A guerra dos mundos à brasileira: “Precisamos abandonar a pretensão de pautas unificadas”. Entrevista especial com Marcos de Almeida Matos

Os partidos de esquerda e centro-esquerda ainda “não foram capazes de compreender plenamente a importância das lutas dos povos da floresta, das populações tradicionais e de ambientalistas”, diz o pesquisador

Por: Patricia Fachin, em IHU On-Line

“A aliança, como se sabe em antropologia, é sempre baseada nas diferenças, ela é fruto de uma articulação de perspectivas necessariamente diferentes. Por isso precisamos abandonar a pretensão de pautas unificadas e horizontes comuns, salvo aqueles que são adotados taticamente”, afirma Marcos de Almeida Matos, doutor em Antropologia, ao comentar possíveis alianças sociais para superar as divergências políticas e sociais, a “guerra dos mundos”, conceito empregado pelo antropólogo e filósofo da ciência Bruno Latour.

Nesta entrevista, concedida por e-mail para o Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Marcos Matos desenvolve alguns pontos apresentados em sua palestra “Políticas da natureza: Como associar as ciências à democracia”, ministrada recentemente no Ciclo de Estudos A (in)existência de um mundo comum. Pensamento vivo e mudanças possíveis à luz de Bruno Latour, promovido pelo IHU.

Entre eles, explica como a obra de Latour pode ser utilizada como uma ferramenta para entendermos a cena contemporânea e quais são seus limites para solucionar alguns dos problemas políticos brasileiros. “Um dos limites que percebo mais claramente nas propostas de Latour diz respeito à postulação de um espaço parlamentar ou representativo como condição de possibilidade para a saída dessas relações de violência, como se esse espaço fosse de um tipo diferente dessas relações. Além disso, ele preserva, como o horizonte ou o resultado das negociações nesse espaço, a construção de um ‘mundo comum’, sugerindo por vezes que este seria algo como um sucedâneo do mundo globalizado capitalista”. E acrescenta: “Foi por isso que eu afirmei, em minha fala no Ciclo de Estudos, que Latour ‘permanece um herdeiro orgulhoso do processo burocrático decisório de administração da vida’”.

A seguir, Matos reflete sobre um dos principais conflitos do Brasil, a disputa territorial e pela concentração fundiária. “O maior inimigo dos povos das florestas”, assegura, “é sem dúvida o latifúndio e os seus proprietários (sejam CPFs, sejam CNPJs). (…) Temos no Brasil séculos de lutas de povos das florestas, povos do cerrado, do sertão e da mata atlântica, comunidades pesqueiras, quilombos, povos indígenas e outros que jamais separaram as suas lutas do imperativo de convivência com as comunidades de seres extra-humanos (bichos, plantas, espíritos donos de lugares etc.). E adverte: “Nada nos dispensará de repensar os rumos da esquerda em nosso país. Precisamos reaprender a nos colocar em movimento, para, desde dentro desses movimentos sociais, dizer com bastante firmeza que não é mais possível pensar em ‘desenvolvimento’ ou ‘progresso’, dizer que não há democracia sem direitos indígenas integralmente garantidos, e que não há liberdade se há qualquer forma de discriminação racial ou sexual e de gênero. A esquerda é ecológica e antirracista, ou não é”.

Marcos de Almeida Matos é graduado e mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG e doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. É indigenista e leciona na Universidade Federal do Acre – UFAC.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O senhor se refere à obra de Latour como uma “ferramenta para entendermos a cena contemporânea”. Disse ainda, em sua palestra, que ele apresenta esquemas úteis, mas eles vêm “embrulhados num tom de branquitude engravatada, administrativa e, em específico, em Políticas da Natureza, eles vêm com uma certa dose de habermasianismo”. A partir da interpretação, quais são os limites e possibilidades do modo como Latour pensa a relação entre ciências e democracia e por que, na sua avaliação, o discurso a favor da ciência – tão frequente na pandemia – é insuficiente para resolver os problemas contemporâneos?

