Para jurista, quebra de decoro é “hipótese legal mais óbvia que o presidente viola” com envio de mensagens convocando para ato contra o Congresso. Penalidade é a perda do mandato por impeachment, afirma Conrado Hübner.
Por Larissa Linder, na DW
O apoio do presidente Jair Bolsonaro a atos convocados a seu favor e contra o Congresso geraram uma onda de condenações nesta terça e quarta-feira (26/02) por parte de lideranças políticas e jurídicas, que acusam o mandatário de atentar contra a democracia e a Constituição.
Segundo a imprensa brasileira, Bolsonaro compartilhou no Whatsapp ao menos dois vídeos convocando manifestações contra o Legislativo e o Supremo Tribunal Federal (STF) em 15 de março, em meio a um embate entre o Congresso e o Planalto acerca da execução do Orçamento.
Para o professor de direito constitucional da USP Conrado Hübner Mendes, a atitude constitui crime de responsabilidade, passível de impeachment. “Quebra de decoro é a hipótese legal mais óbvia que Bolsonaro viola” ao compartilhar tais mensagens, afirma à DW Brasil.
Mas não foi “somente agora que ele passou do limite”, avalia Hübner Mendes. “A quebra de decoro não é um ato isolado, é um padrão de comportamento”, diz o doutor em direito e ciência política. “[As agressões] são tão cotidianas que se banalizam, e nessa normalização perdemos a capacidade de apontar quão graves são.”
DW Brasil: O envio de mensagens de apoio a tais atos por parte do presidente é ilegal?
Conrado Hübner Mendes: O que o presidente fez é crime de responsabilidade, cujas modalidades são definidas no art. 85 da Constituição e na lei 1.079, de 1950. Mais especificamente, o presidente comete quebra de decoro, definido assim no artigo 9, inciso 7 da Lei: “Proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo.”
Quebra de decoro é a hipótese legal mais óbvia que Bolsonaro viola. Mas ele também flerta com outras hipóteses de crime de responsabilidade, como atentar contra “o livre exercício do Poder Legislativo e do Poder Judiciário” – aqui, porém, há nuances que precisam ser mais bem investigadas nesse ato particular de compartilhar vídeo por redes sociais.
Não acho que foi somente agora que ele cruzou a linha vermelha, que ele “passou do limite”. A quebra de decoro é cotidiana no comportamento presidencial de Bolsonaro. Não é um ato isolado, é um padrão de comportamento. Nunca um presidente eleito no Brasil fez do seu modo de se relacionar com as instituições, a oposição e os indivíduos que dele divergem uma prática retoricamente tão violenta. Se esse conjunto não é quebra de decoro, difícil imaginar algo mais grave que seja.
O presidente tuitou nesta quarta-feira que tem 35 milhões de seguidores em suas redes sociais, mas no Whatasapp, apenas algumas dezenas de amigos com quem troca mensagens pessoais. Faz diferença, perante a lei, se ele mandou a convocação para 35 milhões de pessoas ou apenas para alguns amigos no Whatsapp?
O Whatsapp tem essa natureza híbrida. Pode ser um instrumento de comunicação estritamente privado bilateral, ou mesmo dentro de um pequeno grupo. Ou então pode ser uma grande rede social mais potente do que qualquer outra, como de fato foi nas eleições.
Primeiro, não parece plausível, com todo o aparato comunicacional que o bolsonarismo construiu usando Whatsapp, a afirmação de que foi só para “algumas dezenas de amigos”. Segundo, mesmo que fosse essa “dezena de amigos”, há grande equívoco ou mesmo desonestidade em sugerir que esse é um espaço privado para comunicação íntima, como se fosse uma conversa informal em sala de jantar.
A penalidade cabível é perda do cargo, nesse caso?
Sim, a declaração de impedimento e cassação.
Esse controle funciona mais ou menos da mesma forma em outras democracias?
Em democracias presidencialistas, em geral, sim. No parlamentarismo, é mais fácil tirar o primeiro-ministro, basta um voto de desconfiança dado pelo Parlamento.
Não lhe parece um controle frágil, de certa forma?
O mecanismo do impeachment tem essa fragilidade institucional. Ainda que a lei defina o que é crime de responsabilidade e estabeleça todo um processo legal para um julgamento, esse julgamento é feito pelo Congresso, uma instituição que inevitavelmente faz um juízo politico de conveniência. Não basta haver crime de responsabilidade para que o Congresso aceite processar.
O sistema constitucional é esse mesmo, estamos falando da maior autoridade da República, eleita democraticamente. Seja qual for o sistema para controlar uma autoridade desse calibre, sempre haverá essa fragilidade, esse limite político. Não basta que uma violação seja feita para que haja força política para puni-la.
Essa fragilidade também há, por exemplo, no controle que um Tribunal Superior Eleitoral pode fazer da regularidade das eleições. Veja o processo de abuso de poder econômico pela chapa de Dilma [Rousseff] e [Michel] Temer tempos atrás. O TSE também é uma instituição frágil para controlar nada menos que a chapa eleita para a Presidência.
O TSE, em meio àquele furacão da Operação Lava Jato misturado com o impeachment, recebeu a denúncia do PSDB sobre a irregularidade das eleições [de 2014]. Presidente do TSE à época, o ministro Gilmar Mendes emitiu vários sinais de que julgaria o caso procedente. Veio o impeachment de Dilma, e tudo mudou. Ao final, num julgamento de grande teatralidade, a chapa Dilma/Temer foi absolvida. O TSE tem hoje um caso que questiona a eleição de Bolsonaro, pelo uso de recursos não declarados na campanha de desinformação via Whatsapp. O caso não anda.
Acho que se pode dizer que, seja qual for o sistema, controlar o chefe do Executivo sempre será um terremoto institucional e político. Não é por outra razão que no parlamentarismo é o Congresso que faz esse controle. É um ato discricionário, não precisa de fundamentação jurídica. No caso do impeachment, você precisa demonstrar que houve um crime de responsabilidade.
Pode-se até dizer que o Congresso, na prática, está livre para declarar impeachment de um presidente mesmo sem maior consistência na demonstração do crime. Mas a legitimidade desse processo pode ser questionada.
Tais quebras de decoro podem ser uma estratégia do presidente?
“Tumultuar a República”, como ele mesmo disse há pouco [no Twitter] para acusar seus críticos, por meio de constantes agressões verbais, é, sem dúvida, uma forma de incendiar permanentemente a esfera pública. Uma forma de interpretar isso é dizer que isso cria uma “cortina de fumaça” para os problemas graves do país e do seu governo.
Eu não gosto da imagem da “cortina de fumaça”: se por um lado é verdade que desvia de outros problemas – como as denúncias de corrupção contra seu filho, suas ligações com milícias, conflitos de interesse de seu ministério etc. –, as agressões são por si próprias atos muito graves também. Não são apenas “cortina de fumaça”, são quebras de decoro. São tão graves e tão cotidianas que se banalizam, se normalizam, e nessa normalização perdemos a capacidade de apontar quão graves são.
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Ilustração: Justificando