Paulo Portugal entrevistou Costa-Gavras durante o festival de cinema de San Sebastian sobre o seu mais recente filme no qual “o lendário realizador franco-grego encena a crise financeira como uma tragédia grega”. Aos 86 anos não promete novo filme mas busca “nova paixão”. Pensa que esta “é necessária para sobreviver”.
por Paulo Portugal, em Esquerda.net
Todo o cinema é político dir-se-á, mas quando se trata de encarar a carreira de mais de 50 anos do realizador Costa-Gavras, esse envolvimento assume proporções quase épicas. O cineasta comunista e ativista que nos deu em 1969 Z – Orgia de Poder, um filme dominado por convicções sobre relato do assassinato de um político em plena ditadura militar grega (que duraria até o início dos anos 70), recuperaria em 82 o golpe militar chileno que derrubou Salvador Allende, em 1973, com Jack Lemmon e Sissy Spacek à procura do filho desaparecido em Missing – Desaparecido. Pelo meio ainda, entregou-nos a história do colaboracionismo nazi de Music Box e outros tantos momentos políticos marcantes.
Aos 86 anos, regressou à Grécia para nos aproximar da crise financeira grega de 2015, a partir da visão de Yanis Varoufakis, o controverso e irreverente ministro das Finanças grego. Com ele sentamo-nos à mesa com os suspeitos do costume – da Troika e do Eurogrupo, claro.
Sim, esta será uma tragédia grega em tom de farsa, em que participamos nas discussões entre Wolfgang Schaube, o temível e inflexível ministro das Finanças alemão, o presidente do Eurogrupo Jeroen Dijsselbloem, a presidente do FMI, Christine Lagarde, bem como Mario Draghi, na altura Presidente do Banco Central Europeu, entre outros peões neste jogo de xadrez europeu.
De certa forma, esses eram também os nossos problemas, ou não fosse Portugal o ‘P’ do acrónimo PIGS (os países mais endividados da Europa – Portugal, Itália, Grécia e Espanha) referido no filme. Foi precisamente por aí que quisemos começar a nossa conversa, ocorrida em Setembro passado durante o festival de San Sebastian, a poucas semanas das nossas eleições legislativas.
De certa forma este é também um filme sobre a crise económica vivida em Portugal. E não deixa de ser curiosa a referência aos ‘PIGS’, cabendo a Portugal o ‘P’ do acrónimo…
(risos) É verdade… Mas vocês estão muito melhor, estão bem melhor.
Aparentemente estamos melhor com aquilo que se convencionou chamar de “Geringonça”, ou seja, um governo socialista apoiado pela extrema esquerda. Aliás teremos eleições em breve. Acha que esta solução portuguesa era aquilo que o Sr. Varoufakis preconizava no filme? Acha que poderia ser uma solução aplicada também na Grécia?
Claro que Portugal é um país pequeno, tal como a Grécia. Mas vocês foram um império. Um império enorme…
Isso foi há 500 anos atrás…
Sim, mas têm enormes tradições. A Grécia é um estado com duzentos anos.
Mas com uma cultura milenar…
Sim, eu sei. Mas quando vocês vão ao Brasil falam português, pelo menos entendem-se. A Grécia esteve ocupada durante 400 anos. Portanto as diferenças internas são tremendas. Quando a Grécia se tornou livre, todos os países que aí tinham influência, como a França, Alemanha, Inglaterra, todos tentarem fazer a sua influência. E tiveram-na. Mantém ainda os seus clãs, pró-germânicos, pró-britânicos, agora também pró-americanos, também com alguma influência francesa. Às vezes parece que os gregos são turistas no seu próprio país, muitos com contas na Suíça ou Istambul, e podem sair quando quiserem. Só que a maioria dos gregos está lá, não pode sair. Têm pequenos empregos e não podem sobreviver. Nem todos compreendem isto.
Sim, isso não temos em Portugal.
Pois não, conseguem manter mais a vossa identidade. Acredito nisso. Pelo menos é o que tenho lido.
E porque acha que tem funcionado esta visão política e económica também?
(risos) Eu sou um realizador de cinema, não tenho soluções. As coisas podem mudar. Talvez a ideia seja a unidade. Eu acredito na unidade, mesmo quando existem diferenças políticas grandes. Seja à esquerda ou à direita. Isso resulta sempre bem. Por exemplo, em França, a esquerda já não existe. A ideia da esquerda. A necessidade da esquerda. As leis da esquerda estão lá, mas os homens para fazerem isso funcionar já não existem.
Acha que estamos num momento em que os filmes políticos podem fazer diferença? Por exemplo, acredita que este seu novo filme pode ter algum impacto na cena política atual?
Não podemos dizer que um certo filme numa certa altura será político ou não, isto porque todos os filmes são políticos, de uma maneira ou outra. Não sei que impacto político terá o meu filme porque o começamos há dois anos atrás. Eu faço o que entendo pelo meu feeling do momento. Agora acaba por existir alguma coincidência, por exemplo com o que se passa em Espanha ou em outros lugares. Mas a culpa não é minha (risos)…
O livro do Varoufakis foi publicado, salvo erro, em 2017, e o seu filme chega dois anos depois. De alguma forma acompanhou a evolução desse trabalho?
