Coletiva Popular une e empodera mulheres pretas em Quintais do Bosque das Caboclas, em Campo Grande

por Carla Souza, em RioOnWatch

No dia 5 de outubro, foi realizado em Campo Grande, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, um mutirão no quintal de Hellen Andrews, que fica no Bosque das Caboclasuma comunidade na Estrada dos Caboclos que se desenvolveu a partir de uma ocupação urbana. Esse mutirão, que contou com o apoio do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio de Janeiro (CAU/RJ), construiu uma cisterna ecológica que aproveitará a água da chuva para vários fins. O quintal de Dona Hellen é um dos três quintais do Bosque das Caboclas selecionados em um edital do Fundo Casa para projetos de reparo em moradias devido às chuvas. O Bosque das Caboclas concentra um subgrupo de um coletivo feminino, a Coletiva Popular de Mulheres da Zona Oeste (CPMZO), que visa utilizar os espaços de moradia para reunir mulheres locais e debater diversos assuntos e suas necessidades.

Saney Souza, filha de Dona Hellen, faz parte da Rede Carioca de Agricultura Urbana (Rede CAU) e da Coletiva Popular de Mulheres da Zona Oeste. Saney percebeu que junto às ações de desenvolvimento local era extremamente necessário falar sobre feminismo. Contudo, como seria este caminho já que muitas mulheres locais tinham em seu dia a dia demandas diferentes e muito específicas em relação a outros lugares da cidade?

Essa reflexão começou quando ela, junto com outras mulheres, se questionaram: Que feminismo é esse que não cuida da casa da irmã que perdeu tudo na chuva? Como lidar e discutir a morte de uma companheira pelo seu próprio marido? Como conversar sobre violência sexual com meninas que se sentem culpadas quando sofrem abusos por homens? Estes questionamentos sobre o que é feminismosobretudo o feminismo negrofez Saney se reunir com outras mulheres, em seus próprios espaços, para falar sobre assuntos que habitualmente são pautas de mulheres de outras classes sociais e não de mulheres negras e periféricas. A partir de então, essas mulheres encontraram junto à Coletiva Popular de Mulheres da Zona Oeste, no Bosque das Caboclas, espaço para conversar sobre tais questões.

E foi assim, em seus quintais que começaram os encontros formais e informais para conversarem sobre agroecologia, direito à moradia e o feminismo negro. 

Neste dia de mutirão, Saney e a arquiteta Leslie Loreto, que atua junto a Coletiva, foram entrevistadas pelo RioOnWatch. Nestas entrevistas elas nos contaram um pouco sobre o trabalho que a Coletiva realiza no Bosque das Caboclassituado na Estrada dos Caboclos, mas que teve seu nome simbolicamente rebatizado de Bosque das Caboclas pelas mulheres deste coletivo. Leslie é arquiteta e urbanista pela USP e trabalha com assessoramento técnico a movimentos de moradia. Leslie coordena, junto com Elsa Burguiere, a Arche – Projetos Participativos, que atualmente assessora a Coletiva Popular de Mulheres da Zona Oeste do Rio de Janeiro.

RioOnWatch: O que é o Bosque das Caboclas e a Coletiva Popular de Mulheres da Zona Oeste? Como elas se complementam?

Saney: Bosque das Caboclas é uma ocupação urbana que tem as mulheres à frente, organizando toda a vida e a luta. A Coletiva é um antigo comitê popular de mulheres aqui da Zona Oeste, que já pertenceram ao Comitê de Mulheres do Rio de Janeiro onde tudo começou. Elas se encontravam no Centro da cidade, com a participação de várias mulheres, em um movimento auto-organizado para o feminismo na cidade do Rio de Janeiro. Os encontros eram no Centro, mas com o tempo foi ficando muito difícil para quem era da Baixada, da Zona Oeste e da Região Serrana. Os encontros ficaram difíceis. Depois de um tempo demos uma retomada na luta e vimos na Zona Oeste uma possibilidade de retorno definitivo. Foi então que, através de uma formação [de pesquisa militante e cartografia socioambiental] com o Instituto de Políticas Alternativas para o Cone Sul, em 2014 [que o movimento] ressurgiu como Comitê Popular de Mulheres da Zona Oeste. 

