A proteção do meio ambiente e a improbidade administrativa

Políticas de desmonte das instituições socioambientais devem ensejar a responsabilização de agentes públicos

Por Marcia Brandão Zollinger e Julio José Araujo Junior*

A Constituição de 1988 não apenas declarou direitos fundamentais, mas conferiu a eles o peso normativo necessário para que as políticas públicas correspondentes à sua efetivação sejam desenhadas e concretizadas.
Assim, não bastam meras exortações ao cumprimento do texto, já que o gestor tem o dever de implementar, na maior medida possível, os direitos econômicos, sociais e culturais, por meio da estruturação de órgãos, instituições e procedimentos que viabilizem o projeto constitucional.

No campo socioambiental, o art. 225 da Constituição conferiu destaque ao tema, o que favoreceu o desenvolvimento, nos últimos 30 anos, de uma trajetória legal e institucional de compromisso com o desenvolvimento sustentável.

Nesse período, o Brasil estabeleceu marcos normativos e organizou a Administração Pública em favor de uma atuação modelo nesta pauta. Ainda que pudesse haver diferenças quanto às linhas de gestão no governo federal desde a redemocratização, o compromisso com o meio ambiente sempre foi uma diretriz.

A partir de janeiro 2019, assistimos a um projeto com sinal trocado. Ações, omissões, práticas e discursos têm promovido o esvaziamento das políticas ambientais e a fragilização do arcabouço normativo e organizacional de sustentação da tutela protetiva ao meio ambiente.

Após apuração, o Ministério Público Federal (MPF) propôs ação de improbidade administrativa em face do Ministro do Meio Ambiente, na qual aponta a responsabilidade do referido agente público pela desestruturação dolosa da proteção ao meio ambiente no âmbito federal.

A ação enfatiza que está em curso um desmonte doloso da estruturas de proteção ao meio ambiente, que pode ser demonstrado, de forma didática, por quatro formas de destruturação: (i) desestruturação normativa; (ii) desestruturação dos órgãos de transparência e participação; (iii) desestruturação orçamentária e (iv) desestruturação fiscalizatória.

O MPF destaca que os atos praticados pelo ministro podem parecer, à primeira vista, um exercício regular de discricionariedade administrativa. Contudo, eles devem ser lidos de forma concatenada, inseridos em um processo de desestruturação, realizado em várias frentes, de forma a fragilizar a atuação estatal na proteção do meio ambiente.

A desregulamentação de medidas proibitivas, a desmobilização de servidores e o desmonte da fiscalização compõem um conjunto ordenado. Nesse ponto, há várias práticas indicativas de desvio de finalidade na gestão ambiental, tais como: i) a exoneração de servidores engajados de cargos de chefia; ii) o esvaziamento da participação da sociedade civil no Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama); iii) a alteração de atos normativos para impor uma proteção menor a unidades de conservação e áreas de proteção; e iv) a diminuição do orçamento.

O enfraquecimento do Conama é emblemático quanto ao roteiro de desestruturação. Em um primeiro momento, houve a redução dos espaços de participação democrática e da representatividade social no Conama, pelo Decreto nº 9.806, de 28 de maio de 2019.

Na sequência, nesse quadro de disparidade representativa, promoveu-se a revogação de três resoluções de uma só vez, deixando desprotegidas áreas de manguezais e restingas e entornos de reservatórios d’água, e em situação de anomia regulatória o licenciamento de empreendimentos de irrigação fragilizando a proteção dos recursos hídricos.

O STF já reconheceu tais violações, tendo a relatora ministra Rosa Weber cosignado a “impressão da ocorrência de efetivo desmonte da estrutura estatal de prevenção e reparação dos danos à integridade do patrimônio ambiental comum” (ADPFs 747, 748 e 749).

