Em 2017, o prefeito Herivâneo Seixas (PROS) foi preso temporariamente por acusação de atacar as sedes do Ibama e ICMBio com fogo, durante uma revolta. Imagem de um incêndio no início de agosto deste ano em uma fazenda em Humaitá (Foto cedida por José Rodrigues à Amazônia Real)
Por Izabel Santos, no Amazônia Real
Manaus (AM) – O município de Humaitá, no sul do Amazonas, é emblemático com relação às ações antiambientais na Amazônia. Em outubro de 2017, autoridades públicas, empresários, garimpeiros e populares, revoltados com uma operação de combate à mineração ilegal no rio Madeira, atearam fogo em viaturas, barcos e em prédios públicos do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). No ataque criminoso, a Polícia Federal descobriu que o prefeito de Humaitá, Herivâneo Seixas (PROS), participou do protesto. Cinco meses após os incêndios, o gestor público foi preso temporariamente por associação criminosa e dano qualificado. Ele responde ao processo em liberdade.
O Amazonas possui 62 municípios. Humaitá, com cerca de 54 mil habitantes, enfrenta incêndios florestais nas fazendas, áreas desmatadas e nativas, no entorno das BRs 319 (Manaus/Porto Velho) e 230 (Transamazônica). O lugar é cercado por Unidades de Conservação (UCs), com rica biodiversidade e territórios indígenas, incluindo os de povos isolados. Agora, o prefeito que protestou contra o Ibama e ICMBio está em apuros para debelar as queimadas e apela à natureza.
“Graças a Deus que choveu! Com essas duas chuvas que deram, a situação está melhor”. Foi o que disse Herivâneo Vieira, em entrevista à agência Amazônia Real, ao falar que falta estrutura para conter as chamas dos incêndios no município. Mas a chuva foi pouca e a estiagem está forte na região.
Nesta sexta-feira (23), o Programa Queimadas – Monitoramento por Satélite, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) registou sete focos de incêndios florestais em Humaitá. O município não está entre as cidades campeãs de queimadas na Amazônia como Apuí e Lábrea. Veja o infográfico com dados do Inpe:
Segundo o Corpo de Bombeiros Militar do Amazonas, no estado todo há 600 bombeiros para atender as ocorrências dos 62 municípios, incluindo a capital Manaus. O Amazonas tem uma extensão territorial de 1.559. 146, 876 quilômetros quadrados, uma área geográfica maior do que a França, Espanha, Suécia e Grécia juntas.
Somente o município de Humaitá tem uma área geográfica de 33.111,143 quilômetros quadrados, que é maior que o estado de Sergipe. No município, há uma pequena brigada florestal. Mesmo assim, para conter as queimadas, o governo do Amazonas enviou bombeiros de Manaus a essa cidade do interior. Assim, os bombeiros enfrentam uma viagem de 696 quilômetros de avião e veículos para combater o fogo.
“Todo ano é isso (queimadas). Mas esse ano até que estamos conseguindo combater os incêndios, pois tem uma unidade do Corpo de Bombeiros aqui na cidade”, confirma o prefeito Herivâneo.
Herivâneo Seixas (de mangas compridas) e vereador Totinha (de azul claro) caminham com a população que incendiou os prédios do Ibama e ICMBio, em 2017 (Imagens via Whatapp)
Como Humaitá não tem mais sedes dos órgãos ambientais federais, o município não conta com o apoio complementar das equipes do Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais (sigla do Prevfogo).
“A logística é toda da prefeitura. Somos nós que estamos dando [óleo] diesel e mão de obra [aos bombeiros estaduais]. Damos todo o apoio necessário”, diz o prefeito. Ele não respondeu perguntas sobre a ação que responde sobre os incêndios nas sedes do Ibama e ICMBio, em 2017.
Mesmo com os focos de queimadas aumentando, o prefeito de Humaitá não decretou situação de emergência para direcionar ações e recursos como, por exemplo, combater os desmatamentos e incêndios florestais, comuns nas áreas agropecuárias e madeireiras, que representam a vocação econômica do município. O governo estadual decretou situação de emergência no estado por causa das queimadas no dia 02 de agosto.
“Quem está sob decreto de emergência é o estado. Isso ainda não chegou aqui. O município não decretou situação de emergência. Por enquanto, não recebemos nenhum apoio. Até porque, não teve necessidade, pois não ficamos parados olhando o fogo. Fomos para cima com caminhão-pipa da prefeitura, dos Bombeiros e do Exército”, garante Herivâneo Vieira.
Conforme publicou a agência Amazônia Real na primeira reportagem da série Amazônia em Chamas, o desmatamento na região amazônica aumentou 278% no mês de julho deste ano, em relação ao mesmo período em 2018, de acordo com os dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), alertando para o tempo sombrio. O presidente Jair Bolsonaro (PSL) desqualificou os dados do instituto, usando um discurso de negação das consequências da degradação ambiental da floresta no país e no planeta.
Mas os incêndios florestais na Amazônia ganharam repercussão internacional, após uma “mega nuvem” de fumaça da região Norte do país tomar conta do céu de São Paulo, na tarde do dia 19 de agosto.
