Cresce nos EUA, na esteira do Vidas Negras Importam, a luta por outra segurança pública. A atual, percebe-se, não contém o crime — porque busca calar a revolta das maiorias e preservar o racismo estrutural. É hora de pensar seu fim
Por Keeanga-Yamahtta Taylor*, no The New Yorker| Tradução: Gabriel Rocha Gaspar, em Outras Palavras
As revoltas de maio e junho de 2020 forçaram os Estados Unidos a um ajuste de contas com a profunda marca impressa pelo racismo na sociedade. O linchamento público de George Floyd [ocorrido em 25 de maio] perfurou o véu da segregação, que acoberta a realidade de que milhões de afro-estadunidenses vivem sob o peso sempre crescente da morte. Dezenas de milhares de pessoas negras vitimadas pela rápida disseminação da covid-19; a execução, registrada em vídeo, de Ahmaud Arbery por dois homens brancos na Geórgia; os relatos do brutal assassinato de Breonna Taylor pela polícia de Louisville; e, depois, o terrível homicídio de Floyd em Minneapolis abriram os olhos do grande público para o Estado policial sob o qual vive o país.
Em junho, a persistência e a duração dos protestos já haviam produzido mudanças históricas na percepção das pessoas brancas. Uma pesquisa nacional registrou uma virada de opinião sem precedentes: 71% dos brancos declararam que o racismo e a discriminação são um “grande problema” nos Estados Unidos e 55%, que a virulência dos protestos era plenamente justificada. Em outra pesquisa, 65% expressaram apoio ao movimento Vidas Negras Importam. Esse cavalo de pau nas opiniões foi espelhado por uma onda de demonstrações públicas de reconciliação racial, conforme executivos de grandes corporações admitiam seu papel — ainda que não tenham assumido responsabilidade genuína — na sustentação de um regime de desigualdade racial.
A associação automobilística Nascar baniu a exibição de bandeiras confederadas em suas corridas. O “Juneteenh” [referência ao dia 19 de junho, comemoração negra estadunidense mais ou menos equivalente ao 20 de novembro, no Brasil], há tempos celebrado informalmente por alguns afro-estadunidenses, foi subitamente institucionalizado, tornando-se feriado oficial. Até o ex-presidente republicano George W. Bush condenou o “racismo sistêmico”. Não se pode dizer que esse reconhecimento imediato do racismo simbólico seja exatamente surpreendente; na verdade, é bem corriqueiro. Nenhum outro país entra na assombrosa neutralização pela via das falsas desculpas com tanta frequência quanto os Estados Unidos. No caso dos afro-estadunidenses, esse expediente vem sempre acompanhado de estrondosas propostas legislativas de promoção dos direitos civis que, via de regra, são posteriormente “comprometidas, deferidas e desfeitas”, como escreveu o historiador Leon Litwack.
É muita cara de pau que corporações multibilionárias bradem “vidas negras importam” e, ao mesmo tempo, reneguem o pagamento de adicionais de risco e insalubridade, folga remunerada ou mesmo um salário minimamente decente aos trabalhadores negros. Apesar da hipocrisia, essa busca das elites pela absolvição do pecado do “racismo sistêmico” serve para reafirmar que racismo é mais do que queimar cruzes e usar a palavra “nigger” [adjetivo racista usado para se referir depreciativamente a pessoas negras nos Estados Unidos]: ele também se expressa no setor imobiliário, nas instituições de ensino superior, no mercado de trabalho e, obviamente, nos sistemas policial, judiciário e penal. Neste momento, em que tanto a pandemia de coronavírus quanto a revolta antirracista desnudam as falhas estruturais da sociedade estadunidense, surge uma renovada discussão sobre soluções estruturais. É por isso que a demanda pela suspensão do financiamento da polícia (defund the police) — que poucos meses atrás era completamente marginal, encampada por uns poucos corajosos — tornou-se um slogan central do ressurgimento do movimento Vidas Negras Importam.
Os ecos da luta pela liberdade nos anos 1960 são facilmente audíveis. Assim como hoje, revolucionários negros daquela época, incluindo Martin Luther King, enfrentaram as alegações racistas de que a pobreza e a marginalização social eram produtos de uma disfunção doméstica, supostamente característica das famílias negras. Ao fazer essa contestação, eles pavimentaram o caminho para uma investigação mais profunda da condição negra nos Estados Unidos. Radicais daquela época, como os de hoje, conectaram a pobreza negra à discriminação racial, uma metástase no corpo da sociedade, espalhada do ensino público ao mercado de trabalho, passando pelo acesso à moradia digna. Eles também demonstraram os interesses financeiros por trás da manutenção da desigualdade em relação aos negros. Negros revolucionários descreveram a penúria financeira de gente preta comum como evidência de que as comunidades segregadas eram “colônias” dentro dos Estados Unidos. O “colonialismo interno”, como alguns chamaram as condições opressivas particulares enfrentadas pelo povo negro, podia ser encontrado nos preços abusivos cobrados por proprietários brancos pelo aluguel de apartamentos infestados de ratos ou nas taxas de juros exorbitantes praticadas sobre os financiamentos imobiliários de pessoas negras. Tudo isso seria consequência do fato de os afro-estadunidenses formarem um mercado capturado, isolado por uma implacável segregação residencial.