Percebemos então que a palavra comitê era uma forma muito fechada e em pouco tempo surgiu a palavra coletiva. Depois dessa formação [junto ao Instituto PACS], nós começamos a olhar para o território e fazer uma releitura de tudo, e olhar como a gente estava dentro deste território. A coletiva é uma frente de lutas com várias mulheres auto-organizadas que estão na resistência e nas lutas que acontecem nos territórios.

RioOnWatch: Como surgiu a ideia de formar o Bosque das Caboclas? 

Saney: Como a Coletiva é uma frente de lutas, [o Bosque das] Caboclas faz parte dessa frente, mas a Coletiva é maior e abarca toda Zona Oeste. O Bosque das Caboclas [já] tem quatro anos com esse propósito.

Tivemos algumas perdas. Na nossa ocupação [Bosque das Caboclas] tínhamos a companheira Maria*. Maria tinha família, era casada, tinha filhos. O marido dela era muito agressivo. Ela falava pouco e pouco conversava, e a gente da comunidade já sabia da agressividade dele. [Um dia] ela foi agredida pelo companheiro de uma forma muito violenta. Ela falava que ele era muito grosso, que ele era muito ignorante, que era nordestino. No dia em que foi agredida, [ela] foi para o hospital, ficou um tempo internada. A gente soube logo depois que ela veio a falecer por conta de um trauma no pulmão. O marido dela empurrou ela na parede, na quina e ela bateu de costas. Para nós ele falou que foi tuberculose e [que foi] por isso que ela ficou internada, mas depois tivemos acesso a verdadeira informação de que foi agressão. 

Logo depois também teve duas adolescentes que foram violentadas na Estrada dos Caboclos, voltando do carnaval em 2014. Elas vieram conversar comigo aquela coisa informal. Mas eu precisava orientar [as meninas]. A gente precisava ir no posto, na delegacia, ver como que estava a saúde. E aí, conversando [sobre] tudo [isso], elas chegaram para mim e falaram: ‘Não, a gente não vai, porque quem errou foi a gente, Saney. A gente tava no lugar errado, a gente estava na hora errada e estávamos com a roupa errada. Quem errou foi a gente’. Aí eu me destruí de chorar, me acabei de chorar em casa. Aí eu falei que a gente têm que fazer alguma coisa. A gente não pode achar que a culpa é nossa.

A companheira Maria não morreu porque o marido dela é nordestino. Tem toda uma sociedade que tá permeando tudo isso. E aí a gente decidiu conversando com algumas companheiras. Mas muito entre eu e minha mãe no começo. Eu falei: ‘Mãe, a gente tem que fazer alguma coisa, não vamos achar isso normal’, e ela falou: “Olha, tem que reunir as mulheres’. Aí eu comecei a conversar com uma, com outra, e a gente decidiu na comunidade [formar] uma coletiva, que não sei nem bem como a gente começou, mas a gente começou a conversar sobre isso, então acho que as caboclas, vêm muito desse não silenciamento das violências que acontecem na nossa comunidade, no nosso corpo, se juntando a luta da Coletiva Popular de Mulheres da Zona Oeste. 

RioOnWatch: Vimos que o Bosque das Caboclas conta com a ajuda de arquitetas, que ensinam construção civil para as mulheres locais. Como aconteceu esse encontro?

Saney: A gente começou a chamar quem a gente conhecia para pensar junto. Decidimos mandar vários e-mails, até que um dia a Leslei e a Elsa [duas arquitetas] tomaram conhecimento destes e-mails que diziam sobre a vontade de mulheres da Zona Oeste de trocarem ideias sobre moradia e fomos até elas. Depois elas vieram até aqui para conhecer a comunidade. Então, após esse encontro Leslei e Elsa nos colocaram a par de alguns editais sobre essa nossa pauta e surgiu o edital do Fundo Casa e a gente rapidamente escreveu um projeto [chamado Mulheres em Ação]. Pouco tempo depois, veio a notícia de que fomos selecionadas entre 150 [candidatos] para o Fundo Casa. A Coletiva Popular de Mulheres da Zona Oeste estava lá sendo contemplada no edital para reparos em três [casas] devido às questões da chuva.