Marcos de Almeida Matos – Partindo de uma inovadora etnografia das ciências, Bruno Latour mostrou como uma imagem pública da Ciência (com C maiúsculo) é composta e recrutada como uma alavanca para silenciar ou simplificar as controvérsias sobre os modos de composição do mundo comum. Essa imagem da Ciência como capaz de resolver disputas políticas, a imagem do especialista que conhece a verdade sem mediações, e que é chamado a descer de seu laboratório para dar a palavra final e inquestionável sobre assuntos que assombram a opinião pública, projeta sobre as ciências (com c minúsculo e sempre no plural) a máscara da Ciência, e escamoteia que por trás de todo fato científico existe um laborioso trabalho de composição e negociação que envolve atores de diversas escalas e naturezas (humanos, institucionais, extra-humanos etc.).

Tentar resolver qualquer controvérsia (sempre política) apelando para o que supostamente diz a Ciência é então uma solução sempre muito instável, pois ela silencia e abrevia de maneira brusca e autoritária um processo complicado de disputas e negociações. Aqueles que foram dessa forma silenciados retornarão sempre que tiverem chance, e cada vez mais violentamente, pois se sentirão injustiçados. O modo como o bolsonarismo recruta a imaginação popular numa batalha contra as Universidades e as instituições públicas de produção de conhecimento (como a Fiocruz) indica que precisamos ser capazes de produzir outra imagem pública das ciências, que não se apoie na oposição entre Ciência e “fake news” (na qual as “pessoas comuns” são sempre representadas como massa de manobra ignorante). É preciso perceber que essa imagem da Ciência foi construída sobre os escombros da inteligência coletiva de várias sociedades (por exemplo, na perseguição contra o “curandeirismo” ou “charlatanismo” de curadores e parteiras em benefício da medicina alopática e autorizada por Conselhos), e que aqueles que agora vivem nessas ruínas podem muito bem preferir apoiar quem promete lhes devolver o direito de pensar e de conhecer por si mesmos, autorizando assim um acesso sem mediações à verdade (o que se tem chamado de “eu-pistemologia”), no lugar de restituir a autoridade combalida e paradoxalmente ultramediada dos cientistas (acusados agora como privilegiados e aproveitadores).

Latour mostra ainda que esse papel que é atribuído às ciências nas sociedades que se pensam como “Modernas” está diretamente ligado à produção de uma Natureza (novamente, com maiúscula e no singular) exterior, fonte de recursos e objeto passivo do conhecimento e da manipulação tecnológica. Essa imagem da Natureza como cenário passivo, mas simultaneamente como base sobre a qual se constrói uma Ciência colocada como árbitro final de processos de disputa social, se esfacela progressivamente no chamado “Antropoceno”, definido justamente como uma época geológica na qual os efeitos e rastros da ação humana ganham a proporção e as consequências de fatos naturais, alterando e substituindo paisagens antes “naturais”, e interferindo em suas dinâmicas.

Todas essas questões às quais apenas aludi brevemente (e ainda tantas outras, que dizem respeito à fabricação dos fatos jurídicos, às traduções e ao cosmopolitismo religioso em um mundo pós-secular, por exemplo) são tornadas visíveis pela obra de Bruno Latour com uma clareza ímpar (o “pharmakon” da simplicidade analítica). É por isso que eu afirmei ser a obra dele uma ferramenta imprescindível para a compreensão dessa confusão terrível em que estamos todos metidos.

Pensar o presente
A parte descritiva ou diagnóstica da obra dele é de enorme valia para pensarmos o presente (ou a nossa “guerra de mundos”, como ele diz). Do meu ponto de vista, os incômodos começam com a parte mais propositiva, pois Latour se coloca explicitamente como um “herdeiro orgulhoso” da ambição de “se pensar como universal”, e propõe retomar o processo de construção de uma “nação do universal” (as expressões são da obra Políticas da Natureza, de 1999), lançando mão de protocolos de negociação e de representação política que são como que decalcados dos sistemas políticos parlamentares das democracias ocidentais europeias. Como ele pode ser tão perspicaz ao denunciar os “double binds” das imagens das ciências e da natureza, e mesmo da política, mas ainda assim propor com alguma boa-fé uma extensão tão radical da idealização da política representativa liberal? A proposta do “parlamento das coisas” e também suas derivações nos livros mais recentes (pensemos por exemplo no último capítulo de Face à Gaïa, de 2015, chamado justamente de “Como governar os territórios (naturais) em luta?”) se apresentam como um decalque explícito das formas da política que são profundamente solidárias ao colonialismo que nos trouxe ao presente estado de catástrofe ambiental.