Em resposta a esse roubo organizado, os radicais negros Stokely Carmichael e Charles V. Hamilton cunharam o termo “racismo institucional” em seu livro seminal, Black Power, publicado em 1967. Carmichael e Hamilton distinguiam os atos “individuais” de racismo de sua variação fria, “institucional”, na qual as atitudes dos agressores eram menos importantes do que as consequências na vida de pessoas negras comuns. Eles caracterizam o racismo institucional como “muito menos aberto, bem mais sutil, menos identificável em termos dos indivíduos específicos que o cometem. Mas de maneira alguma menos destrutivo para a vida humana”. Carmichael e Hamilton descrevem como o racismo institucional “mantém as pessoas trancadas em barracos precários em favelas, sujeitas às práticas predatórias de proprietários e comerciantes exploradores, agiotas e agentes imobiliários racistas. A sociedade finge que não vê ou é simplesmente incapaz de fazer qualquer coisa significativa a respeito”.
O reconhecimento do racismo institucional como fator determinante da desigualdade enfrentada pelos negros — substituto do discurso moralista que atribuía a miséria a uma perniciosa “cultura da pobreza” — apontou a necessidade de soluções institucionais. Esse foi o pano de fundo da vasta expansão do investimento federal sob o governo Lyndon Johnson. Sob ordem direta do presidente, o Congresso sancionou, de 1963 a 1968, quase duzentas peças legislativas, que compuseram os programas Guerra Contra a Pobreza e Grande Sociedade. Do Departamento de Habitação e Desenvolvimento Urbano (que abrigou uma lei de justiça fundiária chamada Fair Housing Act) ao programa Head Start [Impulsionamento, em tradução livre: programa lançado em 1965 para assistir a primeira infância, com foco em educação e saúde], do vale-refeição ao Medicare [sistema público de saúde], esses projetos criaram um patamar de vida mínimo, abaixo do qual a população não podia cair. O investimento em iniciativas de combate à pobreza cresceu em dezenas de bilhões de dólares nos anos 1960, produzindo uma redução drástica da precariedade em todo o país. No início dos 1970, a taxa de pobreza havia caído a 11%, frente aos 22% registrados em 1959, primeiro ano de medição nacional.
Mas a expansão do investimento estatal da época não foi limitada à erradicação da pobreza. Na metade dos anos 1960, as taxas de criminalidade começaram a subir por diversos motivos, incluindo a forma como o crime era mensurado e reportado. Insurgências negras contra o racismo e a brutalidade policial contribuíram para o aumento das estatísticas, assim como a imigração constante de populações negras para regiões que não ofereciam oportunidades de trabalho significativas. A criminalidade ascendente levou ao aumento do policiamento e, consequentemente, das probabilidades de abuso e violência por parte dos agentes da lei. Em 1964, enquanto os democratas ainda celebravam a aprovação da Lei dos Direitos Civis e a extinção legal das Leis de Segregação Racial [conhecidas como leis Jim Crow] nos estados do Sul do país, as frustrações nos epicentros da vida negra no Norte começaram a transbordar. No verão daquele ano, o bairro do Harlem [em Nova York] e a cidade de Filadélfia explodiram em revoltas contra desemprego, baixos salários, moradia inadequada e a sempre presente violência policial. Centenas de pessoas presas e milhões de dólares em danos materiais anunciaram uma nova fase do movimento pelos direitos dos negros, tanto no Sul quanto em outras regiões do país. Conforme as rebeliões contra as condições urbanas proliferavam, o presidente Johnson se apoiou nas forças de ordem para retomar o controle sobre as cidades em polvorosa. Tornou-se consenso entre democratas e republicanos que a solução era uma polícia mais numerosa e melhor treinada.
Em 8 de março de 1965, dia seguinte à histórica marcha do “Domingo Sangrento” em Selma, Alabama, conduzida pelo saudoso líder negro John Lewis, Johnson apresentou uma nova legislação, que buscava direcionar boa parte do Tesouro Nacional para o incremento das forças policiais em todo o território. Apesar de o país ter acabado de assistir em cadeia nacional de TV às tropas do estado do Alabama espancarem brutalmente ativistas por direitos civis na ponte Edmund Pettus, Johnson restringiu seus comentários à violência urbana: “Nenhum direito é mais elementar em nossa sociedade do que o direito à segurança pessoal. E nenhum direito necessita mais urgentemente de proteção”.
