Apesar de mais mortes, número de diagnósticos é bem inferior aos do CE, BA e PB, levantando suspeita de subnotificação
Vinícius Sobreira, Brasil de Fato
Desde o início da pandemia do novo coronavírus (Sars-CoV-2) no Brasil, foram frequentes os alertas de especialistas sobre os impactos que o vírus poderia ter nas periferias das grandes cidades e também nas zonas rurais, especialmente em terras indígenas, quilombolas, ribeirinhas e outras povoações historicamente desassistidas pelo Estado. O processo de interiorização da doença, observado desde o fim de abril, atingiu em cheio os povos originários. Até a última sexta-feira (7) o número de casos de covid-19 confirmados em territórios indígenas já superava os 22 mil, com 631 vítimas fatais da doença.
Os números não levaram o Poder Público a agir para proteger essas populações. A falta de ação levou os juízes do Supremo Tribunal Federal (STF) brasileiro a votar, por unanimidade, a obrigação do Governo Federal a apresentar um plano de ação para a defesa das populações indígenas nas aldeias. Uma das obrigações é retirar os invasores de terras indígenas, muitos dos quais estão levando a doença e infectando os povos tradicionais.
Bolsonaro já havia sido denunciado no Tribunal Penal Internacional (TPI), em novembro de 2019, por “estimular genocídio indígena” com retirada de territórios, ataques ao meio ambiente e declarações públicas de menosprezo contra os povos originários. A denúncia foi aceita e Bolsonaro será julgado em Haia (Holanda). A denúncia foi protocolada por organizações brasileiras de Direitos Humanos.
De acordo com o boletim da Rede de Monitoramento de Direitos Indígenas em Pernambuco (Remdipe), o estado tinha até esta sexta (7), 294 indígenas diagnosticados positivamente para covid-19, com 12 mortos, 43 ainda em tratamento e os demais 239 já recuperados. As mortes ocorreram entre maio e junho, mas nenhum novo óbito foi registrado no mês de julho ou início de agosto.
Em entrevista ao Brasil de Fato Pernambuco, o comunicador Alexandre Santos Pankararu, integrante da Associação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme), lembrou que seu povo Pankararu acabara de realizar sua tradicional festa da Corrida do Umbu quando o vírus iniciou o espalhamento em Pernambuco. “Passamos a informar a comunidade sobre a gravidade da situação. Alguns comércios nossos fecharam e montamos barreiras para controlar a entrada e saída da população, mas muita gente continuava saindo para fazer compras noutros lugares”, diz o indígena, que lamenta os 48 casos já confirmados dentro do território de seu povo.
O povo mantém funcionando oito barreiras sanitárias nas entradas de seus territórios, entre os municípios de Tacaratu e Petrolândia, no Sertão do estado. O primeiro caso de indígena diagnosticado em Pernambuco foi justamente um enfermeiro Pankararu que trabalha em Arcoverde. Ele se manteve na cidade até se curar da doença.
Os Pankararu são o 3º povo indígena mais atingido pela covid-19 no estado, respondendo por 44 casos (16% do total). O povo Fulni-ô, do município de Águas Belas, é até agora o mais atingido, com 152 casos e 5 mortes, respondendo até o início de julho por 70% dos casos em territórios indígenas em Pernambuco. Mas o boletim da Remdipe indica que em julho os números se estabilizaram neste povo, que hoje responde por 52% dos casos no estado. Os povos Xukuru (Pesqueira), com 60 casos (20% do total); e Truká (Cabrobó), com 14 casos (5%) são outros em alerta. Dos 12 povos indígenas de Pernambuco, três não registraram casos de covid-19: Kapinawá (Buíque), Pankaiwá (Jatobá) e Tuxi (Belém do São Francisco).
O Governo de Pernambuco só passou a detalhar o número de casos de covid-19 em terras indígenas a partir boletim epidemiológico do dia 22 de julho. A Redimpe se queixa, no entanto, da ausência de detalhamento sobre os casos de contágio de indígenas que não residem em territórios indígenas.
