A postura negacionista do Brasil de Bolsonaro se repete na 45ª Sessão Ordinária do Conselho de Direitos Humanos. O rumo a um Estado pária faz o país recuar em compromissos antes assumidos
Por Guilherme Cavalli e Adi Spezia, no Cimi
O charlatanismo das correntes do WhatsApp bateu à porta da Organização das Nações Unidas. O negacionismo a la brasileira hoje norteia as políticas diplomáticas do Brasil. Isso porque a abertura da 75ª Assembleia da Organização das Nações Unidas (ONU) foi marcada por um discurso falacioso e delirante de Jair Bolsonaro, como classificou o Cimi em nota. O porta-voz do Brasil, na ocasião, deu o tom das demais participações do país nas esferas internacionais que aconteceram essa semana. O nacionalismo que paira em alguns países traz um lugar de destaque também ao Brasil, que passa a menosprezar os organismos multilaterais na tentativa de esvaziar e desqualificar esses espaços, como já vem ocorrendo desde o início da pandemia com a Organização Mundial da Saúde (OMS).
A postura do Brasil de Bolsonaro se repete na 45ª Sessão Ordinária do Conselho de Direitos Humanos. Ontem (24), durante diálogo Interativo com o Mecanismo de Experts sobre os Direitos dos Povos Indígenas, coube ao representante brasileiro desqualificar o estudo realizado pelas Nações Unidas sobre a temática.
“Misunderstanding” – do inglês equívoco, incompreensão, mal-entendido
O rumo a um Estado pária faz o Brasil também recuar em compromissos antes assumidos, como o da Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas, da qual o Estado brasileiro foi negociador ativo e apoiador após a sua adoção. São atos que vinculam o Estado brasileiro por se configurar uma prática estatal, em direito internacional. Com esta retórica, o governo quer se desvincular do padrão mais rígido da “consulta livre, prévia e informada” da Declaração, para um padrão mais brando de “consulta em boa fé e apropriada” da Convenção 169 da OIT. “Misunderstanding” – do inglês equívoco, incompreensão, mal-entendido – foi a palavra ordem do discurso do Brasil sobre as orientações da ONU sobre a temática indígena no país.
O Brasil classificou como equívoco o estudo produzido pela então Relatora Especial sobre os Direitos dos Povos Indígenas da ONU, Victoria Tauli-Corpuz. A acusação de desacerto também ocorreu sobre a temática do Parecer 001/2017, da Advocacia Geral da União (AGU). A medida administrativa da AGU foi emitida em julho de 2017 e traz graves consequências para os povos indígenas: ele vem sendo usado para barrar e anular demarcações de terras. O Brasil na ONU lembrou que o Parecer está em análise do Supremo Tribunal Federal mas não mencionou que a tese, mesmo sem decisão da Suprema Corte, já recua os processos demarcatórios. Pelo menos 17 processos de demarcação foram devolvidos pelo Ministério da Justiça para análise da Funai tendo como fundamento legal o parecer da AGU. Segundo o MPF, há pelo menos 27 processos que hoje estão sendo revistos com base na decisão.
Marco Temporal é denunciado na ONU
O direito originário ao território foi levado à ONU como contraponto à tese do Marco Temporal, que condiciona a demarcação de territórios indígenas à ocupação do local na época da promulgação da Constituição de 1988. Durante o diálogo interativo com o Mecanismo de Experts sobre o Direito dos Povos Indígenas, Rafael Modesto, advogado do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) trouxe a tese do indigenato e o direito territorial como pilar para os demais direitos humanos, tratando-se de povos indígenas. “Destacamos a centralidade do direito à terra como marco para o exercício de todos os demais direitos”, argumentou Rafael Modesto.
Os povos têm acordo com os princípios de que a terra não é uma commodity e que seu usufruto deve respeitar os direitos coletivos, assim como o uso e costumes da ocupação indígena. Modesto memorou que “a Constituição brasileira contempla o direito originário à terra e ao território indígena, de acordo com a Declaração das Nações Unidas sobre os Povos Indígenas, porém a tese anti-indígena do marco temporal, restringe o direito originário”.
A tese do Marco Temporal se encontra em debate no Supremo Tribunal Federal (STF). Contudo, embora a questão esteja na Suprema Corte Brasileira, os tribunais inferiores seguem aplicando o marco temporal, o que impede a democratização da terra para os povos indígenas. O Parecer 01/2017, da Advocacia Geral da União (AGU) passou a ter validade, sob o argumento de que seria a institucionalização da jurisprudência da Suprema Corte. Contudo, o referido instrumento normativo foi suspenso no STF, bem como as ações de reintegração de posse. Mesmo assim, em alguns casos, vêm ocorrendo tentativas de expulsão de comunidades de suas áreas. São violações do direito constitucional que ocorrem mesmo após decisão do ministro Edson Fachin, em 6 de maio, de suspender os processos judiciais que podem causar prejuízo aos direitos dos povos indígenas durante a pandemia do novo coronavírus.
Rafael chamou a atenção da comunidade internacional para “agressiva política do atual governo de paralisar as demarcações e desregulamentar o acesso constitucional à terra, o que tem causado graves ameaças a existência de diversos povos e comunidades”. “Pedimos ao Supremo Tribunal Federal (STF), que haja justiça e garanta o direito constitucional originários a terra, em sua totalidade no caso do povo Xokleng, com repercussão geral, a ser julgado em breve”, concluir a fala.
Confira o discurso de Rafael Modesto na integra
Agradecemos o debate sobre Direitos à Terra, tema fundamental para os povos indígenas que vivem no Brasil, Destacamos a centralidade do direito à terra como marco para o exercício dos demais direitos.
Estamos de acordo com os princípios de que que a terra não é uma commodity e que seu usufruto deve respeitar os direitos coletivos, assim como o uso e costumes da ocupação indígena.
A partir de nossa experiência, a Constituição brasileira contempla o direito originários a terra e ao território indígena, de acordo com a Declaração das Nações Unidas sobre os Povos Indígenas.
Porém, a tese anti-indígena do Marco Temporal, defendida pelos setores do agronegócio, restringe o direito originários e a partir da data da promulgação da Constituição. Embora a questão permanece sendo debatida pelo STF, os tribunais inferiores seguem o aplicando, o que impede a democratização da terra para os povos indígenas.
A agressiva política do atual governo de paralisar as demarcações e desregulamentar o acesso constitucional a terra tem causado graves ameaças a existência de diversos povos e comunidades.
Pedimos ao Supremo Tribunal Federal (STF), que haja justiça e garanta o direito constitucional originários a terra, em sua totalidade no caso do povo Xokleng, com repercussão geral, a ser julgado em breve.
Muito obrigado!
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Saturnina Urupe Chue, indígena do povo Chiquitano, na 42ª Sessão da Comissão de Direitos Humanos da Nações Unidas, em 2019. Foto: Guilherme Cavalli /Cimi