Um dia de 520 anos: invasão, etnocídio, ecocídio, epistemicídio

Por Gi­va­nildo Ma­nole da Silva-Fulniô (Giva), na Coluna Imbaú / Correio da Cidadania

Dentro de mim, existem dois lobos:
O lobo do ódio e o lobo do amor.
Ambos dis­putam o poder sobre mim.
E quando me per­guntam qual lobo é ven­cedor, res­pondo:
O que eu ali­mento.
(Pro­vérbio In­dí­gena)

Gos­ta­ríamos de agra­decer ao Cor­reio da Ci­da­dania a opor­tu­ni­dade de apre­sen­tarmos, por meio deste es­paço per­ma­nente, a con­jun­tura atual da pauta in­dí­gena por meio da visão e voz dos mesmos. Esta co­luna será cons­truída co­le­ti­va­mente por in­dí­genas de di­versos cantos de Pin­do­rama e, em mo­mento opor­tuno, fa­remos um ar­tigo para apre­sentar ra­pi­da­mente a pro­posta desta co­luna, já que o ob­je­tivo do ar­tigo é tentar fazer uma re­tros­pec­tiva do ano de 2020, no que diz res­peito às lutas e à si­tu­ação in­dí­gena no país.

O ano de 2020 co­meçou em 2019. En­tender 2020 pres­cinde de uma aná­lise de 2019, pois é nesse mo­mento que o co­lo­ni­a­lismo-ca­pi­ta­lismo ofe­rece a sua face pre­vi­sível e menos dis­si­mu­lada du­rante a 6ª (sexta) Re­pú­blica que, em seus 32 anos de exis­tência, do ponto de vista do que se previu em sua Cons­ti­tuição, não se efe­tivou e já não existe mais, prin­ci­pal­mente para o pre­si­dente Jair Bol­so­naro, que elegeu os povos in­dí­genas e o meio am­bi­ente como seus prin­ci­pais ini­migos.

Se o ano de 2019 foi mar­cado por in­va­sões em es­cala nunca antes vista nesses anos de Re­pú­blica, o ano de 2020 agravou ainda mais as con­di­ções de vida dos in­dí­genas. Essa si­tu­ação está li­gada ao atual man­da­tário do Poder Exe­cu­tivo Fe­deral, que em toda sua tra­je­tória po­lí­tica nunca teve dú­vidas em re­lação ao que faria contra os povos in­dí­genas. Como exemplo, ci­tamos: “Pena que a ca­va­laria bra­si­leira não tenha sido tão efi­ci­ente quanto à ame­ri­cana que ex­ter­minou os ín­dios” (Cor­reio Bra­zi­li­ense, 12 abril 1998), ou sobre que in­te­resses de­fende: “Não tem terra in­dí­gena onde não têm mi­ne­rais. Ouro, es­tanho e mag­nésio estão nessas terras, es­pe­ci­al­mente na Amazônia, a área mais rica do mundo. Não entro nessa ba­lela de de­fender terra para índio” (Campo Grande News, 22 abril 2015); “[re­servas in­dí­genas] su­focam o agro­ne­gócio. No Brasil não se con­segue di­mi­nuir um metro qua­drado de terra in­dí­gena” (Campo Grande News, 22 abril 2015), ou o que faria em sendo eleito: “Pode ter cer­teza que se eu chegar lá (Pre­si­dência da Re­pú­blica) não vai ter di­nheiro pra ONG. Se de­pender de mim, todo ci­dadão vai ter uma arma de fogo dentro de casa. Não vai ter um cen­tí­metro de­mar­cado para re­serva in­dí­gena ou para qui­lom­bola” (Es­tadão, 3 abril 2017)”; “se eu as­sumir [a Pre­si­dência do Brasil] não terá mais um cen­tí­metro para terra indígena” (Dou­rados, Mato Grosso do Sul, 8 Fe­ve­reiro 2018); “Em 2019 vamos des­marcar [a re­serva in­dí­gena] Ra­posa Serra do Sol. Vamos dar fuzil e armas a todos os fa­zen­deiros” (Ma­ni­fes­tação no Con­gresso, pu­bli­cado em 21 ja­neiro 2016); “Se eleito eu vou dar uma foi­çada na FUNAI, mas uma foi­çada no pes­coço. Não tem outro ca­minho. Não serve mais.” (Es­pí­rito Santo, 1 de agosto 2018), ci­tado no site In­di­ge­nistas As­so­ci­ados.

