Proibir demissões. Adiar vencimento das contas dos serviços públicos. Determinar aos bancos que financiem, com juros módicos e tabelados, prestações e boletos. Para proteger a maioria em tempos de crise, é preciso fazer o inusual
por Antonio Martins, em Outras Palavras
Dizer que “estamos em guerra” contra a covid-19 tornou-se lugar-comum. Mas, em meio à batalha contra um inimigo externo, é possível permitir que uma minoria aproveite-se para impor terror econômico aos demais, e exigir privilégios e favores? É o que estão fazendo, neste exato momento, os banqueiros e proprietários de grandes corporações de varejo. Os bancos aproveitam-se para aumentar os juros dos contratos e endurecer as negociações com os devedores, mostrou a Folha de S.Paulo em reportagem do jornalista Adriano Vizoni, que ouviu empresários de múltiplos setores. Já as redes varejistas, capitaneadas por Flávio Rocha, do Grupo Riachuelo, lançam uma chantagem: ou o comércio reabre, colocando ainda mais em risco a vida de milhões, ou demitirão um em cada três trabalhadores que empregam. Serão ao menos 600 mil novos desempregados.
No cenário de insanidade em que o Brasil mergulha, às voltas com uma pandemia e um presidente criminoso, é preciso estabelecer uma referência de segurança e racionalidade. Nos últimos dias, houve alguns pequenos passos neste sentido. Os esforços de Bolsonaro para sabotar as medidas de isolamento social fracassaram temporariamente, rechaçadas pelo Judiciário, pela maior parte dos meios de comunicação e até pelo ministro da Saúde e o vice-presidente. Mas não basta. O comportamento psicopático voltará a se manifestar. Ele tira proveito de algo concreto: num país quase sem proteções sociais e marcado por pobreza e desigualdade, dezenas de milhões de brasileiros também estarão sob ameaça caso permanecerem em suas casas, respeitando a quarentena. Eles despencarão no abismo sem fundo da exclusão social completa.
Três medidas simples, porém muito efetivas, permitem enfrentar o problema. Elas são inusuais, num país em que o poder econômico tem enorme influência sobre as instituições. Mas nas crises, sob ameaça de rompimento do tecido social, o que é muito improvável – porém muito necessário – pode ocorrer.
A primeira medida é proibir as demissões – exceto as motivadas por falta grave – enquanto durar o estado de calamidade pública. Desemprego, em meio a crise sanitária, é condição de extrema vulnerabilidade. Demissões me massa, como as que começam a ser tramadas, são prenúncio de explosão social. São, além disso, sinal de irracionalidade econômica ou de oportunismo extremo. Passada a pandemia, a atividade produtiva será retomada. As compras adiadas serão efetivadas. Não há motivo algum para que as indústrias, o comércio ou os serviços livrem-se de seus trabalhadores. Ao contrário: se isso ocorrer, se o país se vir com uma população empobrecida e insegura – nestas condições é que a recuperação pós-coronavírus será raquítica e demorada. Os empresários que agem para demitir agora são os que desejam, em ética repugnante, usar a doença como pretexto para reduzir a massa de salários, aumentar os lucros e, mais tarde, impor aos funcionários que permanecerem condições e ritmos de trabalho ainda mais precários e desumanos.
Do Palácio do Planalto, é óbvio, nada se pode esperar. Mas o Congresso pode frear as demissões em massa por medida legislativa de emergência. Esta mesma decisão pode estabelecer que a União socorrerá os setores e empresas que comprovadamente enfrentarem dificuldades momentâneas com o pagamento da folha de salários. É apoio muito mais justificável que os benefícios quase instantaneamente concedidos aos bancos, por Bolsonaro e Paulo Guedes, sem nada exigir em troca deles.
A proibição das demissões tranquilizará milhões, mas será inefetiva para os que estão na economia informal – seja como assalariados ou em seus próprios negócios. Um estudo do Instituto Datafavela, reportado na edição desta segunda-feira (30/3) do Valor, em excelentes reportagens de Bruno Villas Boas e Cristiane Agostini, retrata o drama. Nas comunidades, 54% dos moradores são autônomos ou microempreendedores: pedreiros, motoristas de aplicativos, faxineiros, proprietários ou associados a um salão de beleza. Forçados à precariedade, quase nunca têm reservas financeiras. Uma parcela expressiva (15%) fez investimentos no último ano. Quase 100% tiveram queda abrupta de receita nas últimas semanas, em função da pandemia. “Estamos esquecidos e deixados à própria sorte, tentando nos salvar”, diz Gilson Rodrigues, líder da favela de Paraisópolis. E completa: “o avanço do coronavírus deixa claro que existem dois Brasis: o da quarentena, do ‘home office’ e do álcool em gel e o da favela, da fome e do córrego”.
