PL 2633/2020: mais do mesmo. Grilagem de terras públicas em meio à pandemia. Por Julio José Araujo Junior*

Em plena pandemia, diante da perda de validade da MP 910, a Câmara dos Deputados pretende discutir com urgência o PL nº 2633/2020, que prevê a regularização de terras públicas em áreas federais. Os defensores do PL sustentam que ele beneficia pequenos produtores rurais e não afeta territórios indígenas nem o meio ambiente. Mas a história não é bem assim.

Em primeiro lugar, enquanto ainda buscamos garantir o isolamento social para salvar vidas, não há razão para discutir de forma tão açodada problemas históricos brasileiros, como a grilagem e a renúncia estatal à proteção das terras públicas. Além disso, é imprescindível garantir discussão profunda, com ampla participação, acerca de questões que haviam sido deixadas de fora, como as conclusões do Tribunal de Contas da União (TCU) acerca da omissão dos órgãos de fiscalização federal na aplicação da Lei nº 11.952/2009, cujo regime de concessão de terras se pretende aprofundar com a nova legislação.

O TCU constatou que, no período de 2009 a 2017, os órgãos federais deixaram de atuar para fiscalizar a efetiva ocupação de terras públicas submetidas a regularização, bem como a sua devida utilização e o respeito ao meio ambiente. Como consequência, houve um prejuízo de pelo menos R$ 1 bi aos cofres públicos e a formação de um mercado ilegal de terras. Além disso, o tribunal constatou a invasão de quase 700.000 hectares de terras públicas, sem falar na ausência de providências pela União para a retomada e destinação de R$ 2,4 bilhões em imóveis rurais com irregularidades.

O efeito ambiental foi o desmatamento de pelo menos 82 mil hectares em terras públicas e a sobreposição indevida de registros de terras em territórios especialmente protegidos. Isso mostra como a desregulamentação provocada pela lei atual e o favorecimento de mecanismos de autodeclaração têm servido à legitimação de práticas ilegais.

Considerando o cenário acima, debater as conclusões do TCU é uma tarefa imprescindível. Há quem tente diferenciar o PL 2.633/202s0 da MP 910, em razão do tamanho das áreas a serem consideradas e do marco temporal fixado. Olvidam-se, porém, que o PL abre brechas para a chancela de terras desmatadas até recentemente, por meio de aleinação, e que a lógica de regularização de grandes porções de terras (até 2.500 hectares) não foi alterada. Além disso, deve-se resslatar que a autodeclaração da ocupação continua sendo a tônica, dada a fragilidade de documentos como o cadastro ambiental rural (CAR) e a omissão da fiscalização que o TCU detectou. Tudo indica, pois, que uma nova lei abriria mais uma fresta para ilegalidades.

É necessário, portanto, que atentemos para os problemas verdadeiramente urgentes no contexto de pandemia. Segundo o INPE, o desmatamento na Amazônia aumentou 55% nos últimos 4 meses. O Covid-19 chegou às aldeias e atinge gravemente as diversas populações da Amazônia. Nesse momento, nossas energias deveriam estar voltadas ao bem-estar dessas comunidades, e não ao benefício à grilagem.

*Julio José Araujo Junior é procurador da república. Coordenador do GT Reforma Agrária (PFDC/MPF). Mestre em Direito Público pela UERJ. Autor de “Direitos territoriais indígenas: uma interpretação intercultural”.

Foto: João Laet/AFP/Getty Images

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