O Es­tado contra os povos in­dí­genas

“Então se o Es­tado me tira mais, que me dê mais ou deixe de me falar em igual­dade de di­reitos; porque de outra ma­neira a so­ci­e­dade já não é ins­ti­tuída para de­fender a pro­pri­e­dade, mas sim para or­ga­nizar sua des­truição”. (Proudhon)

Di­ante da po­sição anti-in­dí­gena do atual man­da­tário do Es­tado-nação bra­sileiro, não po­de­ríamos es­perar ab­so­lu­ta­mente nada di­fe­rente do que já havia pre­nun­ciado, porém, o que se es­pe­rava era uma re­ação contra os seus des­mandos, que na prá­tica só se viu no campo da re­tó­rica, per­mi­tindo que vi­esse sendo exe­cu­tado sem en­con­trar re­sis­tên­cias mai­ores, en­con­trando na pa­ra­lisia das ins­ti­tui­ções fortes ali­ados para que co­lo­casse em an­da­mento sua marcha fú­nebre e des­trui­dora sobre os ter­ri­tó­rios in­dí­genas, ins­ti­tuindo, assim, a face des­mas­ca­rada da Ne­cro­po­lí­tica.

Não po­demos negar que existe uma di­nâ­mica Co­lono-Ca­pi­ta­lismo que, do ponto de vista de sua exis­tência, vai se cons­ti­tuir a partir do roubo e da apro­pri­ação do que é co­le­tivo, como já ob­ser­vava Karl Marx, em O Ca­pital, Livro 1: “O roubo as­sume a forma par­la­mentar que lhe dão as leis re­la­tivas ao cer­ca­mento de terras co­muns, ou me­lhor, os de­cretos com que os se­nhores das terras se pre­sen­teiam com os bens que per­tencem ao povo, tor­nando-os sua pro­pri­e­dade par­ti­cular, de­cretos da ex­pro­pri­ação do povo“, quando vai ana­lisar a origem do ca­pi­ta­lismo.

A Acu­mu­lação Pri­mi­tiva, que faz parte per­ma­nente do pro­cesso de re­pro­dução do co­lono-ca­pi­ta­lismo, vai se per­pe­tu­ando em re­giões que ainda não foram atin­gidas ple­na­mente pela ló­gica co­lono-ca­pi­ta­lista, logo, todos os ter­ri­tó­rios e grupos que ainda es­capam de sua ló­gica es­tarão sob ataque, a exemplo das 19 con­di­ci­o­nantes im­postas para a ho­mo­lo­gação do ter­ri­tório de Ra­posa Terra do Sol, que passou a valer para todos os ter­ri­tó­rios de­mar­cados e ho­mo­lo­gados ao aten­derem prin­ci­pal­mente aos in­te­resses do co­lono-ca­pi­ta­lismo, se assim o Es­tado en­tender.

O Des­monte das es­tru­turas das po­lí­ticas e in­vasão dos ter­ri­tó­rios in­dí­genas

“Nós es­tamos em guerra. Eu não sei por que você está me olhando com essa cara tão sim­pá­tica. Nós es­tamos em guerra. O seu mundo e o meu mundo estão em guerra. Os nossos mundos estão todos em guerra. A fal­si­fi­cação ide­o­ló­gica que su­gere que nós temos paz é pra gente con­ti­nuar man­tendo a coisa fun­ci­o­nando. Não tem paz em lugar ne­nhum. É guerra em todos os lu­gares, o tempo todo”.
(Do­cu­men­tário Guerras do Brasil, Ailton Krenak)