Um texto publicado em Outras Palavras na última sexta-feira argumentou que esta situação exige uma Renda Básica Emergencial muito superior aos R$ 600 em vias de aprovação pelo Congresso. Mas isso exigirá consciência e lutas sociais de médio prazo. Algumas medidas de emergência precisam ser adotadas muito antes disso, para aliviar o drama social dos atingidos e evitar que a campanha sórdida contra a quarentena tenha combustível.
Os usuários dos serviços públicos (água, luz, gás, telefone e internet) devem ter a opção de adiar o pagamento das contas, sem acréscimo, até o fim da pandemia e do estado de calamidade. Isso evitará que milhões tornem-se inadimplentes ou, muito pior, que percam acesso a comodidades essenciais a uma vida digna. As empresas concessionárias não terão dificuldades para absorver o adiamento. São grandes corporações transnacionais. Exercem sua atividade por concessão do Estado. Atuam, em todos os casos, em regime de monopólio ou oligopólio. Superada a crise, os usuários não as deixarão – inclusive por falta de opções. Será possível dividir as mensalidades em atraso pelos meses futuros do contrato, sem nenhum abalo financeiro.
Além do pagamento dos serviços públicos, há os boletos: a pilha infernal de contas com que nos defrontamos todo mês, por estarmos submetidos a uma vida mercantilizada. Incluem o aluguel, o condomínio, o cartão de crédito, a prestação de um bem pessoal ou de um equipamento necessário ao trabalho. Para muitos, os cursos e os serviços médicos privados. Outro contingente imenso de pessoas está agora arriscado a ficar sem estes serviços e com isso desorganizar sua vida ou de se verem, ao fim do período, muito mais dependentes e submetidos ao tacão do sistema financeiro.
Também aqui há uma solução factível e capaz de afastar a insegurança. Medidas legais devem assegurar o financiamento automático destas prestações pelos bancos, com juros módicos e tabelados pelo Estado – por exemplo, 7,5% ao ano, o dobro da taxa Selic. A justiça da ação é óbvia: graças a seu imenso poder de pressão, os bancos são o único setor que permanece obtendo lucros
bilionários (só os quatro maiores lucraram R$ 81 bilhões, em 2019), mesmo com a sociedade mergulhada em crise. Acabam de ser novamente beneficiados com concessões do Banco Central que lhes permitirão gerar 1,2 trilhão de reais. É inaceitável que não prestem uma contrapartida à sociedade.
O refinanciamento dos boletos precisa ser uma operação de simplicidade extrema, para a população interessada em recorrer a ele. Não deve depender de aprovação prévia, nem exigir burocracia alguma. Os bancos deverão inserir, em seus sistemas de transações eletrônicas (em caixas automáticos ou pela internet) uma forma de pagamento adicional. Além de pagar por débito em conta, ou por cartão de crédito, cada cliente deve poder optar por “financiar o débito com os juros tabelados em razão da covid-19”. Ao final do estado de calamidade pública, um sistema simples calculará a dívida total, aplicará os juros máximos de 7,5% ao ano e dividirá em prestações exequíveis. Os que escolherem esta opção deixarão de pagar as taxas astronômicas hoje impostas pelos bancos: 315,6% ao ano no cheque especial e 286,9% ao ano no cartão de crédito!).
Vivemos tempos extraordinários. Como vimos num texto anterior, as alternativas diante da crise mundial mais profunda desde o início da II Guerra serão cada vez mais reveladoras. Uma minoria ínfima tentará impor seu poder para tirar ainda mais vantagens e submeter de forma muito mais profunda os 99,9%. Surgirão, em contrapartida, alternativas concretas para novas relações sociais. Não bastará enunciar esta possibilidade teórica. Será preciso uma tradução política. Implica converter lógicas pós-capitalistas abstratas em saídas reais, palpáveis, que sinalizem um mundo organizado pela solidariedade e sejam, ao mesmo tempo, exequíveis do ponto de vista prático. As propostas acima são uma pequena contribuição.