Por Ruben Caixeta de Queiroz e Juliana Neuenschwander Magalhães, na Conjur
O conceito político-jurídico de “marco temporal” não encontra respaldo no corpo de quase todos os textos constitucionais que foram até aqui formulados, desde o tempo colonial, passando pelos regimes ditatoriais, nos quais se reconheciam de forma cristalina o indigenato, o direito originário dos povos indígenas. Na nossa compreensão, o dito marco temporal quer apagar o passado dos indígenas (inclusive aquele que lhes foi instituído e demarcado pela colonização), impondo-lhes uma espécie de “solução final”: no lugar da reparação (a demarcação da terra indígena) por uma perda violenta (a terra espoliada), a imposição de uma adesão ao estilo de vida e ao mercado (de terras) capitalista e o abandono compulsório de uma relação ancestral e indissociável com o território e com um modo de vida particular.
Arrasta-se nos dias presentes um julgamento histórico no Supremo Tribunal Federal. A mais alta corte do país irá apreciar o recurso com repercussão geral (RE 1017365) no qual se discute o direito de posse em área de tradicional ocupação do povo indígena Xokleng, de Santa Catarina. No centro do debate está precisamente a tese do “marco temporal”, encampada por parte do STF e segundo a qual o direito dos indígenas às terras tradicionalmente por eles ocupadas depende do fato desses efetivamente as estarem habitando em de 5/10/1988, data em que foi promulgada a Constituição Federal de 88. O julgamento é histórico não apenas pela relevância da matéria e pelo alcance da decisão, mas também porque necessariamente implica numa tomada de posição em relação ao passado e ao futuro dos povos indígenas no Brasil.
No que se refere ao passado, deveria ser incontroverso que, quando há mais de 500 anos os europeus invadiram o território hoje chamado de Brasil, este já era ocupado por milhões de indígenas. Assim como é inconteste que na consolidação da nação e do Estado brasileiro foi constante e contínuo (até o tempo atual) o esbulho das terras indígenas. Exatamente por isso, também desde os tempos do Brasil colônia consolidou-se uma legislação que garante aos indígenas o direito à terra, inicialmente com o Alvará Régio de 1º de abriu (não é piada) de 1680, que afirmou o direito dos povos indígenas a permanecerem em suas terras, “sem serem molestados e nem mudados de lugar contra a sua vontade”, passando pela Carta Régia de 9/3/1718, pela Lei de 6/6/1755, pelo Diretório dos Índios de 1757, pelo Decreto 426 de 24/7/1845, que instituiu o Regulamento das Missões, pela Lei de Terras de 1850 (que reafirmou o indigenato) e pelas constituições de 34, 37, 46 e 67/69, até a Constituição Federal de 1988. Destaca-se aqui que na série histórica de Constituições, desde 1934 são reconhecidos esses direitos, não obstante o tema não tenha sido sequer mencionado pela Constituição de 1824 (ainda que largamente debatido nos trabalhos constituintes) ou pela Constituição de 1891.
O histórico reconhecimento do direito dos povos indígenas no Brasil, por meio dessas normas que repetidamente declaravam os índios como proprietários ou possuidores de suas terras, reafirmando umas às outras, não impediu, por certo, as inúmeras violências de que foram vítimas: invasões e esbulhos de terras habitadas por índios permanecem ocorrendo até os dias atuais. Os índios resistiram, até pelo simples fato de ainda existirem mesmo em face de tantas violências sofridas ao longo de 500 anos. É digno de nota o episódio relatado por Manuela Carneiro da Cunha em que o chefe dos índios Gamela de Viana do Maranhão obteve da Justiça daquela província em 1822 a demarcação das terras da aldeia (Carneiro da Cunha, 2012). Desde tempos remotos as terras indígenas e sua demarcação foram, portanto, não apenas objeto de leis, constituições e decisões judiciais, quanto também constituíram o centro da “questão indígena”.
