R$ 200 mil por semana: quanto fatura um piloto de aeronaves no garimpo

Por Piero Locatelli e Guilherme Henrique, da Repórter Brasil, na Amazônia Real

Não é apenas a venda do ouro arrancado ilegalmente da Terra Indígena Yanomami que enche o bolso dos que estão ligados ao garimpo. Pilotos e donos de aeronaves que fazem o transporte até a área também vêm enriquecendo, chegando a faturar R$ 200 mil por semana, segundo a Polícia Federal. São eles os responsáveis pela logística que sustenta a atividade garimpeira na TI, onde as pequenas aeronaves são o principal meio de acesso, já que o território indígena é distante de estradas e cortado por rios pouco navegáveis. 

São incontáveis operadores que controlam o espaço aéreo desta TI com a certeza de impunidade – uma segurança obtida pela falta de fiscalização da atividade, pela ligação de garimpeiros com políticos e até mesmo por contratos com órgãos do governo. “Se estrangularmos a logística, o garimpo sofre um duro golpe”, afirma o procurador da República Alisson Marugal. “Mas a fiscalização, responsabilidade da Anac (Agência Nacional de Aviação Civil) e da FAB (Força Aérea Brasileira), é muito frágil”.

Denúncias feitas pelo Ministério Público Federal com base em três grandes operações de órgãos investigadores na última década revelam o grande número de pessoas envolvidas na logística ao garimpo ilegal: dos 87 denunciados, pelo menos 8 atuavam como pilotos e outros 31 na “equipe de apoio”, trabalhando como operadores de rádios clandestinas e fornecedores de insumos.

Para entender como funciona essa rede milionária – que viabiliza a destruição do território, de famílias e do modo de vida Yanomami –, basta ver o caso de Valdir José do Nascimento, conhecido como Japão. Descrito pelo MPF como o “maior fomentador da atividade garimpeira ilícita na Terra Indígena Yanomami”, ele é dono de pelo menos três aeronaves que seriam fretadas para garimpeiros. A PF apurou com um funcionário de Nascimento que somente em uma semana iriam ser realizados mais de 20 fretes para o garimpo. 

“Sabe-se que cada frete aéreo para o garimpo custa em média de 10 a 12 gramas de ouro (R$ 10 mil a 12 mil), assim somente em uma semana, a organização criminosa auferia lucro de cerca de R$ 200 mil”, aponta um dos inquéritos. 

Uma agenda apreendida nas investigações mostra que Nascimento operou ao menos 221 fretes para outros contraventores. Fretes que serviam não somente para escoar o ouro, mas também para transportar trabalhadores, alimentos, combustíveis e instrumentos – fundamentais para a extração do metal. Armas e munição também eram enviados e vendidos por Nascimento a outros garimpeiros da área.

Sua frota de aviões, porém, é ainda maior do que aquela que aparece nos inquéritos. Atualmente há oito aeronaves registradas em seu nome, segundo registros da Anac: sete monomotores da norte-americana Cessna (que comportam até quatro passageiros) e um bimotor da Embraer (nove passageiros). Todos datam da década de 1970, sendo que quatro deles possuem restrições de voos determinadas pela Anac.

A atuação de Nascimento extrapolava a atividade envolvendo o frete de aeronaves no garimpo. Ele também possuía balsas destinadas à extração de ouro e comandava uma rede de garimpeiros, fornecedores de combustível, de armas e munição. Segundo o MPF, seu grupo “apresenta um completo domínio vertical da atividade de garimpo”, controlando inclusive a sua venda para intermediários em Boa Vista. Nascimento foi investigado na operação Xawara, a primeira do MPF a esmiuçar o garimpo na Terra Indígena, em 2012. Nascimento não respondeu às ligações da reportagem.

Aeroporto de apoio ao garimpo opera sem restrições

A impunidade também permeia o trecho terrestre do apoio logístico, operado a partir da periferia de Boa Vista, onde fica o aeródromo Barra dos Ventos – principal ponto de partida e chegada dos voos com destino à TI. É lá que os proprietários abrigam as aeronaves e onde é feita a manutenção dos aviões e de onde partem os voos, segundo a Polícia Federal.

O aeroporto é controlado por Adão de Pinho Bezerra, cuja frota carrega, além de alimentação, combustível e maquinário, uma série de contravenções. Mesmo antes de suas aeronaves terem sido flagradas na logística do garimpo ilegal, Bezerra já havia sido denunciado pelo MPF-RR na operação Metástase por fraudes na contratação e licitação para táxis aéreos na Funasa, em 2007. 