Os indígenas destacam como ação fundamental para a contenção da pandemia as barreiras sanitárias realizadas pelos próprios povos nas entradas das aldeias, com orientações sobre medidas preventivas, uso de máscara e acesso ao álcool em gel. Algumas aldeias definiram pelo fechamento completo para entrada e saída, noutros momentos houve dias específicos para ida aos centros urbanos. Alguns povos realizaram o controle de entrada e saída de maneira temporária, por poucas semanas, mas outros têm mantido o controle até agora, como os Pankararu, Truká e Fulni-ô mas com menos restrições.
Mesmo com o isolamento, o impacto na vida dos indígenas não foi tão grande quanto nas periferias das grandes cidades. “A maioria do nosso povo trabalha com saúde e educação, dois setores que seguiram remunerando os trabalhadores. Então o impacto financeiro não foi tão grande”, conta Alexandre Pankararu. “O auxílio emergencial também ajudou bastante aqueles que viviam da roça e precisaram se isolar”, completa.
O indígena pondera que seu povo é muito afetuoso e sentiu uma “exaustão” do isolamento, algo que ele qualifica como impacto cultural da pandemia. “Sentimos o cultural que o mundo sentiu – aqui no Brasil com o agravante do impacto ambiental. E para completar, muitos povos indígenas sofreram ataques de não indígenas, como ocorreu com posseiros dentro do nosso território Pankararu”, diz Alexandre. O território passou por um processo de desintrusão em 2018 e, segundo Alexandre, muitos destes que foram expulsos pela justiça, aproveitaram o momento de pandemia para retornar às terras indígenas, derrubando árvores e cortando arames.
Entenda o caso:
As respostas do poder público – nas esferas federal, estadual e municipal – foram aquém das necessidades dos povos indígenas, garante Alexandre. “As ações são mínimas. Há os funcionários da SESAI (Secretaria Especial de Saúde Indígena, do Ministério da Saúde), que mesmo sem equipamentos de proteção individual (EPIs) suficiente, ainda assim eles seguem trabalhando por acreditarem na causa e por muitos serem indígenas. O apoio do Poder Público é muito pouco”, lamenta o comunicador Pankararu, que exemplifica com a atitude do presidente da República de excluir representantes indígenas da reunião para tratar dos impactos da covid-19 nas terras indígenas.
Há um mês, em 8 de julho, Jair Bolsonaro vetou vários itens da lei 14.021, elaborada para proteger a população indígena da pandemia. Entre os itens cortados por Bolsonaro estão a garantia de acesso a água potável, itens de higiene, leitos hospitalares e respiradores mecânicos. O indígena conta ainda que o Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) de Pernambuco só no fim de julho repassou à APOINME 170 testes RT-PCR para a detecção de anticorpos para covid-19. Até então o DSEI havia recebido do governo estadual apenas 130 testes rápidos, que informam apenas se a doença está ativa, além e serem menos confiáveis.
Pernambuco tem uma população de mais de 45 mil indígenas, distribuídos em 16 territórios de 12 nações indígenas. As organizações indígenas têm contado principalmente com doações de entidades parceiras. “Hoje temos mais apoio solidário, com doações de parceiros e amigos, do que do Estado”, diz Alexandre Pankararu.
Ele destaca as movimentações da APOINME e da Articulação dos Povos Indígenas Brasileiros (APIB) para arrecadar recursos para a distribuição de EPIs e cestas básicas para os povos que estão necessitando mais. Neste domingo (9), dia internacional dos povos indígenas, a APIB realiza uma transmissão ao vivo a partir das 17h na sua página no Instagram (@apiboficial). Batizada de “Maracá – alerta indígena”, a transmissão vai reunir lideranças indígenas e artistas brasileiros para abordar a atual situação dos diversos povos indígenas do Brasil e fortalecer a rede de solidariedade para esses povos.
Edição: Vanessa Gonzaga
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Imagem: Algumas etnias, como os Pankararu (foto) implementaram por conta própria barreiras sanitárias nas comunidades para evitar a disseminação da covid-19 – Foto: Angelo Bueno/Cimi-NE