Prefeito da cidade que simboliza o caos na saúde brasileira utiliza pandemia para fazer lobby para projeto que ameaça porção intocada da floresta no Amazonas: “Se for aberta para invasão, é um desastre”, alerta pesquisador do Inpa
Por Carlos Tautz, Arayara.org
A cidade Manaus, no coração Amazônia brasileira, simboliza a tragédia do enfrentamento à pandemia em todo o Brasil, porque a prefeitura local usa o mesmo negacionismo genocida operado pelo governo federal. Na falta de oxigênio hospitalar para atender os doentes internados na cidade, devido à suspensão do envio do insumo pelo Ministério da Saúde, o prefeito manauara, David Almeida (Avante), tentou esconder a situação nesta capital do Amazonas. Preferiu culpar ambientalistas por atrasos na reconstrução da estrada BR-319, que liga Manaus a Santarém. Almeida diz que, se a BR-319 funcionasse integralmente, o oxigênio seria entregue.
Esses argumentos foram rebatidos por cientistas – entre eles, o biólogo do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), Philip Fearnside, um dos mais respeitados do País. Estadunidense de nascimento, Fearnside há quase 50 anos é uma referência no estudo do funcionamento da floresta Amazônia – no fim desse texto, Fearnside aborda as ameaças ambientais escondidas sob a proposta de reconstruir e ampliar a BR-319. No final desse texto, Fearnside explica mais aprofundadamente esses impactos.
Mas, o prefeito Almeida preferiu deixar de lado outras tragédias enfrentadas por Manaus – e onde a omissão do poder público é, literalmente, um caso de vida ou de morte.
“Em Manaus vivem 30 mil indígenas de 47 povos que falam 16 línguas e se articulam em 100 organizações . A cidade tem a maior população indígena do Pais, mas o fato de estarmos em uma grande cidade não significa que se tenha acesso aos principais serviços de saúde. A pandemia não trouxe apenas a doença. Trouxe também a fome e principalmente violação de direitos para os indígenas”, reclama Marcivania Sateré, coordenadora da Coordenação dos Povos Indígenas de Manaus e Entorno (Comipe).
Marcivânia denuncia que, apesar de suas características marcadamente indígenas, Manaus não desenvolveu um plano de contingência específico para esse recorte da população. “No dia 6 de janeiro encaminhamos através do Ministério Público Federal , nosso grande parceiro, um documento solicitando o plano”, informa.
“Na primeira onda (de COVID-19), mapeamos 35 óbitos em Manaus , entre abril a junho de 2020. Não entraram nos números oficiais no Ministério da Saúde. Em 2021, já tivemos dois óbitos que também não entraram nos números. Essas pessoas estavam ligadas a uma organização indígena, mas grande parte da população indígena não está ligada a nenhuma organização. São famílias isoladas por todas as zonas de Manaus”, denuncia.
“O caos é muito grande nas unidades de saúde e tem um número muito grande de pessoas morrendo em casa. A economia indígena na cidade de Manaus está centrada na produção e venda do artesanato e nas apresentações culturais para o turismo”, explica, observando que todas essas atividades foram suspensas durante o isolamento social necessário para enfrentar o coronavírus.
“A gente se pergunta: por onde andam deputados estaduais, vereadores e prefeito. Na primeira onda, tivemos ainda algumas articulações com as equipes de médicos da Secretaria Municipal (de Saúde). Eles atenderam algumas comunidades onde estavam os contaminados. Em Manaus não há representatividade indígena (na Câmara Municipal)”, reclama Marcivânia.
A Arayara.org tentou contato na tarde de terça-feira (19) e na manhã de quarta (20) com as Secretarias de Comunicação e da Casa Civil da Prefeitura de Manaus para perguntar sobre a existência ou não do plano de contingência para indígenas. Até a publicação desta matéria. Nenhum dos órgãos respondeu à nossa solicitação. Se o fizerem mais tarde, atualizaremos este texto.
“A campanha de imunização do governo federal deixa de fora os indígenas que estão nas cidades. É uma imunização voltada apenas para os indígenas aldeiados. Estamos muito vulneráveis. Indígenas apresentam taxas (de contaminação e de letalidade) muito superiores em relação a outros segmentos da população brasileira. A Covida-19 afeta diretamente as nossas raízes culturais, levando a óbito os guardadores das nossas memórias ancestrais que são os nossos anciões”, alerta a coordenadora da Copime, observando que a culpa da tragédia também é do governo federal.
No relatório “Covid-19 e Povos indígenas – O enfrentamento das violências durante a pandemia”, de novembro de 2020, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB, organização de âmbito nacional que reúne sete entidades regionais nos 27 estados brasileiros) contabiliza que “até dezembro de 2020, mais de 41 mil indígenas foram contaminados pelo novo coronavírus, atingindo mais da metade dos 305 povos que vivem no Brasil (…) “Foi entre os meses de março à novembro de 2020, que as violências contra os povos indígenas aumentaram dentro e fora de nossos territórios. Os criminosos que invadem nossas terras não fizeram quarentena e, muito menos, “home office”. Afirmamos que o agravamento das violências contra os povos indígenas, durante a pandemia, foi incentivado por Bolsonaro”, continua o relatório.
A entrevista completa de Marcivânia está aqui.
A BR-319 é instrumento eleitoral dos políticos de Manaus, diz Fearnside – “Esse tema da estrada BR-319 ameaça não apenas Manaus, mas o Brasil inteiro”, observa Philip Fearnside. “Aquele grande bloco de floresta na parte oeste do (Estado do) Amazonas está segurando a situação ambiental no País hoje. Se for aberto para invasão, por essas mesmas pessoas que passaram por Rondônia, sul do Pará etc, é um desastre. Sua função (da região) é a reciclagem de água transportada para o sudeste e o sul do Brasil através dos chamados rios voadores”.
Fearnside se refere à construção da estrada federal BR-319, que vai ligar Manaus (AM) a Porto Velho (RO) e que está em processo de licenciamento ambiental . O Estudo de Impacto Ambiental (EIA) submetido ao Ibama “está recebendo tratamento acelerado pelo que parece ser uma aprovação predeterminada. A aprovação apressada de um projeto que implique uma grande expansão da área na Amazônia que está exposta ao desmatamento é extremamente imprudente”.
Se concluído integralmente o plano do governo federal de reconstruir e ampliar a BR-319, a estrada vai bordear toda a extensão a que Fearnside se referiu, e que até hoje conseguiu ficar livre das queimadas e derrubaras de florestas do assim chamado Arco do Desmatamento – uma enorme região no norte do mato Grosso e sul do Pará, onde o grande negócio agrícola associados a grileiros nacionais e internacionais puseram enormes porções de floresta abaixo.
“Aquele é o último grande bloco de floresta intacta na Amazônia brasileira”, costuma dizer o pesquisador, estadunidense de nascimento que há quase 50 anos trabalha no Brasil.
A entrevista completa com o professor Fearnside está aqui.
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Enviada para Combate Racismo Ambiental por Juliano Bueno.