Derrubada de 500 árvores pela Construtora Tenda levou a ocupação da área por indígenas que fazem fronteira com a futura obra; liminar de juíza pode levar a despejo a qualquer momento
Por Julia Dolce, Rafael Oliveira, Agência Pública
Cerca de 300 metros separam o novo empreendimento imobiliário da construtora Tenda S.A da aldeia Tekoa Pyau, que faz parte da menor Terra Indígena do Brasil, localizada próxima ao Pico do Jaraguá, na capital paulista. Em outro ponto do empreendimento, o território dos Guarani Mbya faz fronteira direta com a área onde a empresa pretende construir um condomínio de seis prédios para cerca de 800 moradores, e onde derrubou pelo menos 500 árvores no dia 30 de janeiro.
Os Guarani Mbya alegam que a Tenda S.A não realizou nenhum estudo de impacto socioambiental do empreendimento na comunidade indígena de sete aldeias e cerca de 500 moradores, o que contraria um decreto do Ibama. Em protesto, os indígenas ocupam a área comprada pela empresa — que obteve na justiça liminar para a reintegração de posse que pode ocorrer a qualquer momento.
“Nós já avaliamos que vai ser um impacto definitivo, vai colocar em risco, significar a extinção de um dos nossos núcleos, do nosso modo de vida tradicional. Não existe compensação para isso, você vai acabar com famílias, com a nossa ancestralidade”, afirma Thiago Henrique Karai Jekupe, líder guarani no Jaraguá.
Na liminar de reintegração, a juíza questiona o objetivo inicial da ocupação, que de acordo com os indígenas, seria a realização de uma cerimônia fúnebre em homenagem à natureza destruída e a vivência do luto da comunidade diante do acontecimento. “Há de se considerar que já houve tempo mais do que suficiente para a realização da cerimônia”, afirma a magistrada.
De acordo com Thiago Jekupe, o luto Guarani Mbya dura tempos indeterminados, seguindo orientações espirituais e outros sinais vindos do próprio meio ambiente. “Nós viemos rezar por diversas árvores caídas. Observamos a lua, o tempo de chuva, são questões tradicionais nossas”, defende o indígena.
Em sua ação de reintegração de posse, a Tenda S.A afirma que a derrubada das árvores foi aprovada pela Secretaria do Verde e do Meio Ambiente da Cidade de São Paulo (SVMA) e que representa um “baixo impacto ambiental”, e portanto não estaria sujeita a licenciamento ambiental.
A área de mais de 8 mil metros quadrados adquirida pela Tenda S.A está abandonada há cerca de 15 anos. A Tenda S.A respondeu, em nota, ter adotado todos os procedimentos necessários para a legalização do empreendimento. Para os guarani, no entanto, a empresa está se embasando na legislação municipal e estadual de São Paulo, e ignorando as leis federais que protegem os direitos indígenas.
Após uma reunião no Ministério Público Federal de São Paulo (MPF-SP) na última quinta-feira, os guarani alegaram que há representantes da Tenda e da Prefeitura Municipal de São Paulo que não entrarão em nenhum acordo com a empresa, que, segundo as lideranças Guarani, chegou a considerar abrir mão de até 50% da área adquirida.
Para os indígenas a única possibilidade que visualizam para a empresa, além de um contrato com a Prefeitura para a transferência do condomínio para outra região, seria o que consideram o cumprimento da legislação, por meio da realização de um relatório de impacto socioambiental.
O povo Guarani Mbya tomou conhecimento da obra apenas no final de dezembro e alegam que a Tenda S.A descumpriu a lei ao tentar negociar diretamente com eles medidas compensatórias para o impacto social. De acordo com Thiago Jekupe, a empresa tentou trocar a aceitação dos indígenas por regalias como um patrocínio para um time de futebol indígena feminino. Caso a Tenda S.A não garanta a realização do estudo de impacto, os guarani pretendem judicializar uma denúncia contra a empresa.
Jekupe afirmou ainda que durante a reunião a Funai negou ter autorizado a obra, como escrito na ação de reintegração de posse, e afirma apenas ter sido consultada sobre a localização do terreno em relação à T.I Jaraguá.
Também a Defensoria Pública da União (DPU) pediu a federalização do conflito nesta quarta-feira (5). No documento, o defensor público João Paulo Dorini requer a revogação da liminar pela reintegração de posse da Tenda S.A, garantida pela juíza do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo Maria Cláudia Bedotti.
No final da reunião do MPF, o procurador Matheus Baraldi Magnani afirmou que vai pedir pronunciamento formal do Ibama sobre a necessidade do estudo de impacto socioambiental antes de tomar qualquer decisão.
Em assembleia realizada no final da tarde, as lideranças guarani mbya repassaram as informações para todos os indígenas e apoiadores que formam a ocupação, dormindo sob barracas de lona entre os troncos cortados. Os indígenas decidiram que caso a reintegração de posse aconteça, não irão resistir na ocupação, para não colocar em risco as dezenas de crianças guarani que circulam livremente pelo acampamento.
Independentemente do cumprimento do despejo, a continuação da construção do condomínio está embargada pela Prefeitura até a próxima terça-feira, dia 11 de fevereiro. A seguir, os principais trechos da entrevista com Thiago Jekupe.