Nesse ponto é impossível não lembrar de Aimé Césaire, que disse uma vez que “a Europa é indefensável”, pois é incapaz de oferecer qualquer caminho para a solução dos problemas que ela mesmo cria. Césaire se referia principalmente a dois problemas: o “problema do proletariado” e o “problema colonial” (as formulações são dele). Apoiados numa profunda observação de Lévi-Strauss (ele mesmo um herdeiro de Marx), diríamos que esses dois problemas são na verdade um só: “a relação entre capitalista e proletário não é senão um caso particular da relação entre colonizador e colonizado”. Para esse problema, a Europa não nos oferece solução (ainda que nos ofereça ferramentas úteis para identificá-lo).

IHU On-Line – Por que, na sua avaliação, Latour “permanece um herdeiro orgulhoso do processo burocrático decisório de administração da vida”? Como a obra dele auxilia a pensar os problemas que vivemos no Brasil hoje, como as lutas de apropriação radical e violenta e, de outro lado, quais os seus limites quando se trata de analisar a realidade brasileira?

Marcos de Almeida Matos – Em 1984, Bruno Latour publicou um instigante ensaio chamado “Reflexão sobre o culto moderno dos deuses fe(i)tiches” (a tradução brasileira é de 2002), no qual argumenta que a ideia de “crença” (em sua oposição implícita ao “saber”) não identifica um estado mental, mas é “fruto da relação entre povos”. Ele indica assim que a colonização funciona produzindo uma assimetria entre aqueles que sabem e aqueles que acreditam, uma assimetria que serve à subordinação violenta dos segundos aos primeiros. Se “nós” somos os que “sabemos” (enquanto “os outros” apenas “acreditam”), isso justifica a nossa pretensão de apropriação e administração das terras assim conquistadas. A epistemologia justifica e continua por outros meios a relação de tomada de terra e o genocídio colonial. Essa análise de Latour será melhor desenvolvida em “Jamais Fomos Modernos”, de 1991. Ali ele vai mostrar, entre outras coisas, como as ideias de “avanço” e “atraso”, de “desenvolvimento” ou de “modernização”, funcionam também segundo essa dinâmica, impondo a grande parte dos coletivos, com os quais deveríamos compor mundos, um estado supostamente pretérito de existência. Essas formas sociais distintas das que se compreendem como “modernas” estariam assim destinadas a serem substituídas, e o seu horizonte inapelável é o desaparecimento.

A relação que se estabelece entre os atores coloniais brasileiros e os povos cujos territórios foram invadidos pode muito bem ser compreendida com a ajuda dessas formulações. Aqui onde vivo, no Acre, vemos dia sim e dia também políticos, representantes de federações comerciais ou líderes do agronegócio advogarem em jornais e palanques a necessidade do progresso e do desenvolvimento para o Estado – pressupondo assim que os povos da floresta deveriam deixar de sê-lo para se proletarizar nas periferias das cidades. A violência da apropriação das terras públicas, a transformação de florestas em latifúndio e os movimentos correlatos de flexibilização da legislação ambiental e da regularização fundiária vêm todos embrulhados pela “modernização” e pelo “desenvolvimento”, e pela necessidade implícita de substituir as formas de vida “arcaicas” e “atrasadas”.