Pelo final dos anos 1960, a caracterização das revoltas urbanas como uma “desordem negra” a ser enfrentada com lei e ordem era consenso entre o governo democrata de Johnson e o republicano de Richard Nixon, que assumiria a presidência em 1969. Como apontou a historiadora Elizabeth Hinton em seu livro de 2016, From the War on Poverty to the War on Crime [Da guerra contra a pobreza à guerra contra o crime], tanto na esfera local quanto nacional, políticos liberais passaram a denunciar as causas estruturais da criminalidade, ao mesmo tempo que pregavam o aumento do poder policial para reprimir os protestos que haviam explodido justamente em resposta à falta de oportunidades significativas nas cidades. Até a Comissão Kerner — autora de um relatório que se tornaria o ápice do casamento entre liberalismo e presença forte do Estado ao defender a vasta expansão dos programas governamentais como forma de remediar a desigualdade racial que atiçava a insurgência — clamou pelo aumento exponencial das forças policiais nas regiões urbanas, alertou que a juventude negra seria a fonte de uma onda de criminalidade latente e até propôs métodos de controle de massas. Declarações em prol de “lei e ordem”, que haviam sido a resposta belicosa do Sul ao “Freedom Now” [Liberdade Já, um dos slogans do movimento pelos direitos civis, que Angela Davis defende ser a pauta central da revolta sulista], se converteram na réplica do establishment também ao Black Power.
Mas ainda mais emblemática foi a conexão que Nixon fez entre a revolta — que, de acordo com ele, continha o gérmen da desintegração social — e os programas sociais da era Johnson. Em 1968, durante seu discurso de aceitação da candidatura republicana, o presidenciável conectou as diferentes pontas. “Nesta noite, precisamos fazer um debate honesto sobre o problema da ordem nos Estados Unidos”, declarou. “Deixemos que aqueles que têm a responsabilidade de aplicar nossas leis e que nossos juízes, cuja responsabilidade é interpretá-las, se dediquem aos grandes princípios dos direitos civis. Mas deixemos também que eles reconheçam que o primeiro direito civil de todo estadunidense é estar livre da violência interna. E esse direito deve ser garantido em nosso país.” E seguiu: “Fomos iludidos por programas para os desempregados, programas para as cidades, programas para os pobres. E o que colhemos desses programas foi uma safra podre de frustração, violência e falência por todo o país”.
As identificações que Johnson e, depois, Nixon fizeram da insurgência negra como uma explosão de desordem e anarquia deslocaram o foco nacional do racismo para a criminalidade. Mas, como apontou a cientista política Naomi Murakawa, “os Estados Unidos não enfrentavam um problema de criminalidade que foi racializado, mas um problema racial que foi criminalizado”.
O crime foi a ferramenta política utilizada para desviar atenção das causas da revolta. Isso, porém, não anula o fato de que ele impregnava a realidade cotidiana da classe trabalhadora negra. No início dos anos 1970, a longa expansão econômica experimentada no pós-guerra dava sinais de esgotamento, causando mais sofrimento e desespero. Entre 1972 e 1975, o desemprego entre a população negra cresceu de 10% para quase 15%. Neste mesmo curto período, as estatísticas federais demonstram que ocorreram quase quatro milhões de crimes violentos a mais, o que levou a um desejo palpável das comunidades negras por ações enérgicas do poder público — incluindo intensificação do policiamento, como explicou o professor de direito James Forman Jr.
Fundos canalizados do agora moribundo programa Grande Sociedade poderiam ter mitigado as piores faces da recessão que durou de 1973 a 1975, incluindo as taxas crescentes de criminalidade. Diversas pesquisas realizadas logo após as revoltas indicaram que a maioria acreditava que melhores oportunidades, trabalho e habitação seriam o remédio para a desigualdade — e viam a criminalidade como uma das maiores consequências de sua inexistência. Mas, conforme a bonança dos anos 1960 convertia-se em recessão nos 1970, a política do ressentimento racial ganhou novo fôlego e balizou as propostas de solução para a crise social em curso.
A virada para uma política punitivista não foi um dispositivo ativado da noite para o dia, de um governo para o outro; ela marcou uma transição na totalidade da política estadunidense, o que ficou evidente na relutância crescente dos democratas em defender o bem-estar social e se debruçar sobre as “causas profundas” do aumento da criminalidade. Mas talvez o sintoma mais claro de seu poder de penetração tenha sido a profunda mudança nos padrões de gastos em todo o sistema de justiça criminal.
Entre 1977 e 2017, o investimento público em policiamento, tanto no plano federal quanto local, aumentou de 42 bilhões de dólares para US$ 115 bilhões, descontada a inflação. Esse crescimento exponencial continuou mesmo depois que a criminalidade começou a arrefecer, no início dos anos 1990. De acordo com o Centro para a Democracia Popular, hoje as cidades de Chicago, Oakland, Houston, Minneapolis, Orlando e Detroit gastam pelo menos 30% do orçamento municipal (gerais ou discricionários) em seus respectivos departamentos de polícia. E esses dados obviamente não incluem as centenas de milhões de dólares gastos pelas municipalidades de todo o país em ações judiciais decorrentes da violência policial. Segundo reportagem do canal de televisão ABC News, apenas no ano de 2019 processos contra policiais custaram mais de 300 milhões aos cofres públicos. Infelizmente, para muitos líderes municipais, este se tornou o custo de manutenção do poder.