Sob a ditadura militar foi elaborado o Estatuto do Índio (Lei 6001/73), ainda hoje em vigor. O estatuto foi influenciado pelos avanços normativos alcançados no campo do Direito Comparado e do Direito Internacional, como o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966 ou a Convenção 169 da OIT de 1936 (em vigor no Brasil apenas em 2003). Nesse passo, garante aos índios a posse permanente das terras em que habitam (artigo 2, IX) e afirma que essa antecede a demarcação das terras, que nada mais faz que reconhecê-la (artigo 25).
O fim da ditadura foi marcado pela elaboração e promulgação da Constituição de 1988. Na Assembleia Nacional Constituinte, houve inédita e intensa participação dos povos indígenas, mobilizados pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e também pela União das Nações Indígenas (UNI). Pela primeira vez os indígenas foram ouvidos no processo de elaboração de normas que lhes diziam respeito. Uma das cenas mais emblemáticas do processo constituinte foi a intervenção performática de Ailton Krenak, que discursou perante o plenário vestido em impecável terno branco (roupa de branco) enquanto pintava com tinta preta a face.
Na Subcomissão de Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias, foram ouvidos indígenas, indigenistas e antropólogos. Numa dessas audiências, compareceu a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, para dizer que a tradicional “política de não demarcação” deixava a descoberto terras para as quais os índios então já tinham direitos constitucionais resguardados, manifestando sua expectativa de que “a nova Constituição” mantivesse tais direitos: “Seria uma quebra de toda a tradição jurídica se esta Constituição democrática não desse as mesmas garantias que Constituições autoritárias asseguraram. O que implica essa não demarcação? Por que não se demarcou? É bom que se diga. A demarcação estava prevista no Estatuto do Índio, que é de 1973, que previa 5 anos para que se completassem todas as demarcações. No entanto, estamos em 87, e dei as cifras atuais, 32% das terras identificadas apenas estão demarcadas. Não se demarca exatamente porque os interesses são muito grandes. Há interesses contra a demarcação, ou então há interesses em demarcar incorretamente, ou seja, reduzindo fortemente as terras que a Constituição garante aos índios” (Brasil, “Diário da Assembleia Nacional Constituinte”, 5/5/1987).
A questão político-jurídica das terras indígenas e sua demarcação foi enfrentada na constituinte com a mobilização dos indígenas e a formação de uma Frente Parlamentar Pró-Índio, tendo sido vencida a posição do Centrão e da bancada “anti-índio”, que procurou retirar do texto a expressão “terras originárias”. Prevaleceu a tradição das constituições que lhe foram anteriores, mesmo as ditatoriais, e no Capítulo VIII, intitulado “Dos Índios”, foram reconhecidos “os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam” (artigo 231, caput): posse da terra e de recursos do solo, e não propriedade, que continua sendo da União (e, portanto, de todos os brasileiros). Definiu-se de forma explícita, no texto constitucional, as terras tradicionais como aquelas “tradicionalmente ocupadas pelos índios ou por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições” (artigo 231, §1o). A CF/88 ainda garantiu que esses direitos indígenas sobre as terras tradicionais fossem imprescritíveis, inalienáveis e indisponíveis. Outro avanço importante estabelecido no texto constitucional foi a possibilidade dos índios, assim como de suas comunidades e organizações, poderem ingressar em juízo para reivindicar seus direitos (artigo 232).