Na reunião com o MPF as lideranças guarani mencionaram terem duas propostas para a Tenda S.A: o estudo de impacto socioambiental e a negociação com a Prefeitura para a transposição da obra. Vocês acreditam que a Tenda S.A aceitaria a opção de realizar o estudo?
A Tenda negou, lá na frente do procurador, que tinha mandado funcionários na aldeia para tentar fazer qualquer tentativa de corrupção com a comunidade. Mas nós gravamos todas as visitas dos funcionários da Tenda na comunidade para tentar fazer algum tipo de negociação. E esse desespero deles, tanto de negociar antes, como de tentar fazer algum tipo de negócio com a comunidade indígena agora, mostra que eles estão errados, sim, e sabem que têm que respeitar a legislação federal.
Na verdade, se forem fazer um estudo hoje, conforme a lei manda, a comunidade iria participar, para avaliarmos o impacto da obra na comunidade. Nós já avaliamos que vai ter um impacto definitivo, vai nos colocar em risco, significar a extinção de um dos nossos núcleos, do nosso modo de vida tradicional. Não existe compensação para isso, você vai acabar com famílias, com a ancestralidade.
Você diz que eles fizeram uma conversa corrupta, por que isso? Por que passaria por cima do estudo ambiental?
Porque isso é crime, a legislação é clara: eles têm que fazer o estudo de impacto. Se fosse para tentarem qualquer tipo de negociação, eles teriam que acionar o Ministério Público e a Funai e fazer esse trabalho junto a eles. Nós poderíamos, sim, ter uma tentativa de acordo, mas tem que ser legítimo, não pode simplesmente a empresa tentar fazer a comunidade aceitar um crime ambiental. Quando vieram falar com a gente disseram que seriam 4 mil árvores “isoladas” derrubadas, falaram que seriam cinco torres construídas, falaram que não tinham animais silvestres, que tinham todas as licenças e que tinham uma autorização da Funai. Eles bateram o pé nisso e a gente tem prova que falaram. E agora eles negam, porque a Funai cobrou eles. Hoje isso caiu por terra, porque a Funai exigiu do MPF e da Tenda que ela não use mais esse argumento, porque o que eles têm é o mapa que pediram à Funai para ver se a área fazia parte da TI.
Então, na prática, vocês estão colocando apenas a opção da negociação com a Prefeitura para a Tenda construir em outro lugar?
É o que é mais viável para a Tenda fazer. Se quiserem seguir os trâmites legais agora, o que seria necessário, o embasamento legal que tem que ser feito, não tem como nós fugirmos disso, se a legislação for cumprida, nós teremos que respeitar.
O mais viável para eles é conseguir outro terreno, com a Prefeitura. Se não querem fazer isso, vamos continuar lutando para que a legislação seja colocada em prática, e se tentarem forçar a barra se abraçando nas leis municipais e estaduais, podemos judicializar essa situação e levar para frente na justiça.
Caso a Prefeitura acorde com a empresa a transferência da obra para outro terreno, o que vocês gostariam que fosse feito com esta área?
Um parque, um centro ecológico para se fazer bioconstrução, agrofloresta, permacultura, tudo que envolve a questão ambiental. Mas queremos que a Prefeitura também cumpra com a palavra dela que é de fazer um memorial indígena [acordo feito em reunião entre lideranças Guarani e o prefeito Bruno Covas em março de 2019] e estamos pensando que ele pode ser feito aqui. A intenção é que aqui seja um parque ecológico para a população.
E sobre a situação do despejo? O que vocês discutiram com a Tenda?
Quando estávamos saindo a diretora da Tenda estava lá com o advogado deles. Eu disse que estamos em luto ainda, e que nosso luto acaba no próximo sábado [15 de fevereiro]. Então eu disse que nós íamos permanecer aqui e essa reintegração de posse traz um risco à nossa comunidade. A integridade física das nossas crianças está em risco, e não existe nenhuma possibilidade de diálogo com a Tenda quando eles colocam a gente em risco. O mais viável, o mais correto, seria a Tenda retirar essa reintegração. Mas se não quiserem, nossos advogados também estão entrando com procurações para derrubar essa liminar, porque ela é totalmente arbitrária.
Pode explicar mais sobre o processo e significado desse luto?
Que o nosso luto termina no outro sábado, isso é certo. Porém, a decisão de sair vem em coletivo e por uma decisão espiritual também, a gente vai fazer uma última reza e o Xeramõí (guia espiritual) vai receber dos Tupã Kuery, do nosso Deus (em todas suas evoluções), o que a gente deve fazer a partir desse momento. É um luto tradicional. Nós viemos para rezar por diversas árvores caídas.
Quais seriam os impactos diretos da construção desse condomínio para vocês, tendo em conta a dificuldade que já existe em se manter a cultura e a tradição nessa proximidade com São Paulo e com os brancos?
Algumas crianças já passam a não falar mais a língua guarani, isso vai acontecendo aos poucos, e isso com a especulação imobiliária afastada da gente. Agora imagina mais de 300 apartamentos grudados na nossa aldeia, um monte de brancos olhando para nós de cima de prédios, 24 horas, o trânsito de pessoas, o contato que vamos ter, porque serão nossos vizinhos. Como eles vão nos tratar? No próprio Facebook já tem pessoas que nos tratam com racismo muito grande depois desse acampamento, falando absurdos para a gente. Não tem como a gente aceitar.
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Imagem: Thiago Henrique Karai Jekupe, liderança Guarani Mbya – Julia Dolce/Agência Pública