O Partido Democrata passou quarenta anos governando com medo de ser considerado “frouxo” com o crime. Para mostrar pulso firme, passou a encampar, por todo o país, políticas de “tolerância zero”, que priorizaram os orçamentos policiais em detrimento de outros programas, essenciais para a busca de justiça racial. Não é coincidência que Filadélfia, que ostenta os maiores índices de pobreza entre todas as grandes cidades dos Estados Unidos, não tenha nenhum hospital público desde 1977, mas gaste centenas de milhões de dólares por ano em suas forças policiais — ainda que os índices de criminalidade estejam em declínio.
Nos dias seguintes à tomada das ruas de Filadélfia pelos protestos de 2020, o prefeito democrata Jim Kenney planejava um aporte extra de 19 milhões de dólares ao departamento de polícia, embora ele mesmo tivesse prometido ceifar 370 milhões do orçamento municipal. Entre as reduções, constavam a retirada de 21% das iniciativas contra a violência e de 18% do Comitê Consultivo da Polícia, que tem a função de corregedoria. Ele também planejava realocar milhões de dólares de programas de financiamento para casas populares, a despeito do fato de a covid-19 ter aumentado gravemente a precariedade habitacional entre os proprietários e locatários negros da classe trabalhadora.
Mas a revolta em Filadélfia impôs um freio aos planos da prefeitura. Em 6 de junho, dezenas de milhares de pessoas lotaram o Benjamin Franklin Parkway, em Center City, sob a bandeira do Vidas Negras Importam, em manifestação espontânea contra o novo orçamento. Esse, que foi o maior protesto que a cidade viu em anos, obrigou o prefeito a abdicar do incremento policial e revogar parte dos cortes feitos aos programas para a juventude. Apesar das mudanças, a polícia manteve não só todos os postos de trabalho (enquanto centenas de funcionários públicos perderam o emprego por conta da pandemia), como também seus 727 milhões de dólares de financiamento — a maior fatia do orçamento municipal. O prefeito Kenney declarou solidariedade e simpatia aos manifestantes. Mas é nos orçamentos públicos que se vê se as vidas negras realmente importam para os governantes.
O levante ocorrido após a morte de George Floyd criou uma nova urgência na luta pela proteção genuína nas comunidades da classe trabalhadora negra, destacando a necessidade de serviços públicos mais bem financiados, empregos bons e adequados, habitações belas e seguras, livres da presença ameaçadora da polícia. Mas o trabalho de criação desse outro mundo é dificultado pela realidade de crime e violência, que assola o mundo real. Na esteira da revolta, veio um aumento dramático nos índices de violência por armas de fogo nas comunidades negras de todo o país. Em Filadélfia, os tiroteios cresceram em 2020 quase 30% em relação a 2019; em apenas 24 horas do final de semana do 4 de Julho [feriado de Independência], 23 pessoas foram mortas a tiros na cidade. Nos mesmos dois dias, em Atlanta, onze tiroteios deixaram cinco vítimas fatais. Nova York viu 64 trocas de tiro ao longo de feirado, que causaram dez mortes. Em Chicago, as balas começaram a zunir quase que simultaneamente à revolta. Em 31 de maio, apenas seis dias depois do assassinato de George Floyd, dezoito pessoas foram mortas na cidade, quase todas negras. Essa é a primeira vez, nos dezesseis anos de medição, que tanta gente morre baleada num período de 24 horas.
Negros de Chicago e de outras partes do país, que sofrem o grosso da violência armada, têm marchado, se organizado e denunciado a criminalidade que ameaça engolir suas vizinhanças. Via de regra, seus esforços são ignorados, porque não entram no discurso convencional de “lei e ordem”. Pelo contrário: o presidente Donald Trump e outros fanáticos de direita transformaram a morte negra em Chicago em combustível para a difamação racial. Para eles, o sofrimento que a violência armada impõe às comunidades negras é secundário, para não dizer irrelevante. Trump e sua facção do Partido Republicano não se importam com a vida ou a morte negras nos Estados Unidos — isso é óbvio há muitos anos. Uma vez, Trump descreveu Baltimore [cidade do estado de Maryland, onde negros representam 63% da população] como uma “balbúrdia nojenta, infestada de ratos”, onde “nenhum ser humano gostaria de viver”. Pelo teor da declaração, é evidente que qualquer cidade de maioria negra poderia substituir o nome de Baltimore na frase. Há mais de cinquenta anos, os republicanos são os principais fiadores das políticas responsáveis por ampliar os problemas que se tornaram sinônimos da vida negra. E a maioria dos afro-estadunidenses compreende isso — razão pela qual, quando o Partido Republicano se dirige aos afro-estadunidenses, sempre com o fedor da supremacia branca no hálito, o discurso cai em ouvidos moucos.
Além da exploração da morte negra para ganhos políticos rasteiros, a retórica do “crime de negros contra negros” turva a importante distinção entre a violência interpessoal e aquela sancionada pelo Estado. Lançar luz sobre essa diferença não significa minimizar o desespero e o desamparo causados pelos assassinatos disparatados, que tanto medo impõem às comunidades negras de Chicago e outras cidades. Pelo contrário, chamar atenção para a presença e o comportamento da polícia nessas comunidades ajuda a compreender como elas são inundadas por violência e intimidação por todos os lados.