RioOnWatch: Qual é a importância deste projeto, que venceu o edital do Fundo Casa, para o Bosque das Caboclas?

Leslie: A importância desse projeto é enorme. Em parte porque, a partir dele, mulheres de baixa renda que nunca haviam trabalhado com reparos ou pequenas reformas, em suas casas, passaram a entender melhor como realizar essas atividades, se apropriando de um saber técnico que ainda é muito ligado ao mundo masculino, a construção civil. Isso leva a elas mais autonomia, mais conhecimento e, indiretamente, a qualificar a luta da mulher contra a opressão. 

Mas a maior importância está no fato de que elas fizeram tudo isso de maneira coletiva, não individual, se unindo através de laços de solidariedade, de classe e de afeto. Esse trabalho organizado feito através da realização de vários mutirões, de muitas mãosque não ocorreu sem percalços e contratempossem dúvida é a alma do projeto. Nestes tempos onde somos compelidos a nos afastar um dos outros, ter a oportunidade de [trabalhar com] uma organização coletiva como foi Projeto Mulheres em Ação, só nos traz alegria.

RioOnWatch: Estar nesse projeto fez diferença na sua carreira?

Leslie: Já trabalho com populações organizadas há um bom tempo, mais de 20 anos. Sempre prestando assessoria em arquitetura a movimentos de moradia que queriam construir suas casas. Mas este projeto sem dúvida foi um desafio, pois me fez pensar o que significa trabalhar com mulheres, com pessoas que nunca pensaram, necessariamente, em construir suas casas sozinhas. Elas queriam tentar resolver as precariedades de suas moradias e ter um espaço mais digno para morar. Embora fosse um objetivo pequeno, carregava na essência uma necessidade radical de união e afeto entre mulheres. Sem que houvesse entre elas a figura opressiva do homem, elas transformaram a obra em um espaço de alegria, de leveza e de afetividade.

Para nós mulheres que já trabalhamos na construção civil, viver essa leveza me fez ver como poderia ser um canteiro de obras só de mulheres. E isso foi algo novo para mim e para nós da Arche. Algo realmente instigante para trabalhos futuros.

RioOnWatch: O que é agroecologia preta periférica?

Saney: Os quintais são tudo, é onde a gente se reúne, aonde a gente conversa e converge muitas pautas, sobretudo sobre a vida de mulheres [na luta] contra a violência. Utilizamos dessa nossa prática, que é a construção de território, para se juntar para se ouvir. A escuta é importantíssima. 

Quando eu falo que sem o quintal e sem a terra seria tudo muito difícil, é neste sentido da produção da vida. A gente amplia [o conceito e a prática] da agroecologia. Não é só a questão de plantar e comer bem. Se ela [a agroecologia] não estiver entrelaçada com a luta antirracista, ela não tem sentido. Porque o mesmo solo que a gente está plantando é o mesmo solo que a mãe perde o filho. A gente tem que associar uma coisa com a outra. A gente olha pra terra preta e fica feliz, porque vai plantar e colher alimento bonito, saudável e sem veneno e vai compartilhar ou comercializar isso, mas no [mesmo] chão tem mães que estão se agachando, chorando porque o filho está lá ensanguentado, morto pelo Estado.

É o mesmo chão, é o mesmo solo, é a mesma mulher preta. E se a gente pensar uma coisa separada da outra não tem sentido. É por isso que a gente vêm construindo e estreitando isso o tempo todo neste nosso solo, que é um só. E nós somos uma só. Este [movimento] de agroecologia preta periférica vem desconstruir a ideia de que só [há] comidinha boa no prato para quem pode pagar comida orgânica. Não é isso.

*O nome da moradora foi alterado

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