Limites
Novamente, um dos limites que percebo mais claramente nas propostas de Latour diz respeito à postulação de um espaço parlamentar ou representativo como condição de possibilidade para a saída dessas relações de violência, como se esse espaço fosse de um tipo diferente dessas relações. Além disso, ele preserva, como o horizonte ou o resultado das negociações nesse espaço, a construção de um “mundo comum”, sugerindo por vezes que este seria algo como um sucedâneo do mundo globalizado capitalista. Foi por isso que eu afirmei, em minha fala no Ciclo de Estudos, que Latour “permanece um herdeiro orgulhoso do processo burocrático decisório de administração da vida”.

É preciso muita violência (e depois muito cinismo para ocultá-la) para fazer com que os diferentes povos da floresta (humanos e extra-humanos) compareçam numa ágora representados por delegações ou experts, falando uma linguagem compatível com os termos nos quais se negocia nas Conferência das Partes – COPs ou em processos políticos clássicos de representação. Que lideranças indígenas (por exemplo) se vejam obrigadas a fazer isso indica que muito já se perdeu no caminho. E que esse seja (relativamente) o nosso estado de coisas atual não nos deveria dispensar do esforço para pensar outras formas de política.

Existem muitos outros modos de relação entre diferentes povos, que não pressupõem linguagens comuns ou formas de representação (“para nós a política é outra coisa”, disse uma vez Davi Kopenawa). Formas de política não negociais, que mais se aproximam de disputas esportivas, desafios repentistas ou duelos de oratória, e que produzem relações cismogênicas (i.e., relações baseadas e produtoras da diferença, para usar de um jeito meio criativo o conceito de [Gregory] Bateson), ao invés de produzir horizontes comuns ou protocolos negociais ecumênicos. Acho curioso que a “proposição cosmopolítica” de [Isabelle] Stengers, interlocutora muito próxima de Latour, apresenta uma imagem totalmente diferente desses problemas, uma imagem que desarma ou no mínimo nos torna muito mais sensíveis para as violências pressupostas nos processos de negociação liberais, mas que parece não encontrar muito eco nas formulações de Latour ao redor do bordão da “cosmopolítica”.

IHU On-Line – Na palestra, o senhor disse que, no Brasil, a questão ambiental é a questão fundiária e a questão fundiária é a questão ambiental. Pode desenvolver essa ideia e explicar como essas duas questões estão inter-relacionadas no caso brasileiro?

Marcos de Almeida Matos – Basta olhar para os índices anuais de desmatamento divulgados pelo Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Brasileira por Satélite – Prodes (do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – Inpe) para constatar que as duas categorias fundiárias que mais desmatam ano após ano são as terras particulares e os assentamentos rurais. As taxas de desmatamento e a degradação florestal em unidades de conservação são bem menores, e as das terras indígenas são ainda menos significativas. Isso indica que a apropriação privada da terra impele o desmatamento (pois boa parte do desmatamento em assentamentos rurais está ligado também à necessidade de comprovação de benfeitorias e à “valorização” dos lotes para venda irregular).

Degradação ambiental impulsionada pela apropriação e concentração fundiária
Desde 2019 vemos um aumento muito significativo do desmatamento em terras públicas ou não designadas, motivado pelas sucessivas promessas e tentativas do governo e de sua base parlamentar de apoio (ou vice-versa, de uma base parlamentar e de seu “governo de apoio”) de alterar ou enfraquecer a já muito flexível Lei n.11.952/2009 (que “dispõe sobre a regularização fundiária das ocupações incidentes em terras situadas em áreas da União, no âmbito da Amazônia Legal”). Vejam, por exemplo, o PL 510/2021 em tramitação no Senado (na verdade uma versão da MP 910/2019, a “MP da grilagem”), que flexibiliza radicalmente os critérios para a regularização de ocupações em terras públicas, estende a simplificação para imóveis bem menores, e fragiliza completamente as salvaguardas ambientais.