Há décadas, a violência policial é a palavra de ordem mais importante para as demandas políticas das comunidades negras, por ser a evidência mais visceral do status de cidadão de segunda-classe imposto aos trabalhadores afro-estadunidenses pobres. Se a polícia tem o direito de te parar, te revistar, te agredir, potencialmente te prender e ocasionalmente te assassinar, você não é um cidadão em condição de igualdade com os demais. A consequência dos encontros de pessoas negras com a polícia e com o sistema penal-judicial geralmente é uma virada definitiva em sua vida, quando não sua destruição completa. Claro que perder um ente querido para a violência armada também é uma experiência catastrófica, mas carece de um elemento peculiar à vitimização pela violência do Estado: a revogação sumária dos direitos humanos e sociais fundamentais.
Não é exagero. É a experiência cotidiana dos negros em muitas cidades do país. O Departamento de Polícia tem destacado papel na história dos afro-estadunidenses de Chicago, desde sua participação no assassinato, em 1969, do pantera negra Fred Hampton [líder da sessão local do partido, baleado aos 21 anos enquanto dormia, depois de ser drogado pelo informante do FBI William O’Neal] até o escândalo de tortura por agentes policiais, que durou dos anos 1970 até os 1990, cuja responsabilidade foi assumida pelos agentes em 2016, com o pagamento de indenizações aos sobreviventes. O legado do racismo e da brutalidade segue vivo. Pense no relatório da Força-Tarefa para a Responsabilização da Polícia de Chicago, encomendado em 2016 pelo então prefeito Rahm Emanuel, após o assassinato de um garoto de dezessete anos chamado Laquan McDonald. De acordo com o estudo, a morte de McDonald “expôs a duradoura fissura entre as comunidades negra e latina, de um lado, e a polícia, de outro; não apenas as mais evidentes, encarnadas nos tiroteios policiais, mas também as transgressões cotidianas, difusas, que impedem pessoas de todas as idades, raças, etnias e gêneros da cidade de Chicago de usufruir do direito de ir e vir em seus próprios bairros. Abordagens sem justificativa, abusos físicos e verbais, em alguns casos prisões e detenções sem direito a assistência jurídica — foi isso que ouvimos seguidas vezes”. Os investigadores chegaram a uma conclusão chocante: “Dados do próprio Departamento de Polícia de Chicago validam a crença generalizada de que os policiais não respeitam a inviolabilidade da vida de pessoas de cor”.
É fácil para a direita — e para muitos dos líderes democratas de Chicago — reduzir as questões do crime e da violência às ações de “laranjas podres”, incluindo eventuais policiais. Muito mais complicado é reconhecer e enfrentar o fato de que, por mais de cem anos, as comunidades negras foram estranguladas pela segregação racial, pela discriminação territorial e por práticas imobiliárias abusivas. Sucessivos governos só fizeram piorar uma situação já ruim. Do fechamento de escolas públicas à demolição de moradias populares, passando pelo abandono das clínicas de saúde mental, os líderes da cidade abandonaram a classe trabalhadora negra. Cerca de 32% da população negra de Chicago vivem abaixo da linha da pobreza — cifra que pouco evoluiu em mais de cinquenta anos, e que está seis pontos acima da média nacional de pobreza do povo negro. Chicago é uma cidade rica, cuja prosperidade nunca chegam a quem mais precisa.
Hoje, o investimento per capita na polícia de Chicago é maior do que há cinquenta anos, mas isso não deixou a cidade mais segura para os negros sob nenhum aspecto. Para piorar, a taxa de violência, tanto interpessoal quanto estatal, deu à luz uma crise de saúde mental. Um pequeno estudo de 2017 mostrou que 29% das mulheres negras de um bairro da zona sul de Chicago sofriam de transtorno de estresse pós-traumático, enquanto outros 7% demonstravam vários dos sintomas da mesma doença. Uma pesquisa mais recente na cidade mostrou que a violência policial e comunitária provoca simultaneamente na comunidade o aumento do isolamento social, solidão e hipervigilância. A soma dessas feridas abertas contribui para o estresse e as condições insalubres que tornaram os afro-estadunidenses mais suscetíveis às piores consequências da covid-19. Paralelamente, os suicídios de negros em Chicago em 2020 já superaram o número total de casos de 2019. Ao invés de polícia, essas comunidades precisam de tratamento, cuidado e recursos para se recompor de séculos de racismo e descaso institucional.
Governos após governos negligenciaram os esforços para fazer de Chicago uma cidade habitável para a gente negra comum; pelo contrário, cada nova administração imprime sua cara à velha fórmula de investir na polícia a verba de que os bairros tanto necessitam. O fracasso em enfrentar a desesperadora carência das comunidades da classe trabalhadora negra causou um êxodo populacional. Entre 2000 e 2016, mais de 200 mil negros deixaram a cidade. Frequentemente atribui-se essa fuga de trabalhadores aos crimes de “negros contra negros”. Mas muito mais sintomático é o fato de que 60% dos negros que migraram entre 2012 e 2016 não tinham emprego.
