Oliveira, no El País
Hackear a cúpula da República, buscar ativamente os procuradores responsáveis pelo maior caso de corrupção da história recente do país e decidir passar o que encontrou para um jornalista de renome. Tudo isso soa como uma tarefa assustadoramente simples, segundo o depoimento de Walter Delgatti Neto, de 30 anos.
Delgatti é um dos presos na Operação Spoofing, que deteve na terça-feira quatro suspeitos de invadir os celulares de autoridades. Ele contou em depoimento à Polícia Federal o caminho que o levou do hackeamento de um promotor de Justiça de sua cidade, Araraquara, até ao Telegram do procurador Deltan Dallagnol, da Operação Lava Jato. Delgatti diz ter passado até pelos dados da ex-presidenta Dilma Rousseff para chegar à ex-deputada Manuela D’Ávila (PCdoB), quem intermediou seu contato com Glenn Greenwald, fundador do The Intercept. Ao jornalista, ele diz ter oferecido, gratuitamente e de forma anônima, o material que acabaria publicado.
No depoimento, obtido pela GloboNews, há dois momentos em que o suspeito é questionado sobre uma possível relação com terceiros, cujos nomes (ou nome, já que em ambas as vezes o delegado pode ter se referido a mesma pessoa) aparecem rasurados no documento. A investigação está sob sigilo. No primeiro trecho, Delgatti Neto é perguntado se conhece esta determinada pessoa e ele se reserva ao direito de permanecer em silêncio. Repetiu o gesto ao ser questionado se comprou dólares a pedido de determinada pessoa. A Polícia Federal investiga ainda o possível envolvimento de mais seis pessoas, cujos nomes aparecem vinculados às contas utilizadas na invasão ao aparelho de Moro. Ainda não há, no entanto, evidências da participação direta deles no caso.
À PF, o suspeito, que diz ser um hacker “autodidata”, descreve o passo a passo até Dallagnol: o primeiro hackeado foi Marcel Zanin Bombardi, promotor de Araraquara, que já o havia denunciado em um caso de tráfico de drogas. Depois, por meio da agenda de contatos do Telegram do promotor, ele chegou a um procurador, de quem diz não recordar o nome. Foi daí que parece ter encontrado uma mina: uma lista imensa de integrantes do Ministério Público Federal num grupo chamado “Valoriza MPF”, onde procuradores de todo o país falam sobre questões da carreira, especialmente remuneração e benefícios. Nos contatos de um procurador, encontrou o número de Kim Kataguiri, deputado do DEM, que foi o acesso para chegar ao STF, por meio de Alexandre de Moraes. Moraes, por sua vez, foi seu canal até o ex-procurador Rodrigo Janot e foi Janot o elo final até chegar aos procuradores de Curitiba, entre eles Dallagnol.
MAIS INFORMAÇÕES
- PF prende quatro suspeitos de invadir celulares de Moro e Dallagnol
- Glenn Greenwald: “Moro sabe que eu sei tudo que ele disse e fez. E sabe que vamos contar tudo”
- Afinal, é possível testar a veracidade das mensagens divulgadas pelo ‘The Intercept’?
- Truque com Telegram Web foi usado para tentar obter mensagens de Moro, diz juiz
Tudo isso, conta o suspeito preso, aconteceu entre março e maio de 2019. Depois de coletar a informação do Telegram da Lava Jato, Delgatti diz ter traçado um plano para chegar ao The Intercept por ter encontrado “ilícitos”. O que o atraiu ao site de Greenwald, diz ele, foi saber a atuação de seu fundador no Caso Snowden, que revelou a espionagem que o Governo norte-americano faz de seus próprios cidadãos.
O caminho até o jornalista do The Intercept é também tortuoso, de acordo o depoimento. Delgatti diz não lembrar como conseguiu invadir o Telegram do ex-governador do Rio de Janeiro Luiz Fernando Pezão. Foi na agenda do aplicativo de Pezão que chegou ao número da ex-presidenta Dilma Rousseff. Acessando a agenda do Telegram de Dilma, Delgatti chegou ao Telegram da ex-deputada federal Manuela D’Ávila (PCdoB).
À PF, Delgatti disse que, na manhã do Dia das Mães de 2019 (12 de maio), entrou em contato com Manuela D’Ávila para informá-la sobre os dados que estavam em seu poder e pedir o contato de Glenn Greenwald. A princípio, conta ele, ela duvidou da veracidade de suas palavras. Delgatti diz, então, que enviou à ex-deputada federal um áudio com uma conversa entre procuradores da Lava Jato. Dez minutos depois, diz ter recebido uma mensagem de Greenwald via Telegram, afirmando que tinha interesse no material. Delgatti afirma ainda que jamais disse quem era e que não recebeu pelo material que repassou.
Greenwald, que até agora tinha extremado a discrição sobre com quem e como conseguiu os dados, contou nesta sexta-feira alguns detalhes de sua relação com a fonte. Antes mesmo do depoimento de Delgatti vir a público, o jornalista disse que nunca viu sua fonte e afirmou que todo o contato foi virtual. O jornalista conta que, quando perguntou à fonte sobre a notícia recente de que o celular do ministro Sergio Moro teria sido hackeado, esta negou ter feito a invasão e respondeu com evasivas: “Acessamos o Telegram [onde estava o chat privado de Moro e os procuradores] com a finalidade de pegar as conversas e fazer justiça, para dar a verdade ao povo”.
Manuela D’Ávila divulgou uma nota confirmando, ao menos em parte, o relato de Delgatti. Disse ter tido o celular invadido por um anônimo que queria o contato de Greenwald e dizia ter material sobre crimes cometidos por autoridades. A ex-deputada não cita o áudio que Delgatti diz ter-lhe enviado e afirma ter ela mesma passado o contato do jornalista do The Intercept para o anônimo. “Desconheço, portanto, a identidade de quem invadiu meu celular, e desde já, me coloco a inteira disposição para auxiliar no esclarecimento dos fatos em apuração. Estou, por isso, orientando os meus advogados a procederem a imediata entrega das cópias das mensagens que recebi pelo aplicativo Telegram à Polícia Federal, bem como a formalmente informarem, a quem de direito, que estou à disposição para prestar quaisquer esclarecimentos sobre o ocorrido e para apresentar meu aparelho celular à exame pericial”, disse.
O depoimento da PF não explora as motivações de Delgatti, que, era, até sua prisão, filiado ao DEM — o partido o expulsou nesta semana. No mesmo momento em que diz que roubava dados da cúpula da república, o hacker “autodidata” fez tuítes políticos. Inativo no Twitter entre 2011 até maio de 2019, ele voltou a se manifestar semanas antes do The Intercept começar a série com os vazamentos: “Seu cinismo me enoja”, disse em resposta a Sergio Moro. A polícia diz ter algumas ressalvas ao depoimento de Delgatti. Ele negou, por exemplo, ter hackeado Paulo Guedes, mas a polícia diz ter visto um computador em sua casa acessando a conta do ministro da Economia no momento de sua detenção. Nesta sexta, a Justiça prorrogou por mais cinco dias a prisão de Delgatti e outros três suspeitos.
–
Ilustração: TIB