Movimento indígena considera postura da Funai como tentativa de usurpar medidas de autogestão dos povos perante ineficiência das políticas contra a proliferação da pandemia nos territórios. Solicitações foram peitas após pressão do STF.
Lideranças indígenas do Sul e Extremos Sul da Bahia expõem a Fundação Nacional do Índio (Funai) por ameaçar comunidades indígenas e exigir registros das barreiras sanitárias realizadas pelos povos para evitar a entrada da Covid 19 nas aldeias. As medidas de proteção dos territórios foram criadas e orientadas pelo Movimento Nacional Indígena (MNI) como autogestão perante a ineficiência do órgão indigenista do Governo Federal em agir contra a entrada do vírus nos territórios. Hoje, diante solicitação do Supremo Tribunal Federal (STF) para que enviem informações sobre ações de combate da pandemia junto às comunidades indígenas, a Funai tenta mascarar a ausência de um plano de atuação.
“As barreiras sanitárias funcionam de março até hoje. O governo federal não fez nada para o nosso povo para evitar a entrada do vírus nas aldeias. A única coisa que aconteceu foi a Justiça Federal autorizar uma reintegração de posse no momento muito difícil pro povo Tupinambá”, lamenta a liderança Valdelice, do povo Tupinambá de Olivença, aldeia Itapuã.
As solicitações de materiais audiovisuais sobre as barreiras sanitárias chegaram por mensagens de WhatsApp às lideranças indígenas da Bahia, enviadas por um servidor da Funai. “Só enviaram essa exigência agora… O STF deu um prazo de 48 horas”, dizia a mensagem enviada às 14h49 no dia 27 de outubro pelo funcionário responsável pela Coordenação Técnica Local da Funai em Itamaraju (BA). O texto seguia com a ameaça de que se as lideranças não enviassem, o povo iria “sair do relatório da Funai e não teríamos benefícios”. Para Dinamam Tuxa, da coordenação executiva da Articulação dos Povos Indígenas no Brasil (Apib), as ameaças se caracterizam como “tentativa de usurpar as iniciativas autônomas do movimento indígena para justificar a ausência e omissão do Governo Federal em contexto de pandemia”.
“Desde o início da pandemia percebíamos que o Estado brasileiro não se mobilizava para combater o alastramento da covid 19 nas terras indígenas. A Apib orientou os povos a criarem barreiras sanitárias como primeira medida para enfrentar a pandemia. Foi uma iniciativa que partiu do movimento indígena, construídas de forma autônoma”, ressalta a liderança indígena. “O movimento indígena se mobilizou para assumir o papel do Estado diante a sua ineficiência. Sem ter apoiado os povos em nenhum momento, a Funai quer agora se apropriar dessa mobilização mediante a ação judicial que exige da União medidas de proteção, que fomente as barreiras sanitárias. Não foi iniciativa do Estado em nenhum momento”.
Dinamãm Tuxa recorda que a União atuou somente depois da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709 enviada ao STF e que pedia a adoção de medidas de proteção e promoção da saúde dos povos indígenas por meio da elaboração e da implementação de um Plano de Barreiras Sanitárias. “Essas ameaças que faz a Funai para pedir informações de um suposto trabalho que não fez é para tentar repassar informações ao Supremo Tribunal Federal e justificar a omissão do órgão em contexto de pandemia”. Segundo levantamento feito pela Apib, são mais de 42 mil casos confirmados de covid-19 entre os povos indígenas, com aproximadamente 900 indígenas mortos.
O pedido da Funai por informações sobre as barreiras sanitárias nas comunidades Pataxó e Pataxó Há há Hãe foi atendido pelas lideranças. Os indígenas afirmam que mantiveram as barreiras sanitárias com doações de pessoas, organizações e universidades parceiras. “A Funai está enganando, está ganhando dinheiro, comendo milhões e não tem chegado nada de suporte nas aldeias”, denuncia a liderança Rodrigo Mandi Pataxó, da Terra Indígena Comexatibá, na Bahia. Em abril, a Funai emitiu uma nota que criticava as ações de proteção e criação de barreiras sanitárias. “A Fundação Nacional do Índio (Funai) alerta que os indígenas não devem bloquear as estradas de acesso às aldeias durante a pandemia do novo coronavírus”, pontua o texto.
STF pressiona União
Após considerar o plano do Governo Federal “genérico e vago” e negar a homologação da segunda versão apresentado pela Funai sobre ações contra covid-19 entre indígenas, o ministro Luís Roberto Barroso, do STF, estabeleceu em novembro uma nova data para que o Governo apresentasse medidas efetivas. No dia primeiro de dezembro, Barroso determinou à União que, em até 48 horas, convocasse uma reunião extraordinária a fim de que sejam implementadas barreiras sanitárias para o enfrentamento e o monitoramento da Covid-19 entre os povos indígenas, principalmente de povos indígenas isolados e de recente contato. O plano de barreiras sanitárias é uma das cinco medidas que foram acolhidas pela Suprema Corte da Medida Cautelar apresentada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e por partidos políticos. Desde julho, Luís Roberto Barroso, ministro relator da ADPF 709, tem cobrado a implementação das barreiras sanitárias.
