“Nova Transamazônica”: reconstrução da BR-319 pode reviver tragédia socioambiental

Na rodovia que liga Manaus a Porto Velho, lideranças já flagram grilagem de terras e indígenas temem genocídio

Murilo Pajolla, Brasil de Fato

Símbolo do fracasso do projeto de integração conduzido pela ditadura militar, a BR-319 é a única ligação por terra de Manaus (AM) ao restante do Brasil, via Porto Velho (RO). Dos 885 km inaugurados em 1976 e que cortam um dos blocos mais preservados da floresta amazônica, cerca de 450 não estão asfaltados.

A dificuldade de locomoção desacelera a chegada do “arco do desmatamento” à região, mas o projeto de reconstrução da rodovia tem agido como catalisador de atividades ilegais.

Na busca de uma Rodovia Transamazônica para chamar de sua, o governo de Jair Bolsonaro (sem partido) coloca indígenas e comunidades tradicionais na mira de invasores, sob a antiga promessa de desenvolvimento econômico.

Sem a fiscalização efetiva dos órgão federais, o asfaltamento pode permitir o avanço da fronteira agrícola e causar danos socioambientais irreparáveis.

5,4% da Amazônia Legal

A zona de influência da BR-319 se estende por 270 mil km² entre os rios Purus e Madeira. A área corresponde a 5,4% do território da Amazônia Legal e abriga 25 Unidades de Conservação (UCs) federais e estaduais no Amazonas e em Rondônia, de acordo com o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).

No censo de 2010, o IBGE contabilizou que quase 10 mil pessoas viviam no interior das UCs e 80 mil habitavam a faixa de 10 km nos seus entornos. Juntas, as unidades formam um extenso corredor de biodiversidade, preservando espécies em extinção e outras existentes apenas na região.

Enquanto a porção Sul da porção de terra entre os dois rios é uma das mais degradadas do país, a parte Norte ainda registra pouca presença humana. É o caso do curso Médio rio Purus, onde vivem os indígenas do povo Apurinã, que denunciam o prenúncio de um genocídio.

Obras preliminares já causam impacto

Enquanto dá sequência à licitação para asfaltar a via, o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), ligado ao Ministério da Infraestrutura, promove desde 2017 a manutenção periódica do segmento conhecido como “trecho do meio”, entre os quilômetros 250 e 655, com serviços de limpeza, retirada de atoleiros e o conserto de pontes de madeira.

“Apenas a manutenção da rodovia já tem causado grande desmatamento, grilagem de terras e ramais ilegais, que têm invadido as terras indígenas”, denunciou o cacique e presidente da Federação das Organizações e Comunidades Indígenas do Médio Purus (Focimp), Valdimiro Apurinã Faria, em uma carta assinada em agosto de 2020.

O documento alega que o Dnit desrespeita a convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e o decreto presidencial nº 5.051 de 2004, que estabelecem consulta prévia a indígenas afetados por empreendimentos, dando aos povos a prerrogativa de participar da elaboração ou até mesmo vetar projetos.

A Rede Brasileira de Ecologia e Transportes (REET) protocolou um pedido de audiência pública, suspensa pelo governo federal em razão da pandemia de coronavírus.

“A tentativa de acelerar as obras durante a pandemia sem consultar o povo Apurinã e outros povos indígenas [é] uma grande violação dos direitos humanos e um genocídio”, denuncia a carta assinada pelo presidente da Focimp. 

A reportagem do Brasil de Fato questionou o Dnit sobre as acusações feitas pelo cacique, mas não obteve resposta.

Mesmo vivendo a mais de 50 km da BR-319, os Apurinã já sentem na pele as primeiras consequências da pavimentação. A expectativa da chegada do asfalto estimula a atuação de grileiros vindos de outras cidades.

Um ramal com 18 km beira os limites da Terra Indígena (TI) Apurinã do Igarapé São João, demarcada e homologada. O caminho foi aberto com o objetivo de ligar o município de Tapauá, às margens do rio Purus, até a rodovia.