Portanto, embora o direito dos povos indígenas às terras em que habitam tenha sido reconhecido no Direito brasileiro desde tempos coloniais, a CF/88 cuidou de reforçar a anterioridade de tais direitos ao introduzir a expressão “direito originário”. Ao fazer isso, os constituintes manifestaram compreender, no marco do pluralismo étnico e cultural que está na base do texto constitucional, a particularidade da relação entre os povos indígenas e a terra, uma relação que não é “proprietária”, mas de unidade entre um povo e sua terra, de imanência, um nexo vital e indissociável. Isso porque, ao reconhecer o direito do índio à identidade cultural, se reconhece também que a identidade do indígena, enquanto tal, se constrói precisamente pelo nexo de vida que se estabelece entre ele e a terra. Nas palavras de Eduardo Viveiros de Castro, “pertencer à terra, em lugar de ser proprietário dela, é o que define o indígena. A terra é o corpo dos índios, os índios são parte do corpo da Terra. A relação entre terra e corpo é crucial. A separação entre a comunidade e a terra tem como sua face paralela, sua sombra, a separação entre as pessoas e seus corpos, é uma operação indispensável executada pelo Estado para criar populações administradas” (Eduardo Viveiros de Castro, “Aula pública durante o ato Abril Indígena”, Cinelândia, Rio de Janeiro — 20/4/2016 e reproduzido por Escola dos Saberes, abril — 2016).
Essa compreensão marca o abandono de uma tradição assimilacionista e estabelece o respeito à identidade cultural dos povos indígenas, de seu direito a continuarem a existir como povos que são. Cumpre, portanto, sempre frisar que a CF/88 não criou o direito dos povos indígenas às suas terras, mas reafirmou esse direito que vinha sendo reiteradamente acolhido pelo direito brasileiro como originário, dando-lhe uma moldura constitucionalmente adequada, no quadro de um Estado Democrático de Direito que reconhece o pluralismo, o direito à identidade cultural e à autodeterminação dos povos indígenas.
Continua na Parte 2, abaixo:
A “questão indígena”, como é de amplo conhecimento, não se resolveu com a promulgação da CF/88, em que pese o prazo por ela fixado (reiterando o Estatuto do Índio, de 1973) de cinco anos para conclusão das demarcações das terras indígenas. Nos anos seguintes à promulgação da Constituição, não só as terras, mas o próprio texto constitucional tornou-se objeto de disputa, muitas vezes com participação dos mesmos atores políticos já vencidos no processo constituinte.
O Supremo Tribunal Federal, nesse passo, assumiu um crescente protagonismo enquanto guardião da Constituição, função que tem desempenhado ora fazendo frente aos ataques desconstitucionalizantes, sobretudo num contexto de avanço do neoliberalismo e ameaça aos direitos dos trabalhadores e das minorias, ora cedendo às luas da política.
No que diz respeito aos direitos dos povos indígenas, o STF, nos primeiros anos de vigência da CF/88, buscou dar concretude ao texto constitucional, seguindo a tradição do próprio STF na matéria, mesmo durante a ditadura. Em 1993, no julgamento do caso que envolvia as terras dos índios Krenak, o STF reconheceu “a insofismável presença imemorial” dos Krenak e Pojixá na área em disputa, com base em inúmeros documentos que atestavam a presença daqueles índios no local já na década de 1910. O relator, ministro Francisco Rezek, rejeitou a tese do abandono das terras pelos índios em 1958, com base nas previsões das constituições anteriores de 34, 37 e 46, que já haviam transferido tais terras à União. Assim, proclamou o relator, “tem-se como inafastável a condução de que, se abandono de terras houve em 1958 (…) tal fato é totalmente inoperante para o efeito de transferir a propriedade das mesmas terras que já estavam integradas ao patrimônio da União”. Em consequência, declarou o STF “radicalmente nulos” os títulos de propriedade conferidos a terceiros pelo estado de Minas Gerais.
Foi em 1998 que o STF, pela primeira vez, rompeu com a jurisprudência anterior e decidiu questão semelhante de forma completamente diversa da tradição da própria corte e da série histórica de constituições brasileiras. Foi ali que se inventou, e não há outra palavra para isso, porque essa é uma ideia inédita até então, o “marco temporal”. Segundo a tese do marco temporal, a Constituição Federal não protege situações em que, “em tempos memoriais, as terras foram ocupadas por indígenas” (Marco Aurélio Melo, voto, RE 219.983-3/98,). Mas aqui é importante lembrar que nesse caso, como então salientou o próprio relator, estavam em disputa imóveis urbanos, não se estendendo tal decisão à situação das terras indígenas fora do espaço urbano.
