Várias cidades desmoronam e coronavírus avança no interior

Mais de dois municípios têm casos registrados, quase sempre no início da pandemia. Governos ainda resistem ao lockdown. População vive dissociação da realidade

Por Maíra Mathias e Raquel Torres, em Outra Saúde

A HORA DO BLOQUEIO

lockdown da cidade de Wuhan, na China, começou na manhã de 23 de janeiro. Onze milhões de pessoas mergulharam no primeiro bloqueio total de circulação da pandemia, naquele que era, então, seu epicentro. O objetivo era evitar a propagação do novo coronavírus não só para outras partes do território chinês como para o resto do mundo. Em dias, cidades no entorno também foram fechadas e, em pouco tempo, o esforço já modificara a vida de 50 milhões. Mas era tarde demais. Aliás, à medida que o conhecimento sobre o vírus vai aumentando, surpresas vão surgindo. Hoje mesmo, médicos franceses divulgaram que têm elementos para acreditar que um paciente tratado num hospital de Paris estava infectado pelo Sars-Cov-2 em dezembro, reabrindo o debate sobre se o vírus já circulava antes de a Organização Mundial da Saúde (OMS) saber da sua existência.   

O próximo bloqueio total foi decretado na Itália. Primeiro, na região Norte; a partir de 9 de março, em todo o país. Ontem, pela primeira vez em dois meses, o lockdown começou a ser flexibilizado por lá. Ao contrário da China, a decisão italiana envolveu uma outra variável importante: o colapso do sistema de saúde. Como sabemos, a velocidade do contágio foi tremenda. No ápice da epidemia, o ‘R’ – ou seja, o número médio de pessoas que um infectado é capaz de contaminar – foi estimado em 2,38 por um estudo publicado na Nature

Na semana passada, o Imperial College de Londres estimou que o R no Brasil pode ter chegado a 2,8. Por isso, nós somos um forte candidato a próximo epicentro da pandemia de covid-19. Mas, ao contrário de outros lugares que adotaram lockdown, como França e até mesmo a Índia, por aqui essa medida tem sido abordada com muita reticência pelos gestores estaduais. Não é à toa que o primeiro bloqueio do país tenha sido decretado pela Justiça.

Também não surpreende que o juiz que instituiu o bloqueio total em quatro cidades do Maranhão – São Luís, Paço do Lumiar, São José de Ribamar e Raposa –, que começa a valer hoje, esteja recebendo ameaças de morte. Ontem, o magistrado Douglas Martins pediu que a Polícia Civil investigue.  “A mensagem disse que, se não voltar atrás na minha decisão, ele vai me matar”, contou ao UOL.  “Registrei a ocorrência na polícia, comuniquei ao setor de segurança do Tribunal de Justiça e ao Ministério Público. Fiz isso não por mim exclusivamente, mas levando em conta a intolerância no país. As pessoas estão testando o Poder Judiciário, o Congresso, o STF [Supremo Tribunal Federal], a imprensa com ameaças semelhantes a essas feitas a mim. Se nenhuma dessas instituições reagir e aceitar essas agressões, a democracia brasileira não sobreviverá“, desabafou.

O medo da reação negativa de parte da população, inflamada quase que diariamente pelo presidente Jair Bolsonaro contra os governadores e pela reabertura, é o que explica a hesitação em decretar o lockdown mesmo diante de evidências mais do que suficientes de que os serviços de saúde atingiram a capacidade máxima de atendimento. Aliás, como sabemos, o movimento das últimas semanas tem ido no sentido contrário: flexibilizar as quarentenas que já chegaram a ser adotadas por 23 unidades da federação.

Mas é chegada a hora de pressionar pelo bloqueio total. O biólogo Atila Iamarino, que ficou famoso nos últimos meses pelas projeções que traça nas suas transmissões ao vivo no YouTube, começou a campanha pelo lockdown no domingo. Diante da falta de lanterna (testes em massa) e mesmo de vela, Iamarino alertou que o Brasil está, simplesmente, tropeçando em corpos, vivenciando sua epidemia no escuro. Por isso, defendeu, precisamos pelo menos nos antecipar ao colapso do SUS e olhar para as taxas de ocupação de leitos de internação e UTI nos estados (embora, também aí, haja dificuldades para achar os dados). 