O empreendimento abriu um caminho ilegal por dentro da floresta e chegou a ser interditado por uma operação da Fundação Nacional do Índio (Funai), Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e Polícia Ambiental em 2014, mas ganhou força dois anos depois com o apoio de lideranças políticas locais.

Sem a instalação de bueiros, a construção aterrou um igarapé que abastece e alimenta cerca de 80 moradores das aldeias São João e Taquarizinho.

“Hoje não tem mais caça perto da aldeia. Já está afetando a cultura Apurinã. Ocorrem muitas invasões de caçadores na aldeia São João, que fica perto da cidade de Tapauá. O igarapé São João já está sujo de barro. Esse igarapé é a única água que passa pela aldeia”, lamenta Valdimiro Apurinã Faria.

O perigo se estende a outros corpos hídricos cujas cabeceiras são atravessadas pela BR-319, concluída quando estudos prévios de impacto ambiental ainda não eram exigidos legalmente.

Um exemplo pode ser observado no Parque Nacional Nascentes do Lago Jari, localizado entre a TI Apurinã do Igarapé Tauamirim e a BR-319.

“Das nascentes dos rios que drenam o parque, as que cortam a BR-319 estão com sua fisiografia comprometida pela construção de aterros e obstrução dos canais por restos de estrada”, lê-se no Plano de Manejo do Parque, elaborado pelo ICMBio como parte do Plano de Proteção e Implementação das Unidades de Conservação às margens da rovodia.

Segundo o IBGE, quase 70% da população das unidades de conservação e entorno capta água diretamente dos rios e igarapés. A pesca é uma das principais fontes de renda e alimentação. De acordo com o ICMBio, dez espécies de peixes presentes no interflúvio dos rios Purus-Madeira estão ameaçadas ou quase ameaçadas de extinção.

Grileiros abrem ramais ilegais

As terras dos Apurinã ficam no município amazonense de Tapauá. A 170 quilômetros em linha reta ao Sudoeste está Canutama, com população estimada de 15 mil pessoas. Os municípios são interligadas pelo sinuoso rio Purus, último grande afluente da margem direita do Amazonas antes do encontro com o Rio Negro.

Na pequena comunidade ribeirinha de Belo Monte, a duas horas de voadeira da área urbana de Canutama, forasteiros buscam o apoio da população para a abertura de uma estrada clandestina até a BR-319, na altura da Vila da Realidade, região que cresceu assustadoramente em função do agronegócio.

O trajeto só seria possível passando por dentro da Floresta Estadual de Tapauá e da Floresta Nacional Balata-Tufari. A promessa dos grileiros é uma história antiga contada aos amazonenses: a de que a construção traria desenvolvimento econômico.

Na comunidade Belo Monte, a abertura do ramal foi interrompida antes de chegar às reservas ambientais porque uma das máquinas apresentou defeito.

“Ao longo dos lados desses ramais, eles vão abrindo e fazendo o cadastramento rural. Os grileiros trazem alguém que finge ser do Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária], que vai distribuindo esse documento. A pessoa que recebe pensa que é um título [de propriedade], sendo que tudo isso está em cima de terra da União”, explica o padre Éder Carvalho Assunção, diretor da Cáritas, pároco da prelazia de Lábrea e morador da comunidade Belo Monte.

Em outra comunidade próxima, no rio Jacaré, em Tapauá, os mesmos grileiros foram vistos demarcando com GPS a futura passagem da estrada.

“A experiência mostra que toda estrada, principalmente as BRs, traz o que alguns chamam de desenvolvimento, mas eu chamo de regresso. É um aparente desenvolvimento simplesmente pelo fato de auxiliar a locomoção entre as capitais. Porém, onde a estrada passa, a devastação passa”, afirma Assunção.

“Um exemplo foi o povo Juma, também no Médio Purus. Eles já haviam vivido um massacre na década de 60 e depois tiveram todo o contato com o processo de abertura da Transamazônica”.