No pri­meiro dia de 2019, sem re­servas, o atual Go­verno Fe­deral fez di­versos ata­ques aos di­reitos dos povos in­dí­genas. Mudou a res­pon­sa­bi­li­dade do pro­cesso de de­mar­cação dos ter­ri­tó­rios da FUNAI (Fun­dação Na­ci­onal do Índio) para o Mi­nis­tério da Agri­cul­tura, que tem no cargo uma líder ru­ra­lista, Te­reza Cris­tina (De­mo­cratas), con­trária à de­mar­cação dos ter­ri­tó­rios e aos di­reitos in­dí­genas, mesmo com as idas e vindas no de­correr desses dois anos, levou aquilo que esse go­verno de­se­java: a pa­ra­li­sação das de­mar­ca­ções e ho­mo­lo­ga­ções dos ter­ri­tó­rios in­dí­genas, am­pli­ando o pro­cesso de in­vasão da mi­ne­ração e do agro­ne­gócio nos ter­ri­tó­rios já de­mar­cados. Assim, des­man­telou os ór­gãos que pro­mo­viam o aten­di­mento, prin­ci­pal­mente aos povos al­de­ados.

Se­gundo dados dis­po­ni­bi­li­zados pelo Re­la­tório da Vi­o­lência Contra os Povos In­dí­genas do Brasil (2019), ela­bo­rado pelo Con­selho In­di­ge­nista Mis­si­o­nário (CIMI), tem-se o se­guinte quadro:

Ata­ques às li­ber­dades re­li­giosa e de pen­sa­mento

Bol­so­naro inicia o ano de 2020 com um dis­curso (23 de ja­neiro), que para muitos é novo, mas para os in­dí­genas é muito an­tigo, assim, para o Chefe do Exe­cu­tivo “o índio mudou, tá evo­luindo. Cada vez mais, o índio é um ser hu­mano igual a nós. Fazer com que o índio cada vez mais se en­tregue à so­ci­e­dade e seja cada vez mais dono da sua Terra In­dí­gena”. Além do ódio aos povos in­dí­genas, essa fala pinta um quadro de cinza e sangue, que está sendo de­se­nhado há mais de 500 anos, evi­dencia um Es­tado ex­tre­ma­mente anti-in­dí­gena e sua forma de ser e de viver, que con­fronta o mo­delo ca­pi­ta­lista de exis­tência.

Dis­curso que, na his­tória, ficou mar­cado entre as ela­bo­ra­ções de falas na­zistas e muito se­me­lhante ao que pre­gava a Igreja Ca­tó­lica que co­la­borou com a in­vasão de Abya Yala, afir­mando que in­dí­gena não tem alma. Por ironia ou não, o atual go­verno é sim­pa­ti­zante da dis­si­dência do ca­to­li­cismo. Evan­gé­lico fa­ná­tico, tem apos­tado em mis­sões evan­gé­licas para et­no­cidar povos in­dí­genas, in­clu­sive os “iso­lados”, uti­li­zando ou­tros povos, como foi pu­bli­cado re­cen­te­mente pelo jornal Úl­timo Se­gundo, no dia 24 de se­tembro, de­nun­ci­ando o co­or­de­nador-geral de Ín­dios Iso­lados e de Re­cente Con­tato da Funai, Ri­cardo Lopes Dias.

O go­verno, assim, tem per­mi­tido e es­ti­mu­lado a en­trada de en­ti­dades mis­si­o­ná­rias para evan­ge­li­zação, in­clu­sive de con­gre­ga­ções mis­si­o­ná­rias in­ter­na­ci­o­nais, vi­o­len­tando a li­ber­dade de pen­sa­mento e culto dos povos al­de­ados, prin­ci­pal­mente os iso­lados. Isso causa enorme pre­juízo so­ci­o­cul­tural e à saúde, tor­nando assim um dos mai­ores pro­blemas para esses povos, pior mesmo que os ma­dei­reiros e o agro­ne­gócio, como de­nun­ciou Da­niel Can­gussu, tra­ba­lhador da Funai, que foi obri­gado a levar mis­si­o­ná­rios aos ter­ri­tó­rios de povos iso­lados.