A pandemia do coronavírus revelou e a revolta após a morte de Floyd confirmou que grandes intervenções estruturais são o mínimo necessário para fazer com que vidas negras importem nos Estados Unidos. O clamor pela retirada do financiamento da polícia captura tanto a profundidade da crise quanto a magnitude da resposta necessária. É uma demanda que chama a atenção para a continuidade do investimento na polícia mesmo quando outros serviços públicos estavam sendo completamente depauperados. Cidades de todo o país têm testemunhado essa situação, conforme privatizações e outras soluções pró-mercado são implementadas para preencher o vácuo. A moradia pública foi substituída pelo mercado imobiliário; escolas e hospitais públicos foram fechados e transformados em condomínios; o horário de funcionamento das bibliotecas, reduzido ao mínimo. Programas de primeiro-emprego são uma memória distante. Enquanto isso, os departamentos de polícia passam ao largo das demissões e da austeridade que todos os outros servidores públicos enfrentam. E pior: os cortes em serviços públicos, que teriam potencial de reduzir a pobreza e promover a mobilidade social, tornaram-se uma desculpa perpétua para o incremento da repressão.
Bastou a deputada democrata Alexandria Ocasio-Cortez insinuar a correlação entre um surto de criminalidade em Nova York e o estresse econômico provocado pela pandemia para provocar uma onda de descrédito. “Talvez isso tenha a ver com o fato de que as pessoas não conseguem pagar aluguel ou estão com medo de pagar o aluguel. Essas pessoas precisam sair para dar um jeito de alimentar seus filhos e, como não têm dinheiro, elas se veem na situação limite, de ter que escolher entre roubar o pão ou passar fome. A ideia de que a criminalidade violenta não tem qualquer relação com a situação econômica que as pessoas atravessam é um erro”, disse. “Essa é a verdade, o desespero. Mesmo quando não estamos falando apenas de pequenos crimes. Há uma escalada rumo ao crime violento, que está muito conectada com a situação econômica de uma determinada comunidade.”
Obviamente, a declaração de Ocasio-Cortez causou frenesi na direita. A Casa Branca aproveitou a oportunidade para denunciar as demandas pela redução do financiamento da polícia, e chamou Ocasio-Cortez de “disparatada”. O deputado Ted Yoho, da Flórida, chegou a confrontá-la na escadaria do Capitólio, dizendo que ela “só podia estar completamente louca” por relacionar pobreza e crime. Ao virar as costas, Yoho chamou a colega de “puta do caralho”, canalizando a misoginia que tão frequentemente acompanha o ódio aos pobres. Mas não é só a direita. O governador democrata de Nova York, Andrew Cuomo, também desdenhou de Ocasio-Cortez, dizendo que é “factualmente impossível” atribuir a onda de criminalidade na cidade ao medo de despejos. Cuomo parece pensar que, pelo fato de haver uma moratória dos despejos em Nova York, os pobres deixaram de se preocupar com como pagar aluguel. Cresce nos EUA, na esteira do Vidas Negras Importam, a exigência de outro sistema de segurança pública. Também lá, disparam a violência e os orçamentos policiais — mas a criminalidade não regride.
Para piorar ainda mais a situação, muitos atos decorrentes da pobreza foram transformados em ofensas criminais, como dormir em carros em locais públicos, esmolar dinheiro ou comida, urinar em público, pequenos furtos em estabelecimentos comerciais, entre muitas outras coisas que gente pobre faz quando não pode contar com a privacidade ou a discrição do próprio lar. A criminalização da pobreza aprofunda sua inexorabilidade ao colocar os pobres em contato direto com a polícia.
Esses desdobramentos têm impacto desproporcional sobre os afro-estadunidenses, muito mais suscetíveis à pobreza do que os brancos. Registros de prisões e atestados de antecedentes criminais confinam os afro-estadunidenses, em particular, à espiral asfixiante do mercado informal ou ilegal, o que realça um senso de insignificância que perpassa a geração do Vidas Negras Importam. Em sua autobiografia Men we reaped [Homens que colhemos], Jesmyn Ward descreve os frívolos esforços de seu irmão caçula em construir a vida na Costa do Golfo do Mississipi como um “ciclo de futilidade”. “Ele nunca teve um emprego legítimo, talvez dissuadido pelas experiências dos rapazes do bairro, que via de regra trabalhavam até serem demitidos ou largavam o trabalho porque o salário chegava a conta-gotas e desaparecia rápido demais. Eles vendiam drogas nos períodos entre um bico e outro, até que conseguissem um trabalho de balconista em alguma loja de conveniência, zelador ou jardineiro”. Seu irmão morreu atropelado por um motorista embriagado, aos dezenove anos. “Ele nunca viu nenhum sonho americano, nenhum final feliz, nenhuma esperança”, conclui a autora.