Com base nesse julgado e em outros semelhantes, foi elaborada em 2003 a Súmula 650, que dispõe que os aldeamentos extintos ou mesmo as terras ocupadas por indígenas em passado remoto não são bens da União. Posteriormente, o próprio STF rejeitou que a Súmula 650 se tornasse vinculante. Em 2010, no julgamento da Petição 3.388, em que foi relator o ministro Carlos Ayres Britto no caso conhecido como Raposa Serra do Sol, reafirmou-se a tese do marco temporal, porém com a ressalva de que a tradicionalidade da posse indígena “não se perde onde, ao tempo da promulgação da Lei Maior de 1988, a reocupação apenas não ocorreu por efeito de renitente esbulho por parte de não-índios”.
Mesmo assim, com base na Súmula 650/2010, foi julgado em 9/12/2014 pelo STF o caso Limão Verde. Aqui o STF negou aos índios direitos sobre a Terra Indígena Limão Verde, novamente por entender que a Constituição de 88 é o “marco temporal” desde o qual se verifica a ocupação da terra pelos índios, para efeito de reconhecimento de terra indígena. Naquela ocasião o STF decidiu que o conceito de “terras tradicionalmente ocupadas pelos índios” não abrange aquelas que eram possuídas pelos nativos no passado remoto, de modo que o “renitente esbulho não pode ser confundido com ocupação passada ou com desocupação forçada, ocorrida no passado”. Para o STF, deveria haver, para configuração de esbulho, “situação de efetivo conflito possessório que, mesmo iniciado no passado, ainda persista até o marco demarcatório temporal atual” (vale dizer, a data da promulgação da Constituição de 1988), conflito que se materializa por circunstâncias de fato ou, pelo menos, por uma controvérsia possessória judicializada. Esqueceu o STF, dessa feita, que até 1988 o Brasil não constituía um Estado democrático de Direito e que, durante a ditadura, os índios foram perseguidos e violentamente afastados de suas terras, conforme relatado pelo Relatório Figueiredo (1967) e pelo relatório da Comissão Nacional de Verdade (2014).
Como se vê, o STF nos últimos anos tem assumido posição recalcitrante no que diz respeito aos direitos originários dos povos indígenas e, ao abraçar a tese política-jurídica do marco temporal e negar o caráter tradicional de tais terras, passou a desconhecer sua própria natureza originária. Nesse processo de verdadeira desconstitucionalização de um direito fundamental, o STF viola a proibição constitucional de regresso em matéria de direitos fundamentais.
A guinada do STF em direção à adoção do marco temporal gerou grande insegurança jurídica entre os povos indígenas, pois contrariou, como demonstrado acima, não apenas o texto constitucional mas também os precedentes do tribunal. Ao estabelecer o marco temporal da Constituição de 88 para a localização do direito dos índios às terras em que vivem, portanto, o STF rompeu tanto com a sua própria tradição como com aquela do constitucionalismo brasileiro, que abrange a série das constituições brasileiras de 1934 até nossos dias, inclusive aquelas promulgadas por regimes ditatoriais. Esse direito tem seu fundamento filosófico no fato de que os índios eram os habitantes originários das terras que chamavam de Pindorama, das quais eram legítimos donos ou senhores. Até 1998, mesmo no caso dos aldeamentos extintos esses direitos originários eram reconhecidos.
Não é novidade que, não obstante a tradição do indigenato no Direito brasileiro, sua aplicação foi objeto de inúmeras manipulações, às vezes envelopada numa moldura para legitimar a violência contra estes mesmos povos, legalizando invasões e esbulhos de terras indígenas. Dessa forma, é preciso ressaltar, não é extraordinário que, mesmo quando se reconhece formalmente o direito dos povos indígenas, as normas jurídicas sejam objeto de disputa e pano de fundo para a negação dos direitos que elas pretendem afirmar, o que já se chamou de “inclusão da exclusão” dos povos indígenas no Brasil. A tese do marco temporal é exatamente uma estratégia desse tipo, consistindo num artifício político-jurídico que busca afastar a incidência da norma constitucional que protege o direito originário dos povos indígenas às terras por eles tradicionalmente ocupadas. O marco temporal coloca o próprio texto constitucional em questão, retomando debates superados há 30 anos, não obstante os direitos originários dos índios ás suas terras sejam direitos fundamentais e, portanto, cláusulas pétreas da CF/88.