Mesmo du­rante a pan­demia cau­sada pelo Covid-19, onde o iso­la­mento é a única saída de não so­bre­car­regar o sis­tema de saúde e ga­rantir uma menor taxa de con­tágio.

Pan­demia da COVID-19 e o des­monte da Po­lí­tica Na­ci­onal de Saúde In­dí­gena

Não bas­tassem as in­va­sões de ma­dei­reiros, gri­leiros e ga­rim­peiros ile­gais nas suas terras, in­cen­ti­vados por um ano de 2019 re­pleto de ata­ques aos di­reitos in­dí­genas, a pan­demia em 2020 deixou a si­tu­ação ainda mais grave para in­dí­genas al­de­ados. Des­mon­tada, a Sesai (Se­cre­taria Es­pe­cial de Saúde In­dí­gena) não atendeu as de­mandas ao que seu es­copo des­tina, o aten­di­mento es­pe­cial para al­de­ados -, e di­versos foram os exem­plos de ne­gli­gência, quando não de afronta e abuso.

Os Ya­no­mamis de Ro­raima, por exemplo, ex­pe­ri­en­ci­aram ambos: um, quando os corpos de suas cri­anças de­sa­pa­re­ceram de­pois de fa­le­cerem em de­cor­rência do Covid-19, não lhes dando o di­reito de se­guir com o seu rito de luto, que vai de en­contro com as normas sa­ni­tá­rias de se­pul­ta­mento. E outro quando o Go­verno Fe­deral, através do exér­cito, levou clo­ro­quina – um re­médio que é com­pro­vado ci­en­ti­fi­ca­mente ser ine­ficaz no com­bate à do­ença – ao seu ter­ri­tório como pro­pa­ganda de ação contra o Co­ro­na­vírus.

Esse des­monte da po­lí­tica de saúde in­dí­gena, não pro­pondo ne­nhum plano de pro­teção à saúde, que expôs a Pan­demia, os povos al­de­ados, le­vando à morte de 236 in­dí­genas al­de­ados e 2390 in­fec­tados atin­gindo, ao todo, 93 povos. Se­gundo o jornal El País, em 14 de junho de 2020, de acordo com o bo­letim da APIB (Ar­ti­cu­lação dos Povos In­dí­genas do Brasil). Esses dados ainda são in­com­pletos em re­lação à to­ta­li­dade dos in­dí­genas in­fec­tados, já que os in­dí­genas que vivem em con­texto ur­bano não re­cebem aten­di­mento pela SESAI.

Di­ante dessa si­tu­ação, uma das prin­ci­pais li­de­ranças in­dí­genas do Brasil, Ca­cique Raoni Me­tuk­tire, de­nuncia a gra­vi­dade da po­lí­tica desse go­verno e afirma que “Bol­so­naro se apro­veita da pan­demia para ex­ter­minar os in­dí­genas”.

Vi­o­lência contra as li­de­ranças e in­dí­genas al­de­ados

O in­cen­tivo à gri­lagem de terras in­dí­genas, para ex­pansão do agro­ne­gócio, mi­ne­ração e ex­tração de ma­deira, sempre vem acom­pa­nhada de muita vi­o­lência contra as li­de­ranças. Para que ocorra des­mo­bi­li­zação da pos­sível re­sis­tência da­quele povo que sofre o ataque cri­mi­noso, não muito raro, os pró­prios in­dí­genas são acu­sados das mortes pro­vo­cadas pelos que estão a ser­viço do co­lono-ca­pi­ta­lismo.

Em 2019, a vi­o­lência contra as li­de­ranças in­dí­genas mais que tri­plicou em re­lação a 2018, foram 2 mortes em 2018, já em 2019 foram 7 mortes (Dados da CPT – Co­missão pas­toral da Terra) e com um au­mento de 150% de mortes de in­dí­genas al­de­ados. Além disso, foram 276 casos em 2019 e 113 em 2018 (Dados do CIMI- Con­selho In­di­ge­nista Mis­si­o­nário), o que in­dica uma es­ca­lada da vi­o­lência contra os povos al­de­ados, es­ti­mu­lados pelos per­ma­nentes dis­cursos ra­cistas e odi­osos contra os povos in­dí­genas.

