Arado: Prefeito de Porto Alegre diz que indígenas ‘vieram de avião’, embora estudo indique presença secular

Retomada Mbyá-Guarani tem atrapalhado o plano de projeto imobiliário em Belém Novo

Por Luciano Velleda, no Sul21

Sebastião Melo (MDB) era deputado estadual quando, no dia 6 de novembro de 2019, houve a apresentação na Assembleia Legislativa do estudo intitulado “Relatório Antropológico, Histórico e Arqueológico Circunstanciado sobre a retomada Yjerê do Arado Velho, localizada no bairro Belém Novo”.

Solicitado pelo Conselho Estadual dos Povos Indígenas (CEPI) e realizado pelo Laboratório de Arqueologia e Etnologia (LAE) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o longo estudo detalha as origens históricas da presença dos indígenas Mbya-Guarani no extremo-sul de Porto Alegre, particularmente na Ponta do Arado, região hoje no centro da disputa para a construção de um grande empreendimento imobiliário com 1.650 casas na área de 426 hectares da antiga Fazenda do Arado.

Quase dois anos depois daquela apresentação na Assembleia, o agora prefeito da Capital participou em agosto da audiência pública sobre o polêmico projeto. Melo não esconde a defesa que faz do negócio e seu governo deve apresentar em breve a proposta de mudança do regime urbanístico previsto no Plano Diretor da região de Belém Novo. A alteração das regras deverá permitir a construção do “bairro planejado”.

Embora tenha posição conhecida favorável ao projeto, chamou atenção na audiência pública a fala do prefeito pondo em dúvida a origem dos indígenas no território do Arado. “Botaram índio de avião, lá de Santa Catarina, pra vir pra cá e dizer que moravam ali, esse negócio não tá correto também, não tá correto e tem que ser esclarecido”, disse Melo, para espanto de muitos.

Resgatar a origem da ocupação Mbya-Guarani na zona sul de Porto Alegre para ajudar no esclarecimento do assunto foi justamente a razão do estudo feito pelos pesquisadores da UFRGS. Um estudo que Melo, nem enquanto deputado e nem enquanto prefeito, parece ter tomado conhecimento até agora.

“Uma fala absurda, de que os índios foram levados de avião e foram subsidiados pelos estudantes… a gente se surpreende, ainda mais estudantes da UFRGS, tudo sem dinheiro. São dizeres que não têm qualquer cabimento, e é a desqualificação dos direitos que os indígenas têm nesse processo todo”, comenta José Otávio Catafesto de Souza, autor do relatório e coordenador do Laboratório de Arqueologia e Etnologia (LAE) e do Núcleo de Estudos Afrobrasileiros, Indígenas e Africanos (NEAB) da UFRGS.

Na visão do etnoarqueólogo, a audiência pública sobre o projeto imobiliário no Arado foi apenas protocolar. “As audiências não têm caráter deliberatório, é apenas informativo. Por mais que se faça argumentação contrária, no fim, a definição, como projeto nas instâncias legislativas e do governo, não são interrompidas em cima de qualquer argumento que se apresente”, lamenta.

O professor da UFRGS destaca que a postura do poder público, expressada pelo prefeito e por outros governantes sobre o tema do reconhecimento e da demarcação de terras indígenas no Brasil, é a “ponta do iceberg” de uma estrutura montada desde o início da colonização do País.

“Temos a permanência de uma colonialidade de poder, ou seja, as mesmas relações que foram estabelecidas pelos nossos antecessores ibéricos e mesmo depois da Independência”, analisa.

O estudo sobre a presença da etnia Mbyá-Guarani na Ponta do Arado explica que o movimento de retomada hoje visto em Porto Alegre iniciou há mais de um século, quando antigas gerações residentes na Argentina e no Paraguai receberam “desígnios espirituais” para irem na direção leste, à procura dos locais onde os “fogos dos ancestrais ainda crepitam”. Esse movimento levou-os até o litoral do oceano Atlântico nas primeiras décadas do século 20.

A partir daí, sobreviveram perseguidos pelo Estado brasileiro, forçados a manter constantes deslocamentos que os deixaram na invisibilidade. Nos anos de 1990, vivendo na beira de estradas, os Mbyá-Guaranis começaram a ganhar espaços, aprenderam português e passaram a exigir o cumprimento das leis que garantiam sua autodeterminação no Brasil. Voltando para áreas de mata cada vez mais próximas de Paraguaçu (Oceano Atlântico), um novo ciclo no processo de retomadas se iniciou.

Foi assim com o reconhecimento da Terra Indígena de Campo Molhado (Barra do Ouro), em Maquiné. Anos depois, conseguiram autorização para criar aldeias em áreas públicas cedidas pelo governo estadual, nos hortos florestais da antiga CEEE, e ergueram outras aldeias também na região metropolitana de Porto Alegre.

O estudo realizado pelo Laboratório de Arqueologia e Etnologia da UFRGS destaca que o processo judicial brasileiro suprime da análise aspectos orais, usos e costumes, formas de moralidade historicamente silenciadas pelos agentes e poderes do Estado antes e depois da Constituição Federal de 1988.

