A clandestina Vala de Perus, revelada em São Paulo há 30 anos, armazenou vítimas ocultadas pelo regime militar. Coordenador do trabalho de identificação dos restos mortais vê risco de interrupção sob Bolsonaro.
Nádia Pontes, na Deutsche Welle
Depois de 34 anos de busca, Gilberto Molina pôde enterrar o irmão mais novo, Flávio Molina, no jazigo da família no cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro. Morto em São Paulo às vésperas do aniversário de 24 anos, o então estudante foi preso e torturado em 1971, nas dependências do temido órgão de repressão política da ditadura militar, conhecido como Destacamento de Operações e Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi).
Foi somente em 1981 que Gilberto conseguiu chegar perto dos restos do irmão desaparecido. Com a ajuda de Antônio Pires Eustáquio, que chefiava o cemitério Dom Bosco, no bairro paulistano de Perus, ele presenciou como uma retroescavadeira trouxe para a superfície sacos cheios de ossos escondidos numa área. O local clandestino receberia o nome de Vala de Perus, em referência ao bairro que abriga o cemitério construído em 1970, sob a gestão do prefeito Paulo Maluf. Mas a história ainda levaria quase dez anos para se tornar pública.
Naquela época, o Brasil ainda estava sob comando dos militares, que mandavam prender quem consideravam inimigos políticos. Foi só há exatos 30 anos, em 4 de setembro de 1990, após a redemocratização, que a vala foi finalmente aberta para o reconhecimento das ossadas.
“A fase de identificação do meu irmão durou desde a abertura da vala até 2005”, contou Gilberto Molina durante um evento online promovido pelo Instituto Vladimir Herzog.
Flávio Molina era militante do Movimento de Libertação Popular (Molipo). Conhecido pelos agentes do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), ele foi enterrado como indigente e com nome falso, por meio de um ofício assinado por Romeu Tuma, então diretor do órgão. A família de Flávio nunca foi comunicada.
Na Vala de Perus foram despejadas, clandestinamente, 1.049 ossadas durante a ditadura militar. Elas tinham passado por uma “exumação em massa” dentro do cemitério entre 1975 e 1976 e desaparecido, sem qualquer registro. Para que os mortos pelo regime jamais fossem localizados, o buraco clandestino no cemitério foi a saída encontrada pelos militares.
“A Vala de Perus faz parte de um processo de muita violência no Brasil, promovida pela ditadura militar e que provocou a morte de mais de 400 desaparecidos políticos. Mas foram milhares de pessoas assassinadas por uma política de desaparecimento promovida pela ditadura”, afirma à DW Brasil Rogério Sotilli, diretor-executivo do Instituto Vladimir Herzog, criado em memória do diretor de jornalismo da TV Cultura assassinado em 1975.
Jornalista, Herzog havia comparecido à sede do DOI-Codi para prestar depoimento. Lá, ele foi encapuzado, amarrado a uma cadeira, sufocado com amoníaco, sofreu espancamento e choques elétricos e nunca mais foi visto com vida, segundo a Comissão da Verdade da Associação Paulista de Saúde Pública. Em 2014, a família Herzog recebeu um novo atestado de óbito confirmado a morte sob tortura.
Repressão e violência reveladas
A batalha pela identificação das vitimas da Vala de Perus em 1990 foi protagonizada por mulheres, mães e companheiras dos desaparecidos que tiveram o apoio da prefeita eleita no ano anterior, Luiza Erundina.
O escândalo da vala clandestina chegou ao público com ajuda do trabalho de apuração do repórter Caco Barcellos, que passou anos pesquisando a violência policial para escrever um livro. Em 1990, ele ouvira de Antônio Pires Eustáquio o mesmo relato dado a Gilberto Molina quase dez anos antes, e reportagens fizeram com que o caso passasse a ser conhecido em todo o país.