O desmatamento e a degradação ambiental no Brasil são impulsionados por essas dinâmicas de apropriação e de concentração fundiária. Essas terras cujo roubo violento é legitimado pelo Estado são a base de formas muito destrutivas de acumulação, através da mineração (vejam o que a Vale está fazendo em Minas Gerais ou no Pará, por exemplo), do monocultivo (vejam o que acontece no “Matopiba”), da pecuária… Por aqui vemos hoje a tentativa de instituir, entre o norte de Rondônia, o sul do Amazonas e parte do Acre, uma “Zona Especial para o Desenvolvimento Agropecuário”, sinistramente chamada “Amacro” (a transformação de territórios riquíssimos em diversidade socioambiental em áreas de monocultivo e latifúndio começa pelo acrônimo tecnocrata inspirado no Matopiba).

O maior inimigo dos povos das florestas (i.e., gentes, bichos, plantas, espíritos, águas…) no Brasil é sem dúvida o latifúndio e os seus proprietários (sejam CPFs, sejam CNPJs). E isso desde sempre e num crescendo, do “Sesmarialismo” à Lei de Terras de 1850, e além – ou, como em uma conhecida expressão da sociologia nacional, da escravidão do homem ao cativeiro da terra. É preciso perceber com clareza que as nossas “liberdades democráticas”, ou melhor, o nosso ideal mesmo de liberdade tal como tem se apresentado no horizonte político hegemônico (especialmente agora com a hegemonia da extrema direita), projeta uma liberdade movida a gasolina e baseada no latifúndio. A ideia de liberdade que alimenta as utopias correntes é insustentável: a escravidão é a sua condição de possibilidade, seja a escravidão dos outros povos (humanos e não humanos) e das outras pessoas (no trabalho generativo doméstico e não remunerado das mulheres), seja a escravidão da terra, sejam as máquinas movidas a combustão altamente poluente dos combustíveis fósseis – esses “escravos termodinâmicos” (para usar uma expressão do antropólogo acreano Mauro Almeida).

IHU On-Line – A natureza, a agenda ambiental e a questão fundiária têm sido uma preocupação da sociedade civil brasileira e das instituições governamentais? Até que ponto, em que sentido e visando quais interesses?

Marcos de Almeida Matos – A natureza, a agenda ambiental e a questão fundiária estão sempre no centro do debate político brasileiro, mesmo quando as pessoas não percebem essas questões ali. Uma outra formulação muito pertinente de Latour (e de outres também) nos mostra que o que se entende por “Antropoceno” significa entre outras coisas a impossibilidade de separar qualquer ato político de suas consequências “ambientais” – e aqui as aspas indicam que aquilo que era assim chamado não pode mais sê-lo, i.e., que a natureza não é mais mero (ou meio) “ambiente”, mas toma parte da cena entre outros conjuntos de atores políticos, cujas ações são plenas de consequências para as diversas comunidades.

Isso posto, temos no Brasil séculos de lutas de povos das florestas, povos do cerrado, do sertão e da mata atlântica, comunidades pesqueiras, quilombos, povos indígenas e outros que jamais separaram as suas lutas do imperativo de convivência com as comunidades de seres extra-humanos (bichos, plantas, espíritos donos de lugares etc.). Alguns desses coletivos compuseram ou se aliaram a uma rica tradição de movimentos sociais organizados, ambientalistas, indígenas e indigenistas, que articulam a luta pelos direitos e pelas condições de bem viver de populações tradicionais. É preciso buscar (re)conhecer essas histórias, que estão espalhadas por todo o país, em todas as regiões e ecossistemas. No campo indígena e indigenista, por exemplo, temos instituições que se gestaram desde o final da década de 1970 e que hoje possuem destacada ação nacional em defesa dos direitos indígenas e da integridade de seus territórios ocupados tradicionalmente. O que se pode dizer, entretanto, é que essas lutas ainda não participam o suficiente do imaginário nacional produzido pelas grandes redes de televisão e pelos principais veículos da mídia corporativa nacional. Mas isso está mudando, por pressão e força das ações desses movimentos indígenas, indigenistas e ambientalistas.