O pesquisador do Inpe e colaborador do Programa Queimadas – Monitoramento por Satélite, Alberto Setzer, disse à reportagem que a origem da nuvem densa na capital paulista teve dois fatores combinados: a fumaça das queimadas da Amazônia, em especial dos estados do Mato Grosso e Rondônia, com uma frente fria; contribuíram, ainda, para o quadro do fenômeno que não é incomum, segundo ele, a fumaça vinda do Mato Grosso do Sul e de países como Bolívia, Paraguai e norte da Argentina.
O monitoramento diário do Inpe indica que o número de focos de incêndio florestal no país aumentou 85% no período de janeiro a 22 de agosto de 2019, em relação aos mesmos meses no ano de 2018. Neste ano, os focos já somam mais de 76.720 registros no Brasil, contra 41.404 registrados no ano passado. A Amazônia apresenta mais de 50% dos focos de incêndios florestais no país.
Veja os estados mais afetados no infográfico:
“Queimadas ainda vão aumentar”
As queimadas na Amazônia devem aumentar nos próximos meses, com pico em setembro, alertou a diretora de ciência do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), Ane Alencar, em uma live publicada na rede social da entidade, no início da tarde desta sexta-feira (23). A pesquisadora, que trabalha com o tema de incêndios florestais na Amazônia há 25 anos, também destacou que se neste ano de 2019 a região amazônica estivesse sob um evento climático extremo, como uma seca expressiva causada pelo EL Niño (aquecimento anormal das águas do Oceano Pacífico), a situação seria muito pior.
“Infelizmente isso é só o início. Provavelmente, essas áreas que foram queimadas na semana passada foram frutos de desmatamento que ocorreu no final de maio e início de junho. As áreas de floresta que são derrubadas esperam um ou dois meses para serem queimadas. Ainda bem que ainda não estamos passando por um ano de seca extrema. Senão, teríamos prejuízos muito maiores”, disse a cientista.
Ane Alencar acredita que as queimadas ainda podem ser mais intensas porque – conforme foi detectado pelo Deter, programa de monitoramento mensal do Inpe – houve um pico de desmatamento no fim de junho e início de julho. “Isso significa que essa área vai queimar nas próximas semanas. Então, infelizmente, a gente espera mais de fogo acontecendo, se não for feita alguma coisa”, afirmou a pesquisadora.
Apuí culpa grileiros
Apuí, outro município do interior do sul do Amazonas, também é movido pela economia agropecuária e madeireira. Está localizado a 1.090 quilômetros de Manaus, e é administrado pelo prefeito Antônio Roque Longo (DEM). Ele se declarou, durante a entrevista, apoiador do presidente Jair Bolsonaro, e acredita que as ações do governo federal irão “controlar as queimadas”.
“Acredito que o governo federal esteja se estruturando; acredito que ele [o presidente Bolsonaro] tenha boas intenções, mas que não se estruturou ainda, com pessoal e equipes. Estou aguardando que eles e o governo do Amazonas tomem a iniciativa, pois a prefeitura não tem condição alguma”, disse Antônio Roque, o prefeito de Apuí.
Diferente do que ocorre em Humaitá, as equipes do Ibama estão apoiando as ações contra as queimadas no município.
“Existem queimadas sim, até meio fora do normal, mas o Ibama está na região e ele é o órgão responsável por reprimir essas práticas que são ilegais. A prefeitura não tem como coibir, pois, além de não ser obrigação do Executivo Municipal, é uma questão do governo federal”, disse o prefeito de Apuí.
Antônio Roque Longo nasceu em Francisco Beltrão, no Paraná, e foi morar no município em 1981, com a esposa e um filho. “Por conta própria”, garante ele, excluindo a possibilidade de ter vindo à Amazônia atraído pela propaganda da ditadura militar (1964-1985), que pregava o lema “integrar para entregar” para a ocupação da região.
O prefeito afirma que não é a população de Apuí que provoca os incêndios florestais e desmatamentos no município.
“Infelizmente, as grandes derrubadas são causadas por grileiros e pessoas de fora. Não entendo o porquê que o Ibama não chega a eles. Não sei se essas pessoas que cometem esses crimes têm algum negócio que segura a barra deles, ou apoio político, mas o Ibama não chega a eles, [chega] somente aos pequenos”, questiona Antônio Roque.
Ação indiscriminada, aponta bombeiros
Em respostas às perguntas enviadas sobre o combate aos incêndios florestais, pela reportagem da Amazônia Real, o Corpo de Bombeiros Militar do Amazonas (CBMAM) disse que tem postos em 11 municípios do estado. Segundo a assessoria de comunicação, “a prática das queimadas (limpeza dos terrenos com fogo), que se intensificou no mês de julho e deve se estender até setembro, é considerada crime ambiental”.
No ano de 2018, os bombeiros atenderam a 192 ocorrências no sul Amazonas, disse a assessoria. De janeiro a 22 de agosto de 2019 foram registrados 92 atendimentos para combater as queimadas.