Nós subscrevemos o apelo. E dizemos mais: além do lockdown, os estados e cidades mais afetados precisam lançar mão da requisição de leitos privados previsto em momentos de caos completo, como este, pela Constituição, pela lei que organiza o Sistema Único de Saúde (8.080) e pela lei de calamidade pública aprovada no Congresso Nacional. Não faz o menor sentido que vidas sejam perdidas por falta de capacidade nas redes estadual e municipal quando há leitos vagos no setor privado.

Voltando ao lockdowné preciso destacar que já vemos algum avanço nesse debate depois da decisão tomada pelo juiz no Maranhão. Em Pernambuco, o governador Paulo Câmara (PSB) promoveu uma reunião para apresentar a proposta do bloqueio à Assembleia Legislativa ontem. Por lá, o governo já pediu apoio do Exército e do Ministério da Saúde para aplicar o lockdown. “Nós fizemos questão de fazer esse pedido para que houvesse uma manifestação pública por parte do Ministério da Saúde, reconhecendo as dificuldades de Pernambuco”, disse o secretário estadual de saúde, André Longo. O estado tem 98% dos 435 leitos de UTI ocupados. “Não temos outra saída senão aumentar o isolamento social”, constatou ele.

Também no Pará, o bloqueio está na mesa. O governador Helder Barbalho (MDB) vai decidir amanhã se adota lockdown em algumas cidades do estado. Segundo ele, já foram identificadas as atividades essenciais que poderão funcionar – nos outros países, esse rol normalmente é formado por supermercados, farmácias e hospitais – e estão em análise formas de reduzir a circulação do transporte coletivo e estratégias de trânsito. “Desenha-se o pior cenário, que é o de todos ficarem doentes ao mesmo tempo e terem de procurar o sistema público e privado de saúde. Toda a estratégia mostra que temos a necessidade de espaçar essa procura, com a consolidação de um platô, e não de um pico”, disse em entrevista à Folha. O prefeito de Belém, Zenaldo Coutinho (PSDB), adiantou ontem que a capital deve, sim, adotar o bloqueio. 

O Rio de Janeiro também já está próximo do colapso do SUS. Mas o debate sobre o lockdown ainda está restrito aos gabinetes do governo. Diante da clara dificuldade em atender os doentes, Wilson Witzel (PSC) recebeu do comitê científico que assessora o estado a recomendação de bloquear regiões consideradas críticas em relação à propagação do novo coronavírus. De acordo com o jornal O Globo, o documento prevê algo essencial para tornar o bloqueio viável: a distribuição de alimentos e produtos de higiene nas casas das famílias mais vulneráveis. “Da primeira semana de abril para cá é perceptível que muitas pessoas não estão cumprindo o isolamento. E há a dificuldade de se fazer isolamento em comunidades muito pobres na medida que a ajuda do governo federal, já insuficiente, não chegou. A política econômica não está a serviço da política de saúde”, criticou o ex-ministro José Gomes Temporão, para quem o lockdown deve ser decretado para “ontem”. 

Em São Paulo, João Doria (PSDB) disse que pode mudar de ideia sobre o lockdown caso as coisas piorem. “É uma alternativa que poderá ser considerada se houver circunstâncias que assim exijam. Tudo o que for para salvar vidas e proteger pessoas, não hesitaremos em adotar em São Paulo. Mas só faremos isso amparados pelo Comitê de Saúde. Neste exato momento, lockdown não está sendo analisado, mas, volto a dizer, neste momento. Dado que estamos numa evolução acelerada desta pandemia, isso poderá ser reanalisado nos próximos dias”. É o mesmo recado do governo do Espírito Santo. “Por enquanto, não são estudadas medidas assim, mas o agravamento da situação pode levar ao lockdown aqui. É bom fazer esse alerta para que a sociedade nos ajude com o isolamento social”, disse o secretário de Governo, Tyago Hoffman ontem à CBN