Eu comecei a recolher informação sobre a crise grega desde o início, em 2010. E fui pensando em que história poderia fazer um filme. Mas não encontrei nada. Até ao momento em que o Alexis Tsipras foi eleito. Aí comecei a ficar mais interessado. Embora sabia que com a esquerda não teriam hipóteses porque a Europa não iria viabilizar um governo radical. Entretanto acontece o referendo, em que toda a gente disse que Sim ao famoso “memorando de entendimento”. Mas há um homem que diz que Não. Mas este homem, o Varoufakis, não tinha assim tanta confiança nele. Já tinha ouvido muitas coisas negativas sobre ele, sobretudo nos jornais e revistas alemãs.
Já o conhecia?
Não, mas quis conhecê-lo. Fui visitá-lo na Grécia e ele explicou-me tudo. E fez-me ouvir tudo aquilo que tinha gravado. Porque percebeu que ao estar no Eurogrupo não se poderiam tomar notas. Foi então que começaram a gravar tudo. A certa altura disse-me que estava a preparar um livro. Eu disse-lhe que tinha muito interesse em o ler. Foi então que começou a enviar-me capítulo a capítulo, altura em que comecei também a pensar no guião. Quando acabei de ler o livro percebi que também já tinha o guião. Tentei apenas encontrar soluções para outras coisas, como o final, por exemplo. Entretanto, pedi-lhe os direitos do livro, em que manteria toda a liberdade ficando ele apenas com a possibilidade de ler o guião e dar-me a sua opinião.
Gostava de falar da evolução do seu cinema, do início fulgurante com Missing – Desaparecido (1982), ou Estado de Sítio (1972), até ao trabalho mais recente. Como encara essa evolução, pelo menos a forma política como olha o cinema?
Que evolução? O que tento é não me repetir muito. Acho que a sociedade é que evolui. Muito e de forma profunda. Para além disso, evolui a minha perceção, a minha idade, a minha experiência com este material. Mas tudo o que faço tento fazê-lo com paixão pela história.
Como encara a situação atual da Grécia?
(risos)… Acho que está melhor. Ainda no outro dia encontrei o Sr. Sarkozy num restaurante. Ele veio ter comigo e fez-me a mesma pergunta. Mas eu disse-lhe: “Não!”, porque temos 500 mil pessoas que saíram do país, porque o emprego é muito baixo, tal como os salários. Se não falamos nela, se não vem nos jornais, se não é fotografada então não existe, ou então significa que está melhor. Mas não é o caso. Na Grécia vivem milhares de pessoas com um salário miserável, de 300, 400€, até um máximo de 600€. E a dívida enorme continua lá. Se isto continuar, não poderá ser paga. Foi o que a Senhora Lagarde disse: “Esta dívida não pode ser paga. Temos de encontrar soluções para ela.” Mas não encontraram solução nenhuma. Nem sequer tentaram. E até hoje a Europa pressiona-nos para pagar.
Como encara o futuro próximo da Grécia? Está otimista?
Acho que não podemos estar mais afastados sem destruir tudo. Por isso tenho de ser otimista. Vivemos num mundo muito complexo. O ambiente é um problema enorme. Todos os dias escutamos notícias alarmantes mas não fazemos nada. Li outro dia que no próximo século teremos 25 biliões de pessoas. Como será? Acho que muitas coisas têm de mudar. Dito isto, acredito também que o ser humano é capaz de encontrar soluções nas situações mais difíceis.
Como encara as mudanças políticas no mundo, em que parece existir uma tendência de viragem à direita? Vemos isso no Brasil, mas em muitos outros países cederem a elementos populistas. Acha que também aqui o cinema pode contribuir com alguns valores?
Não esteja à espera que o cinema mude o mundo. Isto apesar do cinema ter mudado o mundo. Na primeira projeção estiveram algumas dezenas, depois centenas e agora biliões de pessoas conseguem perceber como os outro vivem. Hoje podem até ver pessoas nuas, algo que era impossível no meu tempo (risos). Podemos ver histórias com homossexuais. Isso significa que tudo está a mudar. Há vinte anos atrás era impossível falar de mulheres lésbicas.
Qual a sua opinião pessoal sobre Tsipras e Varoufakis, qual é o balanço que faz depois de tudo o que passaram?
Eu tento não ter posições de amor ou ódio. Não só com seres humanos, mas com políticos em particular. Até porque o Varoufakis tem uma posição e o Tsipras tem uma diferente. O Varoufakis não é um herói lendário como vemos no cinema. É um homem coerente que resiste. E apesar de tudo o que se disse dele, ele continua na mesma direção. O Tsipras prometeu coisas, mas como se encontrava numa situação impossível, acabou por aceitar. Mas isso é uma questão moral. E logo a seguir voltou para o Parlamento e dois meses depois foi a eleições e os gregos escolheram-no de novo.
É verdade que este foi o primeiro filme que fez na Grécia? Esperava algo tão relevante para ter essa experiência de fazer quase uma tragédia grega com alguns toques de drama shakespereano?
(risos) Tragédia grega?… Não, você exagera… Claro que os imitamos. A construção do guião vem do teatro grego. Desde essa altura que continuamos a fazer da mesma maneira.
Voltaria a filmar na Grécia?
Se tivesse um pena assim pungente. Mas agora vivo em França, sou um cidadão francês. Passei seis meses na Grécia a fazer o filme, mas percebi que é um outro país, pelo menos do país onde eu nasci.
Mas tentará fazer outro filme?
Não sei, a mãe Natureza decidirá. O que tentarei é ter uma nova paixão. Acho que a paixão é necessária para sobreviver. Vamos ver.