O que tem sido chamado de memoricídio ganha força no atual cenário político do País
Elaine Rodrigues, Século Diário
Quem nunca ouviu que na ditadura militar tudo era melhor e que os negros não resistiram à escravidão? Essas afirmações fazem parte de uma desconstrução da história de lutas dos povos e que vem ganhando cada vez mais força no contexto político atual, relata a professora, historiadora e militante do Movimento Negro Unificado (MNU) no Espírito Santo, Lavínia Coutinho Cardoso. Essa desconstrução, que tem sido chamada de memoricídio, segundo ela, não é algo de uma mente única, destacando-se entre seus agentes principais alguns setores protestantes, o agronegócio e os militares.
A historiadora afirma que por meio de “releituras perigosas”, trabalha-se em cima da memória coletiva, impedindo que uma determinada comunidade tenha uma imagem positiva, pois a memória constrói autoestima. Um dos exemplos é o que representantes do agronegócio vem fazendo com os indígenas e pequenos agricultores, retratando-os como improdutivos, por exemplo, como forma de facilitar o desmatamento em favor do capital.
Outra releitura considerada perigosa, segundo Lavínia, é a que é feita por grupos de militares. “Querem transformar Ustra, um torturador, em mito”, critica, lembrando que a memória é construtora de referência.
A professora relata que uma das formas de apagar a memória das lutas sociais feita por segmentos do protestantismo é por meio da Teologia da Prosperidade. “A Teologia da Prosperidade diz que tudo se consegue pela fé, e não pelas lutas sociais”, completa.
Para o militante dos direitos humanos, Gilmar Ferreira, o apagamento da memória das lutas sociais acontece, também, por meio da eliminação de políticas públicas. “Assim, busca-se eliminar também toda a história do processo de luta que nos levou a conquistá-las”, afirma.
Ele considera que apagar a memória das lutas sociais por meio da eliminação de política pública, como a reforma da Previdência, que fragiliza a seguridade social, é um projeto político que está em curso. De acordo com Gilmar, é uma forma de dizer que o projeto político agora é outro, que as conquistas obtidas e seus processos de luta, de reivindicação, ficaram para trás.
Gilmar aponta, ainda, que vive-se um momento em que aumenta-se o cerceamento à liberdade de expressão, tentando silenciar cada vez mais as vozes de quem não está em sintonia com o projeto político vigente. “Isso está acontecendo, também, por meio da eliminação das artes, da cultura, da produção acadêmica”, destaca.
Memoricídio
De acordo com a economista e professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Roberta Traspadini, a eliminação de povos e o roubo de suas histórias e memórias tratam-se de memoricídio, termo utilizado pelo escritor venezuelano Fernando Bàez.
O memoricídio, ressalta, se faz presente na história da América Latina desde o início de sua colonização. Ela cita como exemplo as civilizações mesoamericanas, como os maias, incas e astecas, que tinham uma alta densidade demográfica, desenvolvimento político, arquitetura e uma forma de produção, mas tudo foi destruído pelos colonizadores para edificar novas cidades.
O memoricídio não se refere, como a economista acrescenta, somente à estrutura física de concreto, mas à dizimação de culturas. Está presente também nas chamadas verdades absolutas, por meio das quais prevalece a história do vencedor e as técnicas do opressor contra o oprimido.
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Imagem: Valter Campanato/ABr – Agência Brasil