QUEM ATRAPALHA

Quando a mais alta autoridade da República insiste em minar os esforços de isolamento social, é natural que isso tenha consequências. Um estudo feito por pesquisadores da Universidade de Cambridge e da Fundação Getúlio Vargas quantificou esse efeito. Segundo eles, atos e discursos de Jair Bolsonaro podem estar por trás de pelo menos 10% dos casos e até mesmo de mortes registradas pelo novo coronavírus no Brasil até domingo. 

Eles identificaram dois episódios de inflexão na tendência que vinha sendo de respeito às quarentenas. Primeiro, a manifestação de 15 de março contra o Congresso e o STF, na qual Bolsonaro posou para selfies e deu abraços em apoiadores mesmo estando sob recomendação de isolamento por ter tido contato com um punhado de infectados (e talvez pelo fato de ele próprio estar contaminado). Na sequência, veio o pronunciamento inesquecível de 24 de março, quando ele falou de seu “histórico de atleta” e chamou a covid-19 de gripezinha e resfriadinho. 

Nos dez dias subsequentes, esse combo de irresponsabilidade teria provocado um movimento adicional de um milhão de pessoas circulando nas ruas. A conclusão foi tirada de dados de movimentação de 60 milhões de celulares. Os donos dos aparelhos não foram identificados. 

A partir daí, os pesquisadores levaram em consideração variáveis como a proporção de contaminados em relação à população em geral e o potencial de infecção de cada indivíduo portador do vírus. E descobriram que os episódios protagonizados por Bolsonaro podem ter sido responsáveis por, no mínimo, 500 novos casos diários no período estudado, de dez dias. Ou seja, dez mil casos. A mesma equação aplicada aos óbitos indica que as declarações podem estar por trás de, pelo menos, 700 mortes. Mas os números podem ser maiores, dada a subnotificação do coronavírus que graça no Brasil.

Mas o estudo foi além e comparou o índice de distanciamento social entre municípios mais ou menos bolsonaristas. Com base nos resultados das eleições presidenciais de 2018, os cientistas identificaram as cidades onde Bolsonaro recebeu mais de 50% dos votos no primeiro turno. Houve uma adesão à quarentena de 24% da população em cidades como Ascura (SC) e Nova Santa Rosa (PR) que estão no topo dos municípios que deram maior votação ao capitão reformado. 

“Nossa pesquisa sugere que as declarações sobre comportamento de saúde pública são levadas a sério pelos seguidores, a despeito do seu rigor científico ou da sua capacidade de causar danos”, disse em entrevista ao Globo Tiago Cavalcanti, um dos autores do estudo.

Outra pesquisa, esta das universidades da Carolina do Norte, nos Estados Unidos, e de Bocconi, na Itália, se concentrou no impacto das manifestações do dia 15 de março em 255 cidades. Chegou a conclusões semelhantes. Nos municípios com menor concentração de eleitores de Bolsonaro, os protestos que ocorreram em 15 de março fizeram com que a curva de contágio aumentasse 24,7% em comparação com os locais que não tiveram atos a favor de Bolsonaro. Já nos locais que registraram atos e onde ele também teve maioria popular, a taxa de contágio foi 43,3% mais rápida do que nas cidades onde o presidente não teve a maioria dos votos e que não sediaram os atos.