As desestruturações orçamentária e fiscalizatória, por sua vez, impactam diretamente as atividades de fiscalização. Enquanto o desmatamento aumentava, houve redução orçamentária da ação programática de controle e fiscalização ambiental em 25%  para 2020. Além disso, houve a inativação do Fundo Amazônia, deixando sem uso recursos na ordem de 1,6 bilhão de reais, em franco prejuízo à preservação do Bioma Amazônico.

Orçamento reduzido, nomeações de chefias sem critérios técnicos e exoneração de servidores em plena atividade fiscalizatória acarretaram o enfraquecimento da dimensão organizacional fiscalizatória e das capacidades institucionais e operacionais dos órgãos incumbidos da política de proteção ao meio ambiente.

Com a derrubada dos pilares que sustentam a atuação fiscalizatória, os efeitos no aumento do desmatamento e das queimadas são visíveis.No caso do desmatamento da Amazônia, os dados mostram que os efeitos da omissão deliberada na gestão ambiental são imediatos, podendo tornar-se irreversíveis[1].  Entre 2009 e 2018, índice médio de corte raso da Floresta Amazônica sofreu uma drástica diminuição, tendo atingido o mínimo em 2012. Em 2019, houve aumento bastante significativo.

Segundo dados do Sistema PRODES,[2] entre agosto de 2018 e julho de 2019 cerca de 10.300 km² da Amazônia Legal foram postos abaixo e entre agosto de 2019 e julho de 2020 a área desmatada na Amazônia correspondeu a 11.088 km². Trata-se dos dois maiores índices de desmate dos últimos dez anos.

A ação descreve que, em diversas frentes de atuação, o ministro agiu de forma concreta para inviabilizar a adequação da política nacional do meio ambiente aos textos constitucional e infraconstitucional.

Atos e medidas aparentemente corriqueiros foram utilizados com o propósito de favorecer, em seu conjunto, uma fragilização das políticas de preservação, conservação e utilização sustentável de ecossistemas, biodiversidade e florestas.

Com isso, a estrutura do ministério foi direcionada para o enfraquecimento de suas atribuições, diminuindo a importância da pauta para o Estado brasileiro, o que foi expressamente admitido em declarações e amplamente divulgado no vídeo da reunião ministerial de 22 de abril. “Passar a boiada” passou a ser a diretriz oficial, em clara afronta aos requisitos legais e aos deveres funcionais do titular da pasta.

Ao praticar atos de desmonte das estruturas de proteção ao meio ambiente, a ação conclui que o ministro atentou contra os princípios da eficiência, moralidade, legalidade e da lealdade às instituições, incidindo na prática de ato de improbidade administrativa descrito no art. 11 da Lei nº 8.429/92.

Houve uma atuação concreta para inviabilizar que a política nacional do meio ambiente fosse constitucionalmente adequada. A estrutura do ministério foi direcionada para o enfraquecimento de suas atribuições, diminuindo a importância da pauta para o Estado brasileiro e futuras gerações.

Como já alertou o STF na decisão liminar da ministra Rosa Weber nas ADPFs 747, 748 e 749, “[a] atuação positiva do Estado decorre do direito posto, não havendo espaço, em tema de direito fundamental, para atuação discricionária e voluntarista da Administração, sob pena, inclusive, em determinados casos, de responsabilização pessoal do agente público responsável pelo ato, a teor do art. 11, I, da Lei nº 8.429/1992”.

A urgência na defesa do meio ambiente impõe uma resposta célere do Poder Judiciário na contenção da erosão em curso das instituições ambientais. O reconhecimento da improbidade administrativa dos gestores é um passo fundamental, de modo a não repetir novas violações e assegurar a proteção socioambiental e a credibilidade do compromisso do Estado brasileiro na matéria.

*Publicado originalmente no site Jota, na série VIVÊNCIAS NO MPF.

Photo prise le 15 août 2020 d’un feu illégalement allumé dans la réserve de forêt amazonienne, au sud de Novo Progresso dans l’État de Para, au Brésil. Crédits: Carl de Souza /AFP /France Culture

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