O livro de Ward segue a vida e a morte de seu irmão, junto com as de outros quatro rapazes negros, todos presos nos mesmos ciclos de futilidade que levam invariavelmente a mortes prematuras. Quando essa desesperança crônica contribui para as mortes precipitadas de pessoas brancas, a empatia é invariavelmente maior. Ao tentar compreender o fenômeno que conduziu à recente queda na expectativa de vida de mulheres e homens brancos, cientistas sociais cunharam o termo “mortes por desespero”. Essas mortes, mais imediatamente causadas pela dependência de opioides, alcoolismo e suicídio, passaram a ser entendidas à luz de uma instabilidade pessoal e uma insegurança crescentes, em meio a uma crise social. Em comparação com uma era anterior marcada pelo uso e vício em cocaína, a atual crise dos opioides tende a ser vista como um problema de saúde pública, e a discussão acerca do vício frequentemente enfatiza mais o tratamento do que a prisão.
Alguns gestores públicos deturpam a necessidade de redirecionar o financiamento da polícia para outras áreas, alegando que a pauperização dos serviços públicos tem ocupado a polícia com crimes decorrentes de abuso de drogas, indigência, problemas mentais. A deputada Karen Bass, democrata de Los Angeles e presidente do Congressional Black Caucus [bancada negra do Congresso], que descreveu a demanda por corte de financiamento da polícia como “um dos piores slogans de todos os tempos”, fez recentemente a seguinte pergunta retórica: “Por que sobra para os policiais a tarefa de limpar os problemas da sociedade?”. E seguiu: “Por que uma cidade não lida com seus problemas sociais, de modo que não seja necessário gastar tanto com o policiamento?”. Mas é mentira que os policiais de repente se tornaram cuidadores, profissionais de saúde mental, assistentes sociais. Fazer essa associação significa degradar essas profissões. Melhorar a vida das pessoas é uma tarefa que exige anos de estudo e treinamento. A deturpação de Bass também dissemina confusão a respeito do que a polícia de fato faz nesses casos — que é prender gente que está em crise ou simplesmente é pobre. Essa não é uma intervenção voltada para a redução de danos.
Enquanto isso, o desespero que paira sobre a vida de pessoas negras comuns é ignorado ou patologizado. O suicídio é a segunda principal causa de mortes entre crianças e adolescentes negros de dez a dezenove anos — e a taxa de suicídios entre negros cresce mais rápido do que em qualquer outro grupo étnico ou racial nos Estados Unidos. De 1991 a 2017, tentativas de suicídio cresceram 71% entre adolescentes negros de ambos os sexos. Negros e brancos apresentam taxas similares de abuso de álcool e drogas, mas a empatia é praticamente exclusiva aos brancos. Mesmo na doença e na tristeza, negros são vistos e tratados de forma diferente. Ao invés de investigar as causas estruturantes de um pico de tiroteios que afeta jovens negros de forma desproporcional, nos voltamos a explanações simplistas e, no fundo, racistas, que giram em torno do indivíduo negro problemático. Ao fazer isso, a sociedade torna muitas garotas e rapazes negros invisíveis e, em última instância, descartáveis. Não existe empatia, só policiamento e punição.
O amálgama político entre raça e crime tem papel fundamental na construção da ideologia racista, tanto nos Estados Unidos quanto em outros países. A simples presença ostensiva da polícia em espaços presumivelmente negros (da típica patrulha de bairro ao papel ameaçador de policiais nas escolas públicas, passando pelas bases policiais em conjuntos habitacionais populares) marca esses lugares com o signo da desordem e, consequentemente, necessitados da mão pesada da lei. Essa hipervigilância da comunidade negra produz um número desproporcional de prisões, que por sua vez legitima demandas por um policiamento ainda mais punitivo. Essas são as práticas cotidianas de policiamento, que associam raça e crime e acabam por condenar coletivamente os afro-estadunidenses. É isso que faz o policiamento nos Estados Unidos algo institucionalmente racista.
Em 1960, James Baldwin escreveu que “o único jeito de policiar um gueto é oprimi-lo”. Para ele, “a própria presença [da polícia] é um insulto. E continuaria sendo mesmo que a polícia passasse o dia inteiro distribuindo doces para crianças. Eles representam a força do mundo branco; e a verdadeira intenção desse mundo é manter o homem negro encurralado lá, no seu lugar, como forma de garantir a tranquilidade e o lucro criminosos do mundo branco. O distintivo, a arma no coldre e o cassetete em riste são os alertas do que aconteceria se o desejo de rebelião latente virasse realidade”.
A prática da intimidação está tão encravada na polícia dos Estados Unidos que independe da cor do agente. Talvez a mais significativa mudança no policiamento estadunidense desde as reformas nos anos 1960 tenha sido o recrutamento e treinamento de milhares de policiais negros, por todo o país. Mas o caráter multirracial do policiamento pós-direitos civis não significou menos racismo, brutalidade ou prisões. Pelo contrário, coincidiu com a explosão maciça do encarceramento e o surgimento do Vidas Negras Importam.