INTERIORIZAÇÃO

E segue firme e forte a tendência de interiorização da covid-19. Desde 25 de fevereiro, quando São Paulo notificou o primeiro caso, já foram detectadas infecções em nada menos do que 2.023 cidades. No final de março, 22% dos casos estavam fora das capitais. Em 29 de abril, o número saltou para 39%. E é nesses lugares que o novo coronavírus se espalha mais rápido. De acordo com a seção =igualdades, da Piauí, fora das capitais cada infecção gerou, em média, 34 novos casos no período de um mês. Já nas capitais, cada caso gerou, em média, 14 outros. A doença ainda está na fase inicial na maior parte das cidades. Oito entre dez municípios registraram menos de 11 casos. E quatro entre cinco das cidades com até 20 mil habitantes estão, pelo menos oficialmente, livres do vírus. Mas não por muito tempo, de acordo com o sistema MonitoraCovid19. Isso porque 44% das cidades médias (que têm de 20 a 50 mil habitantes) passaram a contar com casos da doença nas últimas semanas. Logo, a tendência é o crescimento de ciclos de transmissão também nas cidades pequenas.

DISSOCIAÇÃO DA REALIDADE

O Avaaz está olhando para as notícias falsas que circulam sobre a covid-19. De acordo com o levantamento, sete em cada dez internautas brasileiros acreditam em ao menos uma fake news sobre o coronavírus. O maior canal de propagação de boatos é o WhatsApp, seguido de perto pelo Facebook. A mesma pesquisa foi feita nos EUA e na Itália. Adivinha? Por aqui, aderimos mais às narrativas falsas. Ao menos 73% dos brasileiros acreditaram em alguma fake news, seguidos por 65% dos americanos e 59% dos italianos. “110 milhões de brasileiros acreditam em ao menos uma notícia falsa que afeta as decisões que as pessoas tomam para se proteger. Isso pode levar cada indivíduo a contagiar centenas de pessoas com o coronavírus, anulando os esforços de médicos e do poder público”, afirmou Laura Moraes, coordenadora de campanhas da Avaaz, em comunicado.

Segundo a fundadora do site de checagem Aos Fatos, Tai Nalon, a narrativa falsa que mais tem feito sucesso país afora é a de que os enterros acontecem com caixões vazios. Nessa lógica de sinal trocado, os sepultamentos seriam parte de uma conspiração para que as pessoas acreditassem que a pandemia é séria. Querem acreditar que é só uma gripezinha, dentre outros (muitos) absurdos. 

Pois bem: outro levantamento faz a gente refletir sobre o grau de dissociação a que chegou a sociedade brasileira. Segundo essa pesquisa, 33% dos brasileiros conhecem uma pessoa que morreu com covid-19. E 8% conhecem pessoas que morreram com suspeita de contaminação pelo vírus. Mesmo assim, 23% afirmam que estão frequentando a casa de terceiros. E o nível de preocupação em infectar outras pessoas caiu de 76% para 69%. 

NADA DISSO

Em visita a Manaus, o ministro da Saúde Nelson Teich descartou a hipótese de montar hospitais de campanha agora por lá, na capital de um dos estados onde a pandemia mais preocupa. Ele disse que o governo federal tem recursos escassos e precisa primeiro “otimizar” o funcionamento das estruturas já disponíveis. “O hospital é amplo, com espaço para crescer”, justificou, após visitar o Hospital de Combate ao Covid-19 Nilton Lins. Ainda nas palavras de Teich, é preciso ter “eficiência e velocidade”. Não sabemos ainda como vai se dar esse crescimento, e com que “velocidade”…

Um hospital de campanha havia sido prometido no mês passado, ainda por Luiz Henrique Mandetta, porém jamais foi entregue – a Prefeitura é que montou um. Mas o prefeito Arthur Virgilio (PSDB) ficou muito empolgado com a visita de Teich. “Percebi do ministro uma enorme sensibilidade, me toca o fato de ele dizer que vai dar ênfase especial a cuidar das tribos, das etnias indígenas. A conversa foi boa, respeitosa, poderia terminar com um abraço se não fosse a pandemia”, revelou, possivelmente se referindo à intenção anunciada por Teich  de reservar uma área do hospital de campanha de Manaus para os povos indígenas.