Apesar das constatações da Polícia Federal, o aeroporto segue funcionando, segundo a Anac. Continua aberto, inclusive para o tráfego aéreo rumo ao garimpo ilegal. A reportagem tentou contato com Bezerra por meio de seu advogado, mas não obteve retorno. 

Casos como os de Nascimento e Bezerra deixam patente como as ações contra a logística do garimpo têm sido insuficientes. “Enfraquecer essa rede é um dos nossos pleitos mais fortes para acabar com garimpo ilegal,” diz o procurador Marugal. “A destruição das pistas, responsabilidade do Exército, da Polícia Federal e do Ibama, até acontece. Mas, pouco tempo depois, já há outra no lugar”. 

Para evitar esse cenário, os Yanomami pedem, além de um controle do espaço aéreo da TI, o  destacamento de agentes para impedir a abertura de novas pistas clandestinas – há atualmente 36 delas, usadas majoritariamente por garimpeiros. Em carta enviada à Polícia Federal, os indígenas afirmam que a simples destruição das pistas não é suficiente, e defendem que as aeronaves encontradas no garimpo sejam leiloadas, e até utilizadas pelo próprio governo na fiscalização da terra posteriormente. 

“A ação de desativar as pistas custa muito caro para o poder público e pouco para os criminosos, que em duas semanas as refazem”, afirma a Associação do Povo Yekuana do Brasil. “É imprescindível que as aeronaves e outros bens como caminhões utilizados na prática do crime sejam alienados, eles podiam estar à disposição da Funai, da Polícia Federal, do ICMbio e da Sesai”.

O geógrafo Estevão Benfica Senra e pesquisador da questão da exploração ilegal de ouro afirma que o “estrangulamento da logística” deveria ser uma prioridade no combate ao garimpo ilegal. Para Senra, o controle mais rígido passaria por dinamitar as pistas de pouso, a fiscalizar os aeródromos do estado e recadastrar e fiscalizar as aeronaves que passam no local.

“Com o estrangulamento, você criaria uma situação onde os próprios garimpeiros se voluntariam para sair da área”, diz Senra. Segundo ele, ainda que ocontrole logístico não impedisse toda a atividade do garimpo no local, reduziria o problema a uma escala mais controlável. O especialista enfatiza que a solução do problema passaria pela ação conjunta de diferentes órgãos do poder público, como Anac, Funai, o Ministério da Defesa e a Agência Nacional de Mineração. 

Procurada, a Funai afirmou que “reconhece a existência de pistas de pouso clandestinas localizadas em áreas indígenas, porém não pode afirmar com precisão esse número.” A fundação também disse que “apoia o Ministério da Defesa e a Polícia Federal nas ações de fiscalização de aeródromos clandestinos no interior das Terras Indígenas”. A Funai não respondeu a questionamentos sobre o número de operações e ações específicas com esse intuito.

A Anac afirmou que a agência “não conta com previsão legal que lhe confira poder para destruição ou interdição de pistas clandestinas”. Segundo a Anac, “as possíveis infrações identificadas que não sejam de competência da Agência, são denunciadas ao Ministério Público e às autoridades policiais para que sejam adotadas as medidas cabíveis.”

O Ministério da Defesa informou que “o Exército Brasileiro continua, atualmente, auxiliando a Funai na destruição de pistas clandestinas da TI Yanomami, quando solicitado por aquela Fundação.” A pasta não informou mais detalhes do trabalho para coibir pistas clandestinas e aeronaves suspeitas.

Proximidade com políticos

Inquéritos da Polícia Federal obtidos pela Repórter Brasil em parceria com a Amazônia Real por meio da Lei de Acesso à Informação revelam ainda a proximidade entre pilotos acusados de envolvimento com garimpeiros e políticos do Estado. 

Os agentes federais, por meio de interceptações telefônicas, encontraram ligações do piloto Thiago Cappelle para o deputado estadual Marcelo Cabral (MDB) e para Guilherme Campos, filho da ex-governadora de Roraima Suely Campos (PP).