Quei­madas

“A flo­resta está viva. Só vai morrer se os brancos in­sis­tirem em des­truí-la. Se con­se­guirem, os rios vão de­sa­pa­recer de­baixo da terra, o chão vai se des­fazer, as ár­vores vão mur­char e as pe­dras vão ra­char no calor. A terra res­se­cada fi­cará vazia e si­len­ciosa. Os es­pí­ritos xa­piri, que descem das mon­ta­nhas para brincar na flo­resta em seus es­pe­lhos, fu­girão para muito longe. Seus pais, os xamãs, não po­derão mais chamá-los e fazê-los dançar para nos pro­teger. Não serão ca­pazes de es­pantar as fu­maças de epi­de­mias que nos de­voram. Não con­se­guirão mais conter os seres ma­lé­ficos, que trans­for­marão a flo­resta num caos. Então mor­re­remos, um atrás do outro, tanto os brancos quanto nós. Todos os xamãs vão acabar mor­rendo. Quando não houver mais ne­nhum deles vivo para sus­tentar o céu, ele vai de­sabar”.
(Davi Ko­pe­nawa, xamã ya­no­mami – Carta Ca­pital, 2015.)

As quei­madas, que atingem as­sus­ta­do­ra­mente os povos in­dí­genas al­de­ados e a hu­ma­ni­dade em geral, são um Eco­cídio em curso, ou seja, a con­cre­ti­zação do ex­ter­mínio de­li­be­rado de um ecos­sis­tema re­gi­onal ou co­mu­ni­dade. Em 2019, a am­pli­ação do pro­cesso de quei­madas do­brou, a queima de flo­restas na­quele ano equi­vale ao es­tado de São Paulo e Rio de Ja­neiro juntos. Já em 2020, as quei­madas atin­giram, até ou­tubro, 73% a mais que o ano an­te­rior, atin­gindo o equi­va­lente à área ter­ri­to­rial de um país como a Di­na­marca (Dados do INPE).

Na Amazônia legal, a flo­resta arde e pede so­corro, desde 2015 vem ocor­rendo uma enorme des­truição na re­gião, pro­mo­vida pelas quei­madas. So­mente neste pe­ríodo, foram re­gis­tradas 13419 quei­madas. Já na ter­ceira se­mana de ou­tubro de 2019, per­demos para as chamas da co­lo­ni­zação a re­gião equi­va­lente ao ta­manho do Lí­bano e esse ano já teve um au­mento de 35% a mais em re­lação ao ano pas­sado.

Essas áreas ví­timas dos in­cên­dios cri­mi­nosos acabam con­so­li­dando áreas para atender aos in­te­resses agrí­colas e a pe­cuária do agro­ne­gócio. Logo, apesar de con­si­derar o clima, pe­ríodo, a ação dis­si­mu­lada de ocu­pação desses ter­ri­tó­rios, leva a acre­ditar que esses in­cên­dios em boa me­dida foram pra­ti­cados de forma cri­mi­nosa.

In­vasão per­ma­nente

Esse mês de ou­tubro, re­ce­bemos a de­núncia do site de Olho nos Ru­ra­listas, de algo que já se sabia a muito tempo, mas, foi con­fir­mado agora. A ma­téria cons­tata:

“Apesar de serem áreas pú­blicas pro­te­gidas e de usu­fruto ex­clu­sivo de povos tra­di­ci­o­nais, 297 terras in­dí­genas (TIs) do país têm parte do seu ter­ri­tório legal re­gis­trado no Ca­dastro Am­bi­ental Rural (CAR) em nome de pes­soas fí­sicas ou ju­rí­dicas. A prá­tica, que con­siste em re­gis­trar a au­to­de­cla­ração de áreas in­dí­genas como par­ti­cu­lares, fa­ci­lita a gri­lagem (o roubo de terras pú­blicas), a ex­pulsão de povos ori­gi­ná­rios e tra­di­ci­o­nais e a vi­o­lência no campo, se­gundo alertam es­pe­ci­a­listas (ver aqui)”.