Quando o ministro chegou ao Hospital Delphina Rinaldi Abdel Azir, indígenas da etnia Baré o aguardavam com cartazes dizendo “vidas indígenas importam” e “não deixe o índio morrer”. Uma ala reservada é bem menos do que os povos indígenas da região estão precisando. Lembramos que muitas das aldeias ficam distantes de Manaus e que já há indícios de transmissão comunitária em São Gabriel da Cachoeira, o município mais indígena do país, que fica a quase mil quilômetros da capital.

Aliás, o controle nas aldeias vai mal. A regão amazônica é onde se concentra a maior parte dos casos registrados de covid-19 entre indígenas no Brasil, e o site De Olho nos Ruralistas ilumina um ponto que tem tudo para tornar o combate muito mais difícil: a contaminação dos profissionais de saúde que atuam na linha de frente. Só no Dsei Yanomami são 16 os trabalhadores que atuam na saúde indígena e tiveram diagnóstico positivo confirmado no último sábado.

É HOJE

Depois de se reunir com governadores, hoje Nelson Teich vai conversar com secretários estaduais de saúde. Segundo o Painel, da Folha, vai ser pressionado para aumentar a ajuda financeira aos estados, acelerar a habilitação de leitos de UTI e definir como o governo federal vai ajudar no custeio de hospitais de campanha. Três discussões que parecem bem atrasadas, e a visita a Manaus traz pistas sobre quanto dinheiro a Pasta pode estar disposta a gastar. Os secretários reclamam que os recursos federais estão indo direito para os municipios, e que eles estão com as contas apertadas. No Pará, por exemplo, os 720 leitos de campanha foram montados pelo estado, sem recursos federais.

DÁ PARA CONFIAR?

O Brasil está comprando testes rápidos para covid-19 que nem os países produtores querem. A descoberta foi feita pelo Intercept, cruzando dados da liberação de testes aqui e em outros países. No total, a Anvisa autorizou testes fabricados por 28 laboratórios estrangeiros, mas, desses, apenas sete foram aprovados em inspeções nos países de origem. A maior parte dos exames aprovados aqui são chineses: 15. Mas apenas três deles foram aprovados na própria China. Para citar um exemplo, os testes fabricados pela empresa Hangzhou Biotest Biotech têm um grau de confiabilidade tão baixo que a China proibiu as exportações do fabricante no começo de abril. Só que o Brasil já tinha importado um carregamento. Testes ruins estão sendo usados em estados como Amazonas, Paraíba e Bahia.

A questão, segundo a reportagem de Breno Costa, é que a Anvisa mudou suas regras para “tirar as burocracias do caminho” e acelerar a autorização de testes, além de equipamentos médicos: “A Anvisa decidiu aceitar documentação incompleta dos fabricantes e não fazer inspeção para certificar práticas adequadas de fabricação”. Mesmo quando há documentos pendentes, pode-se dar uma autorização provisória de um ano.

Lembramos que os testes rápidos são aqueles chamados sorológicos, que identificam a presença de anticorpos. Mesmo quando ‘bons’, eles ainda são menos confiáveis do que os testes PCR, feitos com análise laboratorial. Foram esses testes rápidos que a Anvisa permitiu vender nas farmácias, para qualquer pessoa. E, quando comprados pelos poder público, a prioridade é usá-los em profissionais de saúde. Justo os que estão na linha de frente do combate ao coronavírus, que confiam nos resultados para orientar seu isolamento e sua volta ao trabalho de modo que não contaminem pacientes e outros profissionais.

Os Estados Unidos tiveram grandes problemas com isso, exatamente porque sua agência reguladora, a FDA, também não fazia grandes exigências. Assim com o Brasil, o país testava pouquíssimo e sofria (corretas) pressões para aumentar a testagem. Só que, como reconhece agora, abriu as portas para fraudes que não tardaram a aparecer. Ontem, o país passou a impor que os testes rápidos passem por uma revisão da FDA, incluindo os que já estão no mercado. Eles só vão poder ser comercializados se tiverem taxas mínimas de resultados corretos (90% no caso dos positivos e 95% no caso dos negativos).