Agenda prioritária do Estado brasileiro
Quanto ao governo, desde o golpe parlamentar de 2016, o Poder resolveu tirar novamente a sua máscara conciliatória e se assumir muito explicitamente como uma máfia de grileiros e vendilhões de terra, minério e outros recursos naturais para grandes corporações. Com Temer, tivemos, em um curtíssimo espaço de tempo, a MP que anistiava grileiros na Amazônia (a MP 759/2016); a flexibilização no registro e autorização de uso de agrotóxicos que são proibidos em vários países e a isenção fiscal para a sua aquisição; o esforço persistente do governo para a aprovação de mais um conjunto de flexibilizações do Código Florestal; a redução de áreas protegidas; diversas iniciativas para ampliar as possibilidades de venda de terras para estrangeiros; entre outros saques.

Visto sob essa perspectiva, o governo Bolsonaro é a continuação desse movimento, em um processo ainda mais radical de eliminação de qualquer escrúpulo ou preocupação com o capenga sistema de check and balances de nossa suposta democracia. Além do já referido PL 510/2021, que conta com toda a força do governo para a sua aprovação (e por força aqui entendemos também tudo o que é costumeiramente chamado de “toma lá dá cá”, incluindo aí o recém-descoberto “orçamento secreto”), causa muitíssima preocupação o PL 490/2007, que também faz parte da agenda comum prioritária do governo e da maioria parlamentar. O PL propõe modificações profundas nos direitos indígenas consagrados na Constituição, impedindo na prática a demarcação de terras indígenas, ao mesmo tempo que possibilita a abertura das terras já demarcadas para empreendimentos econômicos, arrendamentos para o agronegócio, construção de hidrelétricas e mineração, e outros. Além disso, são muitos os indícios que indicam a profunda cumplicidade desse governo com as máfias madeireiras e do garimpo, além das já notórias relações com as milícias rurais e urbanas.

IHU On-Line – O senhor também mostrou um trecho de um documentário sobre Chico Mendes, no qual o ex-presidente Lula fez um pronunciamento, nos anos 1980, dizendo que Chico Mendes conseguiu unir duas lutas: a do direito dos trabalhadores e da preservação do meio ambiente. Na sequência, o senhor disse: “não me entendam mal, mas vocês sabem o quanto regredimos de 2004 para cá”. A que se refere especificamente? Como a “esquerda” tem se posicionado sobre o debate ambiental e suas implicações sociais no Brasil?

Marcos de Almeida Matos – No trecho do filme que assistimos, Fruto da Aliança dos Povos da Floresta (de Siã Huni Kuin), em seu pronunciamento no enterro de Chico Mendes [conferir em 16:55, no vídeo abaixo], Lula diz que Chico soube unir a luta pelo “direito ao trabalho” com a “luta pela defesa do meio ambiente”, porque preservar o “meio ambiente, as árvores, castanheiras e seringueiras” seria preservar o “direito do feijão e do arroz de cada criança dessa região” (as expressões são do próprio ex-presidente). Na minha fala, procurei apontar que esse momento impressionante (cuja importância não deveria jamais ser menosprezada) indicava não obstante certo limite da atuação dos grandes partidos de esquerda e centro-esquerda no Brasil: eles não foram ainda capazes de compreender plenamente a importância das lutas dos povos da floresta, das populações tradicionais e de ambientalistas. Ao dizer que “preservar o meio ambiente” é preservar o “direito do arroz e do feijão de cada criança”, Lula propõe a equivalência entre a floresta e o mero sustento, e desconsidera que “botar um roçado” e cuidar dele na Amazônia (como em qualquer floresta) é muito mais do que levar para casa o arroz e o feijão: é entreter relações com seres vegetais e com paisagens, é conhecer o tempo e o clima, é viver na e com a floresta. Pode-se observar como a fala de Lula abre o espaço lógico-tradutório que dá pleno sentido ao tipo de negociação de compensação por danos ambientais que terminam justificando e autorizando grandes desastres, por exemplo.