A assessoria de Cabral informou que o contato com o piloto “foi estritamente comercial”. Segundo a nota enviada à reportagem, “o parlamentar precisou fazer voos em 2018, para cumprir compromissos de sua agenda em cidades e vilas interioranas distantes da capital, Boa Vista.” A reportagem não conseguiu contato com Guilherme Campos.

Além disso, Cappelle adquiriu a aeronave de prefixo PT-KEM do senador Chico Rodrigues (DEM-RR), que ficou famoso por ter sido pego pela Polícia Federal, em outubro do ano passado, tentando esconder R$ 33 mil na cueca, durante operação em sua casa, em Boa Vista. 

Esta aeronave, por certo, tem história para contar. Como antecipou a Repórter Brasil em março, o senador foi proprietário deste avião entre 13 de junho de 2011 a 28 de fevereiro de 2018, de acordo com certidão da Anac. E esta aeronave entrou diversas vezes no território entre 2018 e 2019. Primeiro, sob propriedade do senador, que também foi governador de Roraima e, depois, sob comando de Cappelle.

Chico Rodrigues escapou da mira dos órgãos investigadores, mas o mesmo não se pode dizer sobre o seu sobrinho, Leonardo Rodrigues Moreira. Segundo inquérito, uma das investigadas deu depoimento à Polícia Federal afirmando que Leonardo, que foi vereador de Boa Vista entre 2016 e 2020, era dono de garimpo na terra indígena. Ele não chegou a ser denunciado pelo MPF.

O senador Chico Rodrigues afirmou à Repórter Brasil, em março, que “à época dos fatos narrados, já havia transferido a posse [do avião]”, porém não enviou documentos que comprovassem a informação. Disse ainda, por meio de sua assessoria de imprensa, que no período em que de fato tinha a posse da aeronave, “não realizou qualquer voo em região de garimpo ilegal”.  

Contratos com o governo

Além da proximidade com políticos, pelo menos dois dos proprietários das aeronaves que sobrevoaram os garimpos têm contratos com órgãos do governo. Na prática, o dinheiro do contribuinte brasileiro termina remunerando quem atua e dá suporte logístico a garimpos ilegais.

Cappelle, denunciado pelo MPF de Roraima em 2020 por organização criminosa, é um desses casos. Documento obtido pela Repórter Brasil mostra que ele foi nomeado, em 2015, para cargo comissionado como piloto para a Casa Militar de Roraima. Procurados, Cappelle e a Secretaria de Segurança de Roraima não responderam aos e-mails da reportagem.

Outro proprietário de uma aeronave flagrada pelos indígenas sobrevoando áreas de garimpo é Rodrigo Martins de Mello, dono das empresas Voare e Icaraí Turismo Taxi Aéreo. Um levantamento dos indígenas aponta que um helicóptero de Mello realizava voos diários para a região de garimpo. 

A Icaraí Turismo Táxi Aéreo tem contratos firmados com o Ministério da Saúde para o atendimento em terras Yanomami durante a pandemia. A companhia recebeu R$ 24,3 milhões dos cofres públicos, sendo que R$ 17 milhões foram no governo Jair Bolsonaro, segundo o jornal O Globo. 

No ano passado, a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) abriu um processo para apurar possíveis irregularidades cometidas pela Icaraí Turismo Táxi Aéreo. Desde 17 de junho de 2020, a empresa está proibida de operar, por decisão da Anac, e mesmo assim a companhia seguiu transportando indígenas e equipes dos Dseis, segundo denúncia de O Globo. 

O Ministério da Saúde afirmou que “todos os contratos seguem rigorosamente a legislação e eventuais irregularidades devem ser investigadas pelas autoridades policiais.” Já a Icaraí Turismo Taxi Aéreo não respondeu à reportagem.

A suspeita da Polícia Federal e do MPF é a de que as aeronaves de Mello sejam fornecedoras do esquema de Pedro Emiliano Garcia, o Pedro Prancheta, condenado por genocídio de Yanomami na década de 1990 e que, segundo acusação do MPF, continua operando nos garimpos ilegais. Prancheta foi acusado pelo MPF em três denúncias sobre o garimpo ilegal na TI, por organização criminosa, dano ambiental, usurpação de recursos da união e comunicação clandestina. 

Leia também: O minerador Zé Altino relembra as invasões na TI Yanomami desde os anos 1970

Leias as reportagens da série Ouro do Sangue Yanomami

Garimpos e pistas de pouso na TI Yanomami. Mapa: Giovanny Vera /Amazônia Real

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