POR AMOSTRAGEM

Começou ontem a pesquisa por amostragem que pretende identificar a real prevalência do novo coronavírus na capital de São Paulo. A iniciativa é comandada por pesquisadores da Unifesp e da USP e colaboradores do Grupo Fleury, e se assemelha àquela realizada no Rio Grande do Sul por pesquisadores da Universidade Federal de Pelotas. A ideia é realizar testagens massivas em intervalos de três ou quatro semanas, para ver quantas pessoas já foram infectadas e com que velocidade o vírus está se espalhando. Um dos objetivos é ver quando vai ser atingida a imunidade de rebanho (com cerca de 80% da população atingida) para planejar a flexibilização do isolamento.

Nesse caso, a melhor notícia possível seria descobrirem que muita gente já se infectou: “Nós adoraríamos que este estudo indicasse que pelo menos 40% das pessoas já estão imunes ao vírus. Neste caso, quanto mais, melhor, porque possibilitaria redução das medidas de isolamento. Mas, baseado em estudos parecidos, estimamos que ficará abaixo de 10%, o que significa que a doença ainda está em aceleração”, explica Celso Granato, infectologista líder do projeto, n’O Globo.

Em tempo: a validade desses estudos baseados em testes sorológicos depende, é claro, de que os testes usados sejam minimamente confiáveis.

E o IBGE começou ontem a coletar dados para a Pnad Covid, a pesquisa por amostra domiciliar com foco na evolução do coronavírus no Brasil. Dois mil agentes vão telefonar para cerca de 190 mil domicílios em 3.364 cidades e as pessoas vão responder a 40 perguntas sobre eventuais sintomas de covid-19, procura por serviços de saúde, necessidade de internação e impactos da pandemia no trabalho e rendimento.

MUITO MAIS

Em seu primeiro relatório sobre como o coronavírus afetou a mortalidade italiana, o Instituto Nacional de Estatística do país traz informações esperadas, mas ainda chocantes, e indica que os óbitos por covid-19 estão seriamente subestimados. Entre 21 de fevereiro (quando ocorreram as primeiras mortes pela doença) até 31 de março, os óbitos em todo o país aumentaram 49% em comparação com os cinco anos anteriores. Naquela altura, havia cerca de 13,7 mil mortes atribuídas ao coronavírus, mas no total foram 25,3 mil mortes ‘extras’. Ou seja, 11,6 mil ficaram fora da conta da covid-19. E a maior parte dessas mortes aconteceu no norte do país, parte mais atingida pela pandemia. Nessa região, o número de mortes cresceu 95%, e, olhando só para Bergamo, foram 568%.

De acordo com o órgão, é bem razoável supor que muitas dessas pessoas morreram pelo coronavírus sem serem testadas, e ainda que parte delas pode ter morrido por outras causas por não terem conseguido atendimento adequado, já que o sistema de saúde estava quebrado.

E a Alemanha, um dos países europeus que mais realizam testes, também pode ter enorme subnotificação, ao menos no que diz respeito aos casos: em vez dos 160 mil registrados, o país pode ter mais de 1,8 milhão, segundo pesquisadores da Universidade de Bonn. Eles  fizeram testes sorológicos em cerca de mil pessoas na cidade de Ganlt, que tem 11 mil habitantes. Identificaram que 15% delas já tinham sido contaminadas, e que a taxa de mortalidade entre esses pacientes foi de 0,37%. Usando essa taxa para as 6,7 mil mortes no país, chegaram ao número de 1,8 milhão, dez vezes maior do que o oficial. Os resultados da pesquisa ainda não passaram por revisão de pares, e não foram publicados em uma revista científica. Algo que chamou a atenção dos pesquisadores – embora não seja exatamente uma novidade – é que muitos dos afetados não haviam apresentados sintomas: 22% deles.

TRANSPARÊNCIA

Ontem, chegamos a 107.780 casos confirmados e 7.321 mortes, de acordo com o Ministério da Saúde. A Pasta divulgou uma correção horas depois de divulgar o consolidado, acrescentando uma morte e 71 novos casos no Amazonas. Não deu explicações de porque eles ficaram de fora. 