Em certo sentido é muito fácil e cômodo cobrar isso anacronicamente de alguém cujo universo político se constituiu a partir dos movimentos operários de São Bernardo do Campo. Mas é plenamente legítimo cobrar isso de alguém que governou o país por oito anos, elegendo sua sucessora para governá-lo por mais oito (interrompidos). Os governos do PT (especialmente o primeiro mandato do presidente Lula) foram internamente muito heterogêneos e tiveram, ao menos no começo, a pretensão de conter dentro de si uma pluralidade de interesses, muitas vezes contraditórios – Lula chegou a falar que a escolha de seu vice na primeira eleição, vindo do setor patronal da indústria têxtil mineira, representava uma “aliança capital-trabalho”. Mas os interesses dos povos da floresta e populações tradicionais foram sempre sub-representados. Ao longo dos governos Lula, esses povos perderam todas as principais disputas que envolveram os grandes interesses de setores industriais ou minerários, do setor energético, das grandes construtoras ou do agronegócio. Jamais esqueceremos os importantes avanços no fortalecimento do Estado diante de algumas obrigações constitucionais assumidas pós-1988 (especialmente na universalização do atendimento básico de saúde e na educação pública e gratuita). Mas não esqueceremos tampouco as catástrofes ecológicas de Belo Monte, Santo Antônio e Jirau. Além disso, é necessário reconhecer também que aquele governo de conciliação a partir da centro-esquerda não quis ou não foi capaz de romper verdadeiramente com a lógica do latifúndio, ou com os poderosíssimos interesses extrativistas de conglomerados empresariais.

Estamos todos lutando para construir um caminho bom o suficiente para retirar do Planalto a máfia que se instalou por lá. A memória do que foi o primeiro mandato do governo Lula, com todos seus erros e acertos, pode nos animar taticamente. Precisamos derrotar o governo Bolsonaro, da forma como for possível (não temos tanta escolha). Mas nada nos dispensará de repensar os rumos da esquerda em nosso país. Precisamos reaprender a nos colocar em movimento, para, desde dentro desses movimentos sociais, dizer com bastante firmeza que não é mais possível pensar em “desenvolvimento” ou “progresso”, dizer que não há democracia sem direitos indígenas integralmente garantidos, e que não há liberdade se há qualquer forma de discriminação racial ou sexual e de gênero. A esquerda é ecológica e antirracista, ou não é.

IHU On-Line – Qual tem sido o papel da União Democrática Ruralista na política brasileira nas últimas décadas?

Marcos de Almeida Matos – Existem excelentes estudos que respondem a essa pergunta de maneira mais completa (entre outras fontes de informação, recomendo que as leitoras conheçam e apoiem o trabalho do “Observatório do Agronegócio no Brasil – De Olho nos Ruralistas”). O que eu poderia dizer aqui um tanto resumidamente é que a UDR foi mais uma organização fundada na esteira de outras associações patronais que já defendiam os interesses dos latifundiários diante da promulgação do Estatuto da Terra do governo Castelo Branco, por exemplo. Ela surgiu em 1985, advogando a inevitabilidade da reação violenta diante dos movimentos que lutavam por reforma agrária, e acusando a Igreja católica e as organizações de esquerda de fomentarem invasões. Na prática, além de dar vazão ao lobby contra a reforma agrária na assembleia constituinte de 1987, a UDR organizou e financiou a formação de milícias para a defesa de grandes fazendas, sendo responsável por inúmeros crimes e massacres no campo (sendo os assassinatos do padre Josimo e de Chico Mendes os mais notórios).

No filme de Siã Huni Kuin que assistimos no Ciclo de Estudos, Chico Mendes explicou: “É através da reserva extrativista que os seringueiros vão conquistar a sua verdadeira liberdade. Para nós, a reserva extrativista é a reforma agrária do seringueiro, é a forma de se contrapor à política violenta do latifúndio. Eu acho que a reserva extrativista não só melhora as condições de vida dos seringueiros, e dos índios e de todos os povos que moram na floresta, como também vai possibilitar melhores condições de vida para o povo da cidade, porque a proposta da reserva extrativista é uma forma que os seringueiros e os índios defendem de conservar a Amazônia, evitar que ela seja devastada, defender a Amazônia, e torná-la uma região economicamente viável não só pra nós que moramos na floresta, mas para os trabalhadores da cidade, para o país e para o mundo inteiro. Por outro lado, na medida em que a gente começa a organizar para conquistar as primeiras reservas extrativistas, os grandes fazendeiros se juntam e criam a UDR para lutar contra a nossa organização”.