O trabalho científico dedicado exclusivamente à identificação das ossadas, porém, só começou de fato em 2014. Naquele ano, um acordo de cooperação técnica possibilitou a criação do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF), dentro da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
O centro recebeu os restos mortais das 1.049 pessoas, embaladas em caixas individuais. Dessas, dois desaparecidos políticos foram identificados até agora: Dimas Antônio Casemiro, em janeiro de 2018, e Aluísio Palhano, em dezembro do mesmo ano. Outras quatro vítimas haviam sido localizadas anteriormente por meio de outras iniciativas, como foi o caso de Flávio Molina.
“Todos passaram pelo DOI-Codi. Eram presos, sem boletim de ocorrência, levados para centros clandestinos de repressão e tortura comandados pelo [coronel Carlos Alberto] Brilhante Ustra”, detalha Edson Teles, coordenador do CAAF, à DW Brasil.
Carlos Brilhante Ustra chefiou o DOI-Codi de 1970 a 1974. Estima-se que pelo menos 45 mortes e desaparecimentos forçados ocorreram sob a supervisão dele, segundo relatório da Comissão Nacional da Verdade.
“E o responsável por essas mortes é declarado pelo atual presidente como herói”, comenta Teles, em referência a Jair Bolsonaro.
Em agosto do ano passado, ao falar com jornalistas sobre um almoço entre ele e a viúva de Brilhante Ustra, o presidente chamou o coronel de “herói nacional que evitou que o Brasil caísse naquilo que a esquerda hoje em dia quer”.
Também quando era deputado, Bolsonaro homenageou o antigo chefe do DOI-Codi. Ao declarar seu voto favorável à abertura de um processo de impeachment contra a então presidente, Dilma Rousseff, em 2016, o atual presidente disse: “Pela memória do Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff.”
Falta de memória
Para Eugênia Gonzaga, procuradora do Ministério Público Federal, o episódio da Vala de Perus mostra o quanto a ditadura militar foi mascarada, e o quanto a violência foi escondida de todo mundo.
“Um terço das ossadas na vala era de crianças. Outro terço era de menores de 16 anos, possíveis vítimas da epidemia de meningite de década de 1970 que a ditadura não soube enfrentar”, afirma Gonzaga durante o debate online promovido pelo Instituto Vladimir Herzog. “Qualquer coincidência com a atualidade não é coincidência”, completou, em menção à atual pandemia de covid-19, que matou mais de 124 mil brasileiros até esta quinta-feira (03/09), segundo o Ministério da Saúde.
Para Sotilli, do Instituto Vladimir Herzog, a política de desaparecimento nunca deixou de existir. “Essa violência se repete porque nunca se levou a fundo todo o processo de responsabilização daqueles que cometeram esse processo de violência”, argumenta. “Isso continua acontecendo e levou alguém que faz apologia ao crime de lesa-humanidade à Presidência da República”, critica, reforçando que as mortes violentas pelo Estado, na atualidade, vitimam jovens negros da periferia.
Agora a história completa da Vala de Perus está sendo reunida num livro, de autoria do jornalista e escritor Camilo Vanucchi. “Se a gente conhecesse bem a história, a gente não estaria hoje num momento em que tanta gente diz que a ditadura militar não existiu, que não foi grave, que foi ‘branda’ e de que só ‘terroristas’ foram mortos”, pontua Vanucchi em entrevista à DW Brasil.
Das 1.049 ossadas despejadas na vala, estima-se que 42 eram de militantes políticos. “As outras mil são assassinatos de ‘pessoas comuns’. Então é mentira dizer que a ditadura não foi violenta”, argumenta o jornalista.
Edson Teles, que coordena o esforço de identificação no CAAF, alerta para o risco de interrupção do processo sob o governo Bolsonaro. “É importante lembrar o quanto o trabalho corre risco. Porque esclarecer a história de cada desaparecido e devolver o corpo para a família é mostrar o quanto é falso o discurso do atual governo sobre o que foi a ditadura militar no Brasil”, diz.
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Imagem destacada: Especialistas trabalham na análise das ossadas de Perus. De 112 caixas abertas em 2014, 26 tinham ossos misturados (Yghor Boy)