Falando em transparência, atendendo um pedido da Defensoria Pública da União, a Justiça fluminense determinou que as secretarias municipal e estadual de saúde do Rio devem emitir diretrizes para o registro de raça, etnia, gênero e região em casos de coronavírus. A decisão também implica o Ministério, instado a incluir esses dados na apresentação técnica sobre a situação da covid-19 no país.

NINGUÉM SABE, NINGUÉM VIU

Como já dissemos por aqui, a aproximação entre Jair Bolsonaro e líderes do Centrão não deixa muitas dívidas quanto à intenção do presidente. Os 200 preciosos deputados desses partidos são suficientes para imunizar Bolsonaro em eventuais ameaças; em troca, cargos em órgãos e secretarias estratégicas vão sendo distribuídos. A Folha fez a oito envolvidos perguntas que normalmente eles respondem em ‘off‘, anonimamente. Alguns silenciaram. Outros negaram qualquer negociação. Wellington Roberto, do PL, por exemplo, disse que “lista de cargos, nunca existiu isso” e que seu último encontro com Bolsonaro foi para ver o monitoramento do governo sobre o coronavírus. “Nos surpreendemos com a estrutura que o governo mostrou, e essa foi a causa maior da visita, além da nossa preocupação com os projetos votados na Câmara”, desconversou.

Fato é que os nomes vão aparecer nos cargos. E, para ‘balancear’, Jair Bolsonaro pretende encher postos de segundo e terceiro escalão com militares. “O núcleo duro do Palácio do Planalto – formado pela ala militar e pelos filhos do presidente – desenha um governo ancorado nas Forças Armadas”, escrevem os repórteres Renato Onofre e Talita Fernandes. A entrada do general Pazuello no Ministério da Saúde já seria reflexo disso.

Aliás, em um compromisso que não estava na agenda oficial, Bolsonaro recebeu ontem o Major Curió, um nome simbólico da repressão durante a ditadura militar, denunciado seis vezes pelo Ministério Público Federal por participação em assassinatos e sequestros. “Dia de dois amigos se encontrarem e dizer FORÇA”, escreveu em rede social um dos filhos de Curió, ao postar uma foto do encontro.

É DE DENTRO

Um homem que xingou enfermeiras que protestavam em Brasília na sexta-feira, cuspindo nelas, é funcionário do governo. Terceirizado, Renan da Silva Sena trabalha no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Mas não trabalha desde março: não responde aos e-mails de seus superiores nem executa suas tarefas. Apesar disso, participou de diversos protestos em que pedia intervenção militar. A Pasta de Damares disse em nota que havia pedido sua demissão naquele mês, mas o pedido, se realmente existiu, jamais chegou à empresa terceirizada.

MAIS UMA IDEIA

Cientistas da Universidade de Stanford, nos EUA, propõem que se comece a usar a edição genética para impedir a multiplicação do novo coronavírus dentro das células. A técnica CRISPR ‘cortaria’ parte do genoma do vírus, impedindo sua replicação. O estudo ainda é preliminar, mas, de acordo com os pequisadores, tem potencial para se desenvolver.

E a União Europeia anunciou um fundo para o desenvolvimento e distribução de uma futura vacina contra o coronavírus, arrecadando R$ 7,5 bilhões.

MUITO ESTRANHO

Um médico russo reclamou em vídeo de ter sido forçado a trabalhar mesmo infectado pelo coronavírus; dias depois, caiu de uma janela do hospital. Seria estranho por si só, mas trata-se do terceiro incidente do tipo em duas semanas. Os dois médicos anteriores morreram devido aos ferimentos; este último fraturou o crânio está em estado grave.

MAIS UMA PERDA

Dezenas de reportagens e artigos foram publicados ontem ao longo do dia sobre Aldir Blanc, morto com coronavírus após um longo período de internação. Terminamos a news de hoje com sua música nos ouvidos.

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