Quando não conseguiu mais esconder as manchas de sangue, a UDR se dissolveu, no começo da década de 1990, infiltrando-se, por exemplo, na Confederação Nacional de Agricultura para obter uma face mais legítima e respeitável. Em certo sentido, a UDR nunca deixou de existir, mas ela foi oficialmente refundada por Nabhan Garcia, que é Secretário Especial de Assuntos Fundiários do presidente Bolsonaro. Com a ajuda dele, o governo tem sido muito bem-sucedido em pavimentar o avanço de pautas ruralistas na Câmara e no Senado, e em corroer e destruir por dentro o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – Incra e a Fundação Nacional do Índio – Funai, impossibilitando a demarcação de territórios quilombolas e terras indígenas, e promovendo alterações infralegais e administrativas que fazem esses órgãos trabalharem ao contrário de suas missões institucionais. Além disso, a atuação da UDR está umbilicalmente ligada à política armamentista do governo atual.

IHU On-Line – Como os movimentos populares têm se organizado para tratar dos seus territórios e como essas iniciativas podem auxiliar na construção de novas alianças? Que alianças sociais são possíveis para superar a guerra dos mundos, pensando particularmente no Brasil?

Marcos de Almeida Matos – Como afirmei anteriormente, os povos da floresta e as comunidades tradicionais jamais deixaram de lutar por seus territórios e seus modos de vida no Brasil. Existem muitas organizações, das mais diferentes escalas e naturezas, que batalham ativamente contra a política de morte do agronegócio e do extrativismo industrial e predatório no Brasil. Os movimentos e lideranças indígenas passam por um momento especialmente difícil, pois as comunidades e terras indígenas no Brasil estão sendo alvo de reiterados e concertados ataques. Sem a menor pretensão de ser exaustivo, diria que precisamos prestar muita atenção e apoiar a mobilização indígena contra a invasão de garimpeiros na Terra Indígena Yanomami e nas terras munduruku na região do rio Tapajós; a luta tupinambá e pataxó pelo reconhecimento da ocupação tradicional e demarcação das terras indígenas no sul da Bahia; a luta dos povos do Xingu contra os efeitos nefastos e devastadores da construção de Belo Monte; o trabalho de cuidado com a terra e com os “parentes desconfiados” (chamados pelos brancos de “índios em isolamento voluntário”) dos Manxineru do alto rio Iaco…

Ao mesmo tempo, associações transversais têm conectado a luta de diferentes povos, fortalecendo suas pautas e criando outros caminhos de ação, como é o caso do maravilhoso trabalho da Teia dos Povos, da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – Apib, ou da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira – Coiab. Em todos os cantos, em cada um dos estados e das regiões do país, existem associações e movimentos agindo e articulando formas não capitalistas de viver e de recompor o mundo. Temos a sorte de poder aprender com esses movimentos, mas é preciso aproveitar essa sorte, procurar saber, se aproximar com cuidado e respeito. Precisamos mesmo recompor a inteligência coletiva que nos foi roubada pelas “redes sociais”.

Essas aproximações produzirão inevitavelmente oportunidades de alianças. A aliança, como se sabe em antropologia, é sempre baseada nas diferenças, ela é fruto de uma articulação de perspectivas necessariamente diferentes. Por isso precisamos abandonar a pretensão de pautas unificadas e horizontes comuns, salvo aqueles que são adotados taticamente. Eu não saberia dizer se podemos ou se deveríamos pretender “superar” a presente “guerra dos mundos”. No sentido que Latour dá a essa expressão, certamente não. O que podemos fazer é criar as condições para que nos posicionemos com clareza diante dos outros, aliados ou inimigos.

Marcos Matos (centro), com Francisco Sto Manchineri e Douglas Manchineri (Foto: Arquivo pessoal)

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