Considerada racista na Europa, tradição que utiliza ‘blackface’ vira patrimônio cultural em Holambra

Caracterização dos ‘Pedros Negros’, ajudantes do Papai Noel, começou mudar na Holanda após polêmica da pintura preta em rostos de pessoas brancas. Na cidade brasileira, no entanto, nova lei prevê manter características.

Por Rui do Amaral*, G1 Campinas e Região

A Prefeitura de Holambra (SP), maior colônia holandesa no Brasil, sancionou uma lei para transformar em patrimônio cultural e imaterial do município a festa de São Nicolau. A celebração, tradicional na Holanda, utiliza “blackface”, a pintura preta na pele do rosto de pessoas brancas, uma prática que, por ser considerada racista, começou a ser suspensa no país europeu desde o ano passado. A nova lei da cidade paulista, no entanto, prevê a preservação “das características iniciais desta tradição”.

A festa, que a partir desta quinta-feira (26), passou a ser legalmente reconhecida como patrimônio holambrense, começa sempre 20 dias antes do Natal. A manifestantes tem como personagens os Zwarte Piets (Pedros Negros), que, pela tradição, seriam os ajudantes de Papai Noel, representados pelas pessoas com a pintura preta na pele, que saem pelas ruas distribuindo doces às crianças.

Segundo o próprio projeto de lei de Holambra, a pintura surgiu como uma referência à “pele escura” dos ajudantes, que teriam origem moura, e também à fuligem das chaminés. Na Holanda, em meio à polêmica, os organizadores do evento pretendem eliminar definitivamente este ano a pintura relacionada à cor da pele.

Já é lei

A Lei nº 960 foi sancionada pelo prefeito Fernando Fiori de Godoy (PTB) nesta quinta-feira (26), data em que foi publicada no Diário Oficial do município. O Projeto de Lei foi aprovado por unanimidade na Câmara.

Por nota, a Prefeitura de Holambra reconhece a “controvérsia em torno do tema”, mas ressalta a importância em manter a tradição sem alterações. Veja a nota na íntegra abaixo:

“O Departamento de Turismo e Cultura reconhece que há controvérsia em torno do tema, mas reforça que cabe à municipalidade o respeito à pluralidade de opiniões e também à própria história e cultura locais. A tradição centenária da Festa de São Nicolau e dos Pedros Negros é mantida pela própria comunidade há décadas em Holambra, cidade colonizada por imigrantes holandeses”.

Tradição e polêmica

O nome da festa é uma referência a como Papai Noel é chamado em alguns países da Europa. A caracterização dos Pedros Negros era composta desde o século XIX pela pintura preta na pele de quem interpretava os personagens.

O grupo responsável por organizar o desfile dos personagens na Holanda foi alvo de críticas e passou a introduzir, ainda em 2018, uma caracterização diferente. Já no ano passado, em alguns participantes, a pintura preta deu lugar a manchas escuras no rosto, em tom consideravelmente mais leve do que o utilizado anteriormente, destacando apenas o aspecto de fuligem. A previsão da organização é que a medida passe a ser definitiva em 2019.

‘Nós temos o Saci-Pererê’

Para a vereadora autora do projeto, Naiara Hendrikx (MDB), não há racismo na utilização da maquiagem escura pelos participantes. Ela, inclusive, compara a situação com elementos do folclore brasileiro.

“Aqui no Brasil, nós temos o Saci-Pererê, que é uma criança negra que fuma cachimbo, e ninguém fala nada. Quando se trata de cultura, é uma coisa tão mágica e tão enraizada que quem chega de fora e fica dando ‘pitaco’ para pôr defeito não consegue entender a essência. Não teria graça o São Nicolau sem os Pedros Negros”, afirma.

O projeto foi aprovado por unanimidade no Legislativo no dia 16 de setembro com o argumento da manutenção da cultura holandesa no município.

“Essa questão do Pedro Negro vem há séculos, começou na Holanda e os holandeses trouxeram para Holambra. Daqui a pouco isso vai acabar perdendo a característica”.

“Acho muito importante para os moradores e para os descendentes de holandeses que essa cultura se mantenha viva […]. Eu não sou daqui, casei com um holandês e vim morar aqui, então temos que respeitar a cultura desse povo”, completa a vereadora.

Por que a prática ‘blackface’ é considerada racismo?

O “blackface” surgiu no início do século XIX nos Estados Unidos. Pessoas negras eram ridicularizadas para o entretenimento de brancos. Estereótipos negativos vinham associados às manifestações, que também ocorriam em alguns países da Europa.