As mensagens enviadas por servidores da Funai que solicitam comprovação das barreiras foram recebidas por lideranças dos povos Pataxó e Tupinambá na mesma semana da exigência feita pelo STF à União. “O STF [Supremo Tribunal Federal] está exigindo fotos da barreira que vocês fizeram com a equipe atuando” afirma a mensagem recebida pelas lideranças. Segundo Rodrigo Mandi Pataxó, o texto instruía como deveriam serem feitos os registros fotográficos. “Façam as fotos todos com máscaras. Como no caso é só 1 indígena, que a foto mostre ele abrindo a cancela/porteira. Peço que envie ao menos uma foto desta forma (sic)”.
Para Antônio Eduardo Cerqueira de Oliveira, secretário executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), as exigências dos funcionários da Funai representam uma tentativa de justificar a ineficiência do Governo Federal diante as políticas de saúde indígena em tempos de pandemia. “Os povos indígenas se organizaram para fechar os territórios e fazer as barreiras sanitárias na urgência de barrar a entrada do coronavírus. Fizeram por decisão, organização e iniciativa própria, sem contar com o apoio da Fundação Nacional do Índio, da Polícia Federal ou outras organizações do poder público”, ressalta o indigenista. “A exigência da Funai de querer que os indígenas prestem informações sobre essas barreiras sanitárias é simplesmente querer tirar proveito do feito, do qual a Funai não contribuiu diretamente. A Funai se eximiu de sua responsabilidade”, destaca o secretário executivo do Cimi.
“O Cimi repudia a atitude da Funai. Acreditamos no apoio às comunidades indígenas, como temos feito desde o início da pandemia, para contribuir na organização dessas barreiras como medidas estabelecidas pelos próprios povos, na autogestão dos seus territórios. Portanto, é vergonhoso e vexatório esse procedimento e atitude do órgão indigenista do Governo Federal”, ressalta o secretário executivo do Cimi.
A formação das barreiras sanitárias
Parte do território do povo Pataxó está localizada no caminho do litoral baiano, local com casas de veraneio e intenso fluxo de turismo. Ainda em março, no início da pandemia, a movimentação de carro atravessando o território se intensificou. A decisão dos indígenas foi de fechar o território criando as barreiras sanitárias. São nove territórios que ficam entre os parques Nacional do Monte Pascal e do Descobrimento e a estrada que passa dentro da terra indígena funciona como um “atalho” de quase 40km para o litoral.
À medida que o vírus se espalhava e poucas ações de controle ocorriam pelos órgãos de Estado, os indígenas decidiram adotar providencias por se considerarem à mercê. As medidas se fizeram mais urgentes quando começaram a encontrar máscaras e demais item de higiene pessoal jogadas na estrada que corta o território até o litoral. Assim que formaram as barreiras sanitárias os caciques e lideranças fizeram contato com a Secretaria de Justiça do Estado, informaram o Ministério Público Federal (MPF) de Teixeira de Freitas (BA), a Funai, portais de notícias, rádios e demais meios de comunicação, notificando a ação.
As barreiras permaneceram formadas por aproximadamente quatro meses. Foi preciso reversar os grupos na vigília. Mandi Pataxó relata que em uma dessas trocas de equipes, “policiais do Padro, quando passaram pela barreira, arrancaram nossa corrente e desceram pro lado da vila de Corumbau”. Questionados do motivo que retirarem a corrente, já que estavam dentro da terra, “argumentaram que não sabiam que era aldeia, que pediam desculpa e que a corrente tinha sido jogada no mar”, relata Mandi. A ação policial foi comemorada por pessoas e empresários locais. O caso foi denunciado à Secretaria de Justiça.
Mandi recorda que a postura da Funai foi de quem “não dá a mínima”. “Em todo o processo não deu a mínima, não veio aqui, não deu satisfação em nada. Durante todo o período que ficamos de barreira. Com a aldeia Tauá, nossa vizinha, fizemos um documento e mandamos para Defensoria Pública da União e outras instâncias do Governo. O que veio foi umas cestas básicas da Conab [Companhia Nacional de Abastecimento], via Funai, uma única vez”.
Contato com a Funai
A Assessoria de Comunicação do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) realizou 5 tentativas de contato com a Fundação Nacional do Índio para ouvir o órgão indigenista. As ligações realizadas na quinta-feira (17) para a sede nacional da Funai não foram atendidas e o e-mail com solicitação de informações retornaram com a resposta: “Informamos que a demanda foi recebida e será avaliada”. Nenhuma resposta foi obtida até a publicação da matéria.
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Barreira sanitária da Terra Indígena Comexatibá, na Bahia. Foto: Povo Pataxó