“A ação indiscriminada do homem é a principal causa provável para o início dos incêndios florestais. Seja por acidente, seja para a limpeza do terreno, ou até mais para a descampagem”, esclareceu a assessoria, que não destacou um oficial específico para falar pela corporação com a reportagem.
O incêndio de maior proporção na região, segundo o Corpo de Bombeiros, foi registrado no mês de julho em Humaitá. “Humaitá vem sofrendo com as queimadas há cerca de um mês e todos os focos têm sido debelados pelas equipes. No entanto, o de maior duração foi um registrado na BR-319, próximo ao Aterro Sanitário do Município, que teve atuação ao longo de dois dias”, disse a assessoria do CBMAM.
Segundo o Corpo de Bombeiros, o combate a incêndios florestais na Amazônia é bem complexo e exige bastante preparo físico dos militares ou brigadista. “Além disso, fatores como a variação do vento e do tempo seco facilitam a propagação das chamas. Outro fator é o terreno que impede que as viaturas se aproximem do foco e faz com que o profissional utilize de técnicas mais rústicas, como o uso de abafadores e abertura de aceiros”, disse a assessoria.
Com relação ao prejuízo ambiental e à saúde humana, o Corpo de Bombeiros disse que “as queimadas são sempre prejudiciais, seja para a saúde pública, quanto para o patrimônio, quando fogem ao controle e causam este tipo de dano”.
“A classificação de desastres varia de acordo com a área atingida e pelos transtornos que possam causar às populações de modo geral. Essa classificação é realizada pelas Defesas Civis Municipais e homologadas pela Defesa Civil do Estado”, esclareceu o comunicado do CBMAM.
Perguntado sobre como conscientizar a população a não colocar fogo nas áreas florestais e fazer queimadas nos terrenos e áreas de desmatamentos, o Corpo de Bombeiros do Amazonas disse “somente com parceria com os órgãos ambientais, campanha educativa massiva e treinamento de brigadas florestais”.
“O Programa Educacional Bombeiro Mirim, presente em todos os municípios dotados com o Corpo de Bombeiros, também tem a prática de educação ambiental, presente na grade curricular”, explicou o bombeiro que prestou os esclarecimento à reportagem.
O alarme do Deter
Nos últimos dias, com a repercussão internacional das queimadas na Amazônia, muitas pessoas, mais céticas, questionaram a gravidade da situação, afirmando que são práticas corriqueiras na região.
A cientista do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), Ane Alencar explica que não é bem isso. Na sua experiência como pesquisadora sobre o uso do fogo, ela conta que os dados levantados pelo Ipam neste ano surpreendeu a todos.
“A gente cruzou com dados do desmatamento. A conclusão é simples: o alarme feito pelo Deter sobre o aumento do desmatamento no início de julho se confirma com a quantidade de focos de calor. Indica que o desmatamento voltou a crescer e muito. Não estamos em ano de seca extrema para justificar tanto fogo, a não ser que sejam pessoas colocando fogo e queimando”, afirmou a diretora do Ipam. O Deter é um levantamento rápido de alertas de evidências de alteração da cobertura florestal na Amazônia, feito pelo Inpe.
Ane Alencar lembra que, em 10 anos, o ano de 2019 é o que apresentou o maior pico de queimadas na Amazônia, com exceção de 2010. Naquele ano, disse ela, houve um período atípico, com uma seca extrema em muitos estados da Amazônia. “
O mesmo aconteceu em 2015 e em 2016, por causa do El Niño, que influenciou o aumento de queimadas na Amazônia, deixando a vegetação mais vulnerável, já que o pouco volume de chuva não abasteceu o solo. Também, em 2005 foi um ano de muitos furacões causados pelo aquecimento do Oceano Atlântico. Isso afetou a Amazônia, como no caso do Amazonas, com a seca”, disse a pesquisadora do Ipam.
Floresta em pasto
Ane Alencar ainda explicou que o fogo na Amazônia obedece a uma dinâmica de quatro tipos de usos do solo: dois intencionais e dois acidentais. No uso intencional, as queimadas acontecem em áreas de pastagens já abertas, ou em áreas de manejo. O uso acidental são os incêndios florestais e os que atingem as áreas agrícolas.
Como diretora de um instituto que realiza pesquisa ambiental na Amazônia, ela explicou que cada bioma tem um ciclo natural de fogo. O Cerrado, dependendo da vegetação, varia de seis a 12 anos. O bioma Amazônia tem um intervalo muito mais grandioso, de 500 a 1.000 anos. Um desses ciclos seria, por exemplo, tempestades de raios que causariam grandes incêndios.
“A Amazônia representa um sistema que age como barreira ao fogo. Ela não convive com fogo naturalmente. Não é um sistema onde o fogo é natural. A gente está aumentando a suscetibilidade da floresta. [Está] Quebrando todo o poder da floresta amazônica”, explicou ela.
“Na Amazônia, a principal fonte de ignição [do fogo] é o ser humano para transformar a floresta em pasto”, alertou Ane Alencar.
(Colaboraram com essa reportagem Kátia Brasil e Elaíze Farias)
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Ataque na sede do Ibama em Humaitá, em 2017. Foto: A Critica de Humaitá