Os atores, sempre brancos, usavam tinta para pintar os rostos de preto em peças humorísticas, se comportando de maneira caricata para ilustrar comportamentos associados à comunidade negra.

Tinta preta, batom vermelho e peruca afro

Segundo a tradição, os personagens Zwarte Piets, ou Pedros Negros, teriam sido criados nos Países Baixos durante o século XIX. Algumas representações literárias dão a entender que, de fato, tratava-se de um “ajudante” negro.

Em Holambra, além da pintura preta, peruca afro, adereços coloridos e um batom vermelho para evidenciar os lábios também integram o traje. Todos os anos, 20 dias antes do Natal, os Pedros Negros saem pelas ruas da cidade entregando doces às crianças.

Organizadores aprovam projeto

Gabriela Wagemaker compõe o grupo que organiza, anualmente, as festividades de São Nicolau em Holambra. Ela aprova a iniciativa da Câmara.

“Acho válido porque, independente de ter um projeto ou não, a cabeça das pessoas não vai mudar. Não vai mudar a cabeça de quem acha que isso é racista, mas é uma forma de resguardar a tradição”, analisa.

Filha de holandeses, Gabriela frisa que as crianças acreditam que os personagens tem cor escura por conta da fuligem das chaminés, e que o preconceito parte exclusivamente de alguns adultos.

“Existe uma explicação antiga de que eles são descendentes dos mouros e tudo mais. Eu cresci na tradição, sou filha de holandês e conheço a história desde que sou pequena. A gente aprende que eles são pretos por causa da fuligem. Eu não vejo maldade nenhuma. Nunca vi, na verdade”.

‘Passo à frente’

No comunicado oficial expedido pelo Omroep NTR, veículo público de comunicação que organiza e transmite os desfiles nos Países Baixos, foi informado que a mudança na tradição holandesa trata-se de um “lógico passo à frente”.

O texto alega, ainda, que as alterações são reflexos de mudanças na sociedade em busca do fim da discriminação e dos esteriótipos sofridos pelos povos africanos.

A vereadora Naiara reconhece que, no futuro, a alteração pode, sim, ser adotada em Holambra.

“Eu não sou uma pessoa radical que acha que as coisas não podem ser revistas, sou a favor de rever tudo, sempre. Vamos ver o que acontece lá (na Holanda), mas temos que ter nossa liberdade”.

Já Gabriela, que acompanhou as medidas adotadas pelo país europeu, sustenta a permanência da tradição.

“A gente bate o pé. Eu cresci e aprendi que é assim mesmo”.

‘Retrocesso’

Doutora em educação pela Unicamp e professora em Campinas (SP), Marcia Anacleto acredita que a atividade praticada em Holambra e reforçada por uma lei municipal é um atraso.

“É algo pejorativo, que não contribui para a construção da identidade negra de maneira positiva. Essa época é muito significativa para as crianças, e aí você tem uma representação da comunidade negra completamente estereotipada.

A educadora aponta que o fato de ser uma tradição não sustenta o uso do “blackface” e reforça que Holambra não precisa continuar com a prática para celebrar o Natal.

“Tradições e culturas se transformam. Dizer que é tradição, mesmo em Holambra, não faz sentido. Quantas tradições eles já não alteraram ao trazer toda a cultura holandesa para o Brasil? Um município que está colado em Campinas, um lugar que tem uma história ligada à escravidão. É um retrocesso”.

Respeito à comunidade negra

Membro do Núcleo de Consciência Negra da Unicamp e doutoranda em antropologia social pela universidade, Jordana Barbosa confessa ter ficado assustada com a imagem dos Pedros Negros em Holambra.

“Nem sempre se pintar de preto é ‘blackface’. O problema é que, quando você se pinta de preto, você fica no limiar entre cometer um ato racista ou não. Em Holambra, todos os atores são brancos e usam peruca, batom, meias. Se é fuligem, por que estão pintados inteiramente de preto? Por que a peruca? Isso é, sim, ‘blackface'”, observa.

O principal problema, segundo Jordana, é a falta de empatia de pessoas que não são negras frente a questões do gênero. Para ela, respeitar a sociedade negra não deveria ser algo difícil ou que exigisse esforço.

“Os brancos não aceitam quando dizemos que isso é racismo, que isso nos magoa. Por que os negros estão sempre representando serviçais? Acho que, na Holanda, conseguiram encontrar uma saída muito simples. O respeito à população negra não é uma coisa difícil. É simples, é possível, é fácil de fazer”.

* Sob a supervisão de Patrícia Teixeira.

Em Holambra, intérpretes dos Pedros Negros utilizam maquiagem preta e peruca — Foto: Acervo/Grupo Losango

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