A aplicação do “marco temporal”, portanto, é uma maneira não tão velada de desmontar e impedir a aplicação do direito originário à terra dos povos indígenas. Sabemos que vários desses povos foram simplesmente dizimados, outros foram expulsos de suas terras de forma violenta ou confinados em reservas diminutas, além de remoções forçadas em massa, tortura, assassinatos e criação de prisões “específicas” para os indígenas (figuras de controle e perseguição que nos lembram os campos de concentração).
Entre casos similares poderíamos citar o do povo Kaigang no Rio Grande do Sul, confinados em um pequeno território, bem como de vários grupos Guarani e Kaiowá no Mato Grosso do Sul (quem quiser saber melhor sobre esse processo, recomendamos o filme “Martírio”, de Vincent Carelli, um verdadeiro retrato do genocídio e do esbulho das terras indígenas perpetrado de forma sistemática e renitente por mais de 300 anos), ou ainda o presídio da Fazenda Guarani em Carmésia (MG). Podemos citar também o caso dos índios Katxuyana, que, em 1968, foram retirados de um dia para o outro de sua terra tradicional no Rio Cachorro, oeste do Pará, e levados pelos militares brasileiros para ocupar um posto de vigilância de fronteira com o Suriname no norte do Pará.
Poderíamos continuar citando centenas desses casos de deslocamentos forçados e violentos dos indígenas ao longo da história no país, que, agora, serão impedidos de retornar ou permanecer à terra que não tivesse sido ocupada de fato por eles em 1988, graças à tese política-jurídica do “marco temporal”. Sob a Súmula 650/2010 exclui-se, por exemplo, a possibilidade de que os povos quase exterminados ou expropriados durante a ditadura militar, como foi o caso dos Kayapó, Avá Canoeiro e Waimiri Atroari, pudessem recuperar seu direito originário às terras em que viviam até serem expulsos e perseguidos pelo regime. Ou seja, nesse caso, todos os brasileiros perseguidos pela ditadura teriam direito à reparação, menos os índios.
Já para a terra “ocupada” ou “tomada” pelos não indígenas parece haver um “marco temporal” às avessas: a grilagem de terras públicas, não importa se feita num tempo recente, ganha aval e lavagem por meio de decretos do poder público. Foi esse o caso, por exemplo, da medida provisória (MP 759/2016) assinada pelo presidente Michel Temer no dia 11/7/2017, que ficou conhecida como “MP da Grilagem” por permitir a legalização massiva de terras públicas de até 2,5 mil hectares invadidas até o “marco temporal” de 2011. Vemos aqui dois pesos e duas medidas que demonstram muito bem qual é o lado tomado pelo Estado brasileiro: para as terras “ocupadas” (não importa, nesse caso, se de má-fé ou não) por não indígenas até 2011 (dez anos atrás), há regularização e titulação como propriedade privada; já os índios que não demonstrarem estar ocupando suas terras em 1988 (há quase 30 anos), não mais poderão pleitear sua posse na qualidade de terra tradicional e propriedade da União!
Enquanto isso, ao mesmo tempo em que se discute a relativização do direito constitucional à ocupação tradicional indígena através da intrusão no debate da figura do marco temporal, em 2021, segue no Congresso Nacional a aprovação de projetos de lei que facilitam o “reconhecimento” da grilagem de terras públicas por “proprietários” não indígenas ou que, em nome do “interesse público”, atenuam ou corroem o princípio constitucional do usufruto exclusivo das terras indígenas pelos povos originários: são os casos do PL 2633 ou do PL 490. Segundo um levantamento do Instituto Socioambiental (ISA), somente no período de dois anos, entre 2018 e 2020, a grilagem no país aumentou 274%. Esses projetos de lei, citados acima simplesmente têm o potencial de “perdoar” invasores de 55 milhões a 65 milhões de hectares de terras da União.