Tal fato já foi de­nun­ciado pelo geó­grafo Ari­o­valdo Um­be­lino, que aler­tava para o que es­tava acon­te­cendo com a es­tru­tura fun­diária no país, de­nun­ci­ando, assim, a be­liche fun­diária. Mas a pes­quisa e cons­ta­tação con­tun­dente do site não deixam dú­vidas de que o Es­tado bra­si­leiro, que ad­mite ta­manha ile­ga­li­dade, não tem ne­nhum res­peito aos ter­ri­tó­rios in­dí­genas, mesmo de­mar­cados e ho­mo­lo­gados, per­mi­tindo, dessa forma, que tais ar­ti­ma­nhas sejam re­a­li­zadas, para ar­gu­mentar fato con­su­mado nesse pro­cesso de ex­pansão do co­lono-ca­pi­ta­lismo.

“Nosso tempo é es­pe­ci­a­lista em criar au­sên­cias: do sen­tido de viver em so­ci­e­dade, do pró­prio sen­tido da ex­pe­ri­ência da vida. Isso gera uma in­to­le­rância muito grande com re­lação a quem ainda é capaz de ex­pe­ri­mentar o prazer de estar vivo, de dançar, de cantar.”
(Ailton Krenak, Idéias para adiar o fim do mundo – Cia das Le­tras, 2019)

Nesse texto não tí­nhamos a pre­tensão de abordar todos os as­pectos das vi­o­la­ções que so­frem os povos in­dí­genas, pois, os as­pectos são di­versos prin­ci­pal­mente da­queles que foram des­ter­ri­to­ri­a­li­zados, aqueles que per­deram a me­mória an­ces­tral que vivem nas pe­ri­fe­rias e fa­velas deste país, que é um ca­pí­tulo à parte e deve ser tra­tado com o cui­dado e em tempo ade­quado, mas, apre­sentar a si­tu­ação da­queles que estão na linha de frente da pro­teção das flo­restas, dos ter­ri­tó­rios pro­te­gidos da ga­nância do ca­pital, da­queles que ce­le­bram a exis­tência na sua total in­te­gração com a na­tu­reza, que co­locam seus corpos na pro­teção dos ele­mentos que ga­rantem al­guma qua­li­dade de vida para a hu­ma­ni­dade.

Ter a di­mensão desse mo­mento his­tó­rico en­ten­dendo a ação an­ti­co­lo­ni­a­lista-an­ti­ca­pi­ta­lista da exis­tência in­dí­gena, no Brasil e no mundo, é que pode trazer a cen­tra­li­dade da re­lação ser hu­mano/na­tu­reza, rom­pendo com a in­di­vi­du­a­li­zação da exis­tência, que impõe suas con­di­ções de­su­ma­ni­za­doras, des­con­si­de­rando toda a di­mensão da exis­tência e ex­pe­ri­ência hu­mana que se com­pleta na e com a na­tu­reza.

A Co­luna Imbau é um novo es­paço aberto no Cor­reio da Ci­da­dania junto de or­ga­ni­za­ções e in­di­ví­duos in­dí­genas de 13 et­nias di­fe­rentes, com a fi­na­li­dade de di­vulgar as pro­du­ções e o pen­sa­mento dos povos ori­gi­ná­rios bra­si­leiros e suas pautas.

Este ar­tigo foi es­crito por Gi­va­nildo Ma­nole da Silva-Fulniô (Giva).

Co­la­bo­raram Ja­mille Nunes, Lo­rena Varão, Júlio César Pe­reira de Freitas Güató e Sassá Tu­pi­nambá.

Protesto em Brasília em 2018. Foto: Eraldo Peres / AP.

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