Treinamentos sobre “viés implícito” [eufemismo para práticas racistas] e outros tipos de “competências culturais” são fracassos gritantes no enfrentamento ao racismo policial galopante e ao objetivo de controle social. Nenhum treinamento do mundo é capaz de mudar a distribuição territorial desigual do policiamento, ou as predisposições culturais acerca de quem comete crimes. Passagens pregressas pelo sistema de justiça criminal marcam as pessoas, deixando-as mais suscetíveis a novos encontros com a polícia. No livro A nova escravidão, Michelle Alexander afirma que, em Chicago, “chocantes 80% da força de trabalho masculina negra” têm antecedentes criminais. É como se só negros cometessem crimes. Mas essa impressão deve-se ao simples fato de que a polícia é enviada a certos bairros para vigiar gente que se encaixa no estereótipo pré-concebido do bandido. Essas prisões e eventuais processos constituem o que Alexander chama de “nova [lei] Jim Crow”: uma morte social generalizada, conforme a exclusão indiscriminada de egressos do sistema penal é naturalizada.
Exigir reduções no financiamento da polícia ou mesmo sua abolição completa parecem propostas razoáveis, quando consideramos que a instituição tem se revelado imune a qualquer reforma moderada. Mas, no calor da rebelião, liberais agoniados e conservadores arrogantes concordaram que tirar dinheiro da polícia é um passo maior que a perna para a maioria dos estadunidenses. O American Enterprise Institute destacou pesquisas declarando impopularidade da proposta, em especial uma que mostra que 61% dos eleitores negros se opunham a cortar o financiamento da polícia. Contudo, a questão que atingiu esse nível de reprovação não falava de corte de investimento, mas sim em eliminar ou substituir os departamentos de polícia. A pergunta que efetivamente falava de “cortar parte do financiamento dos departamentos de polícia na sua comunidade e orientá-lo para serviços sociais” recebeu 62% de respostas favoráveis por parte da população negra. Entre os brancos, a taxa de aprovação de proposta atingiu 37% de aprovação.
Esse resultado reflete as visões contraditórias dos afro-estadunidenses, bem como o quão inovadora é essa bandeira do movimento Vidas Negras Importam. As lideranças políticas do país passaram a maior parte dos últimos cinquenta anos tentando convencer o público de que a maior ameaça de suas vidas era ser vítima de um crime violento. Em questão de semanas, essa ideia evaporou.
A importância de movimentos sociais é que eles forçam as pessoas a se envolver com determinada questão de forma mais profunda. No caso da brutalidade policial, a onipresença e a duração dos protestos recentes forçaram uma fatia muito maior da sociedade a encarar questões que mobilizam o povo preto há mais de cem anos. Houve uma mudança de opinião em relação ao movimento Vidas Negras Importam. Seis anos depois de sua criação, ele finalmente recebe amplo apoio do público. Agora, quando milhões de brancos entendem a gravidade da violência policial contra a população negra, a possibilidade de que imaginem o fim da polícia como um horizonte possível não parece tão utópica — ainda mais com as evidências visuais do racismo e da agressividade da polícia ao redor do país vindo a tona dia após dia.
É preciso começar do zero. Não se deve esperar que, do dia para a noite, essa ideia se torne popular. Mas também não é o caso de concluirmos que seria impraticável retirar o financiamento e eventualmente extinguir essa fatia armada da população, cujo objetivo é manter uma ordem social profundamente racista e desigual, responsável por violentamente privar gente simples, sobretudo preta, das necessidades básicas da vida.
Cortar o financiamento das forças repressivas é o primeiro passo na longa estrada rumo à extinção da polícia. Os repetidos fracassos em produzir reformas substantivas e significativas nos trouxeram ao ponto em que conceitos como “cortar o financiamento” e “abolir” penetraram as conversas do mainstream. Aventá-los não significa que ativistas sejam insensíveis à violência e ao crime que existem nas comunidades da classe trabalhadora. Pelo contrário: defender o corte no financiamento da polícia é reconhecer a correlação entre o pesado investimento nas forças de ordem e a consequente míngua financeira dos programas e instituições que poderiam de fato impactar a qualidade de vida dos mais pobres e reduzir o prejuízo acarretado pela falta deles. Retirar fundos da polícia não criará, por si só, os recursos necessários para reconstruir as comunidades. Mas reequilibraria, para o lado do tratamento e do cuidado, uma balança que há décadas pende para a lei e a ordem. A abolição da polícia pode até parecer ousada para alguns, mas a verdade é que o caldo racista da polícia já entornou. Não dá mais para voltar atrás, tentar ajustar a receita aqui ou ali. É preciso jogar a mistura toda no lixo, com o seu ingrediente mais perverso — a presunção de que negros são criminosos e culpados. O esforço de reimaginar uma sociedade justa entrou em conflito com o barbarismo racista da polícia estadunidense. É preciso começar outra vez.
–
Imagem: Policiais reprimem protesto da Favela do Moeinho (São Paulo), após assassinato de garoto pela PM, na comunidade (Sérgio Silva)
*Professora de estudos afro-estadunidenses na Universidade Princeton e autora do livro #VidasNegrasImportam e libertação negra (Elefante, 2020).
A autora do texto acaba de publicar, no Brasil, obra sobre o movimento social que sacudiu os EUA em junho, e continua repercutindo em todo o mundo
#Vidas Negras Importam e Libertação Negra
Editora Elefante | 462 páginas