Se voltarmos um pouco mais atrás, no tempo das “negociações” para a aprovação do novo Código Florestal, 2009, recordaremos que ali o setor agrícola (sobretudo os grandes donos de terra) já tinha dado um golpe no meio ambiente e no bem comum: nesse caso foi concedida uma anistia a todos proprietários de imóveis rurais que tivessem removido (a tal “ocupação consolidada”) de forma legal ou ilegal a vegetação nativa preexistente até 22/7/2008.
Ou seja, se os povos tradicionais (indígenas e quilombolas) são aqueles que, de fato, protegem e protegeram as florestas e os rios (as áreas ocupadas por eles são as mais preservadas, em relação inclusive às unidades de proteção ambiental) ao longo da sua existência, os insatisfeitos com o reconhecimento, pela Constituição de 88, do direito dos povos indígenas tratam de, sob o artifício do “marco temporal”, acionar um rolo compressor jurídico-político para inviabilizar tanto suas condições reais de existência (que dependem das fontes de recursos “naturais”) quanto o próprio “meio ambiente”: uma vez as populações tradicionais removidas de suas terras, logo tudo se torna terra arrasada pelas monoculturas do tipo soja, cana-de-açúcar, algodão ou pelos grandes projetos de exploração de recursos naturais (como mineração e hidrelétricas). Impedidas (pela força física, política e jurídica) de retomar as terras devastadas pela ganância do capitalismo, o “meio ambiente” e a vida (além da “cultura” destes povos) jamais podem ser “recuperados” ou “resgatados”.
Não restam dúvidas que, se consolidada e confirmada a imposição dos “dois marcos temporais”, estará aberto o caminho para o agravamento do desmatamento e dos conflitos de terra, aumentando (ainda mais) a quantidade já absurda de assassinatos no país de ambientalistas, trabalhadores rurais, indígenas e quilombolas. Aprovar o “marco temporal indígena”, impedindo a posse da terra pelos índios e todas as retomadas que tiverem sido consolidadas depois de 1988, significa deixar de reparar a violência do Estado brasileiro contra seus povos originários e anistiar os crimes cometidos contra eles — que seguem em curso — por meio de invasão e grilagem de suas terras, seguidas de extermínio e genocídio. Mais do que isso, parece querer dizer que o Estado brasileiro está premiando esses crimes por meios de suas medidas provisórias e decisões do Supremo.
O “marco temporal” opera na erosão do direito dos povos indígenas constitucionalmente pactuados, algo que tem sido uma exigência do “novo constitucionalismo” a serviço do neoliberalismo. De forma perversa, o marco temporal inverte o argumento da tradicionalidade, reconhecendo ao índio o direito à terra apenas se estivesse lá na data mágica de 5/10/88, quando na verdade esse direito repousa no fato de que os índios vivem (ou viveram) nessas terras desde tempos imemoriais. Ou seja: a tese do marco temporal (dos dois marcos temporais!), ao mesmo tempo que desconhece o passado, o caráter originário da ocupação das terras indígenas, impede o futuro da sobrevivência dos povos indígenas.
Por isso, clamamos ao Supremo Tribunal Federal sua responsabilidade histórica: em defesa da Constituição de 88 e da sobrevivência dos povos indígenas e de seus direitos, abaixo o marco temporal! O marco temporal é inconstitucional e perverte o sentido do texto constitucional. O STF está na ponta da flecha.
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Ruben Caixeta de Queiroz é professor titular de Antropologia da Universidade Federal de Minas Gerais.
Juliana Neuenschwander Magalhães é professora titular de Sociologia Jurídica da Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisadora 1A do CNPq.
Povos indígenas realizam manifestação, em Brasília, contra o marco temporal. Foto: Adi Spezia /Cimi