A pandemia e os conflitos no território Jambuaçu, no Pará

Cícero Pedrosa Neto, Adriana Abreu e Sam Schramski, especial para Amazônia Real

Belém (PA) – “Além de todas as coisas que a gente já enfrenta aqui com essas empresas, veio mais esse vírus e complicou tudo ainda mais para nós”. A queixa de Guiomar Tavares resume o contexto que se configurou com a chegada do novo coronavírus na comunidade Sebastião, uma das 16 que compõem o território quilombola de Jambuaçu, no município de Moju, no nordeste do Pará. 

Cercadas historicamente por grandes empreendimentos da mineração e do agronegócio, as comunidades quilombolas do território de Jambuaçu tiveram que enfrentar o avanço da pandemia e a soma de outras lutas travadas há décadas pelo direito à terra, contra a supressão territorial de suas propriedades causada pela presença de minerodutos subterrâneos, contra a contaminação de suas águas causadas pelo plantio extensivo de dendê e pelo reconhecimento da identidade cultural do seu povo.

O território é atravessado pelos minerodutos de duas gigantes da mineração: a norueguesa Norsk Hydro e a francesa Imerys Capim Caulim. Por esses dutos percorreram toneladas diárias de bauxita e caulim, respectivamente. Os dutos passam sob os pés das famílias quilombolas, que vivem no território pelo menos desde o século 19, segundo estudos. 

A empresa Hydro é uma das maiores produtoras mundiais de alumínio, assim como a Imerys no beneficiamento de caulim, um minério utilizado sobretudo na produção de pigmentos, papéis, cerâmicas, cosméticos e outros.

No caso da Hydro, ela mantém ainda uma linha de transmissão que liga as fábricas da transnacional no município de Barcarena à hidrelétrica de Tucuruí, estrutura que também atravessa praticamente toda a extensão do território, acompanhando os tubos subterrâneos da empresa, os quais possuem 244 km de extensão e transportam a matéria prima do alumínio de Paragominas, onde a empresa mantém uma mina, até a cidade de Barcarena, onde está sua refinaria, a Hydro Alunorte.Em 2018, a Alunorte foi acusada pelo Ministério Público Federal do crime socioambiental causado pelo  transbordamento de lama tóxica de uma das suas bacias de rejeitos, o DRS1.

As comunidades do Jambuaçu  fazem fronteira com os extensos dendezais da empresa  Marborges – empresa que cultiva, processa e exporta o óleo de palma, subproduto do dendê, na região.  Com presença marcante no estado do Pará, a indústria multimilionária possui 7 mil hectares de plantação e outros 10 mil hectares para o restante de sua operação concentrados nas imediações do território quilombola de Jambuaçu. Estudos realizados na Amazônia destacam os impactos da produção extensiva do dendê no desmatamento, assim como seu potencial poluidor, uma vez que a produção industrial do óleo de palma utiliza em seu processo, de forma intensiva, produtos tóxicos como herbicidas, fertilizantes, raticidas e inseticidas para controle de pragas. 

Em meio aos múltiplos riscos a que estão expostas as famílias de Jambuaçu, uma rodovia estadual passou a ser ampliada e asfaltada durante a pandemia. “Eles não pararam um minuto a obra aí, foi dia e noite. Como manter nosso isolamento aqui desse jeito”, questiona Guiomar Tavares. 

Quando esteve no local, em novembro de 2020, a reportagem presenciou funcionários da empreiteira responsável pela obra operando maquinários pesados sem a utilização de máscaras de proteção. A rodovia citada por ela é a PA 252, que interliga os municípios de Moju e Acará. Sua construção acabou por assorear um importante igarapé da comunidade de Guiomar, que servia para a pesca, para o uso recreativo e era onde as mulheres lavavam roupas.

Segundo levantamento da Bambaê, associação que coordena o território de Jambuaçu, onde vivem cerca de 788 famílias e que possui por volta de 400 km2 de extensão, até o início do ano 2021, 80% do território havia sido contaminado pela Covid-19. As lideranças contam que a escassez de testes faz com que não se conheça a quantidade real de pessoas acometidas pelo coronavírus no território, algo que está refletido nacionalmente em todas as comunidades quilombolas presentes nos estados brasileiros. Pelo menos dez pessoas faleceram em Jambuaçu em decorrência do novo coronavírus.

“Nós não temos segurança em dizer quantos de nós morreram ou tiveram Covid-19, porque não existem dados oficiais para isso. O máximo que conseguimos é estimar com base nas contagem autônomas feitas de acordo com a precariedade em que as comunidades vivem, abandonadas pelo Estado brasileiro”, denuncia Givânia da Silva, membro da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq).

Para Raimundo Magno, da Coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Pará (Malungu), a pandemia acentuou o cenário de ameaças em que as comunidades quilombolas da Amazônia já viviam.

“Nosso povo aqui na Amazônia já vivia em uma constante ameaça mortal causada por empresas de mineração, do agronegócio, fazendas e outros empreendimentos. Com a chegada do vírus e com o abandono do Estado, nós praticamente fomos entregues para a morte”, conta Magno.

Procuradas pela reportagem, Imerys e Marborges não se manifestaram até a data desta publicação.

O grupo Norsk Hydro, por meio de seu porta-voz na Noruega, Halvor Molland, afirmou que mantém contato permanente com as comunidades quilombolas de Jambuaçu e que neste momento a empresa realiza um Estudo de Componente Quilombola no território de Jambuaçu, a fim de medir os impactos socioambientais do mineroduto da empresa. A nota da empresa diz ainda que toda e qualquer ação realizada durante a pandemia tem respeitado as orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e de outros órgãos de fiscalização.  

Raimundo Magno, que mantém frequente contato com as comunidades de Jambuaçu por meio da Malungu, diz,no entanto, que os estudos mencionados pela Hydro ainda não foram iniciados e que, no momento, a empresa se encontra negociando com as comunidades os termos e o formato em que os estudos serão realizados.

Segundo o observatório Quilombos Sem Covid-19, uma parceria entre o Instituto Socioambiental (ISA) e a Conaq, até o dia 22 de março o Brasil somava 5.059 casos confirmados de Covid-19 entre quilombolas e 223 óbitos. No Pará, estado com o maior número de vítimas fatais entre remanescentes de quilombos, até a mesma data registrava 2.352 casos confirmados da doença e 75 mortes, segundo a Malungu em parceria com Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa).

Veja o mini documentário.

Imagem das obras como estradas e torres de eletricidade no território quilombola em Moju, nordeste do Pará (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real)

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