Sobreviventes de um genocídio continuado, os Juma são um povo indígena à beira da extinção. No século XVIII, eram cerca de 15 mil indivíduos. Atualmente, os indígenas remanescentes vivem o luto pelo ancião Aruká, morto vítima da covid-19 em fevereiro deste ano.

A resistência dramática à ação colonizadora foi recompensada em 2004 com a homologação da TI Juma, cuja integridade também é posta em risco com a pavimentação da BR-319.

Promessas enganosas 

O slogan “terras sem homens para homens sem terra” marcou o Plano de Integração Nacional (PNI) do presidente Emílio Garrastazu Médici nos anos 70, responsável pelo intenso fluxo migratório de regiões castigadas pela seca no Nordeste e pela mecanização da agricultura no Sul em direção à Amazônia.

A frase omitia propositalmente a presença de populações já fragilizadas, na região do Médio Purus, pelos ciclos de extração da borracha.

Quem vive em meio à pobreza provocada por séculos de saque e degradação pode até se deixar convencer pela possibilidade de progresso econômico. Pequenos agricultores da região, por exemplo, têm dificuldade de escoar a produção, por causa do gargalo no transporte.

Para o padre Éder Assunção, entretanto, a história mostra, com raras exceções, que se trata de um promessa enganosa, quase sempre traída pela dinâmica do latifúndio, que transforma os modos de vida locais e empurra as populações para as periferias dos centros urbanos.

“A cultura do gado e da soja não faz parte do referencial do amazonense. Você vê abertamente: os donos das grandes propriedades são pessoas do Sul do Brasil, gente alta de olho azul e cabelo branco, além das empresas multinacionais. E onde está o indígena hoje? Ele está na periferia, está no lixão em Porto Velho ou em uma periferia em Manaus”, observa o pároco, que também atua junto à Comissão Pastoral da Terra (CPT) e ao Conselho Missionário Indígena (Cimi).

Desmatamento vem pelo asfalto

O isolamento geográfico da região é um dos fatores que garante a preservação da floresta e das comunidades tradicionais. A dependência das hidrovias desencoraja o transporte de madeira ilegal, pois facilita a fiscalização das embarcações.

“Quando começou realmente essa fiscalização no rio, a atividade parou porque não tinha como passar escondido com as balsas de madeira e chegar lá a Manaus, até as grandes serrarias, para depois exportar de maneira clandestina todo esse material”, pontua padre Éder.

“Onde só se chega pelo rio, nós temos a preservação de lugares intactos, fartura de peixes e de caça. Há pessoas em ‘pobreza’, mas também há uma dignidade de vida e garantia de segurança alimentar”.

Na contramão das lideranças locais, a elite econômica sonha em ver a BR-319 totalmente coberta de asfalto, tal como ela foi inaugurada em 1976, quando era possível fazer o trajeto Porto Velho-Manaus em 12 horas. Sem manutenção, a rodovia se tornou praticamente intrafegável em 1988.

Representantes da Federação das Indústrias do Estado de Rondônia (Fiero), Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de Rondônia (Fecomércio), Federação das Indústrias do Estado do Amazonas (FIEAM) e da Superintendência da Zona Franca de Manaus, além de inúmeros membros da classe política já se manifestaram a favor da reconstrução da BR-3019.

A expectativa é que os próximos capítulos do projeto sejam definidos pelo Ibama, que devolveu o Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/ RIMA) protocolado em agosto de 2020 pelo Dnit pedindo complementações.

“Sou totalmente contra a pavimentação. O Ibama sabe que não dá, o ICMBio sabe que não dá, mas existe toda essa pressão. Quiseram agora instrumentalizar essa questão da falta de oxigênio em Manaus para dizer que o problema é a BR. Isso é conversa para boi dormir. O que eles realmente querem é, como diz o ministro do Meio Ambiente, abrir a porteira para o agronegócio chegar. E onde ele chega é destruição”, assegura Éder Carvalho Assunção.

Edição: Poliana Dallabrida

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