“Este também é o caso dos Mbyá-Guarani e de outros descendentes indígenas que permaneceram etnicamente invisíveis (usando o dispositivo da itinerância marginal) frente ao velamento etnocidário aplicado na formação do Brasil. A expansão urbana na zona sul de Porto Alegre não foi exceção, mas é sim continuidade e uma repetição contundente deste processo que ora é revertido pelos Mbyá-Guarani”, explica o relatório,  enfatizando que os indígenas “possuem e expressam conhecimentos e saberes que precisam ser legalmente reconhecidos – pelos operadores do Direito no Brasil – como legítimos também em relação à Península do Arado Velho”.

O estudo mostra haver vínculos – com documentos escritos e arqueológicos – territoriais seculares da etnia Mbyá-Guarani com toda a zona sul de Porto Alegre, principalmente com a orla e os pontais, desde a Ponta do Gasômetro, passando pela Ponta do Estaleiro (onde arqueólogos encontraram um sítio com cerâmica guarani anterior ao século 19), a Ponta dos Quatis, Ponta do Arado, pela Ilha do Francisco Manuel, pela Ponta do Cego e o Pontal do Lami, Morro do Coco (Extrema), pela Ponta das Pombas até a Ponta de Itapuã.

Segundo Timóteo Karai Mirim de Oliveira, cacique da retomada na Yjerê (Península do Arado Velho), as cerâmicas deixadas por seus ancestrais como provas físicas de que estiveram no território são “documentos da terra”.

Os casos Lami e Itapuã

Para compreender a retomada dos Mbyá-Guarani na Ponta do Arado, o “Relatório Antropológico, Histórico e Arqueológico” elaborado pelo professor José Otávio Catafesto de Souza em conjunto com Carmen Lúcia Guardiola e Rafael Frizzo, ambos pesquisadores do Laboratório de Arqueologia e Etnologia da UFRGS, reconstitui a presença da etnia em todo o extremo-sul de Porto Alegre.

Ao fazer isso, os pesquisadores afirmam que os Mbyá-Guarani foram sistematicamente expulsos das áreas de mata que habitavam, ao mesmo tempo em que avançava o processo de loteamento e privatização das terras. A situação os obrigou a constantes trocas de acampamento (itinerância marginal) até serem reduzidos às margens das estradas a partir da década de 1950.

“Assim, foram impedidos de reproduzir os vínculos ancestrais que eles e elas detinham com toda a orla lacustre do Guaíba. A quase totalidade dos eventos de expulsão dos Mbyá-Guarani não é oficialmente conhecido – casos de coação que foram e são velados, mas ocorreram situações de apropriação pública de que se pode dispor farta documentação administrativa”, destaca trecho do documento.

O primeiro exemplo de apropriação pública citado no estudo é a criação, em 1975, da Reserva (Municipal) Biológica do Lami José Lutzenberger, destituindo os Mbyá-Guarani e outras famílias de ascendência guarani do local que lhes dava acesso ao Guaíba, onde pescavam, caçavam, coletavam frutos e extraiam fibras. A área onde a reserva foi criada dava aos Mbyá-Guarani uma ponte de acesso à Ponta do Arado, por meio da Ponta do Cego, e à Orla mais ao norte.

Os pesquisadores da UFRGS explicam que este caso de “esbulho público” manteve a mesma estratégia usada desde o período colonial por sesmeiros luso-brasileiros e imigrantes europeus, porém com os “requintes da burocracia municipal”.

“A unidade de conservação ambiental foi criada sobre terras de ocupação tradicional, expulsando seus ocupantes Guarani, os mesmos responsáveis pela manutenção saudável de suas condições naturais até então. Reitera-se que a criação da Reserva Ecológica do Lami faz parte de uma das etapas já bem avançadas do esbulho renitente a que os Mbyá-Guarani estão submetidos nesta região há séculos. Uma das provas importantes para acrescentar em favor da retomada da Ponta do Arado pelos Mbyá-Guarani é o fato de que os Mbyá esperam, há décadas, que a FUNAI avance no processo iniciado na década de 1990 de Regularização Fundiária de todo o Pontal do Lami, enquanto Terra Indígena, destituindo o ato de esbulho feito pela administração municipal. Invertendo as forças na conjuntura atual, a Retomada da Ponta do Arado torna-se, agora, cabeceira de ponte à retomada Mbyá-Guarani dos pontais do Quati, do Cego, do Lami, do Coco, das Pombas e de Itapuã”, diz outro trecho do estudo.

Depois da Reserva Ecológica do Lami, o esbulho público foi então ampliado com a criação do Parque Estadual de Itapuã, em 1985, dessa vez pelo governo estadual. Segundo os pesquisadores, é um caso clássico de sobreposição de unidades de conservação ambiental sobre territórios indígenas, prática comum em todo o Brasil. O próprio nome do local – Itapuã – já evidencia a origem indígena.

O caso do Parque Estadual de Itapuã foi contado em estudo acadêmico transformado em livro, produzido pela Assembléia Legislativa: “Unidades de Conservação sobrepostas ao território Guarani: o caso da aldeia guarani de Itapuã”, de Carolina Comandulli. Removidas de suas aldeias, as famílias Mbyá-Guarani passaram a ser impedidas de circular dentro da área agora transformada em reserva.

A situação melhorou um pouco cerca de 15 anos depois, durante o governo de Olívio Dutra (1999-2002), quando um ato administrativo desapropriou uma pequena propriedade rural lindeira à área reservada como parque. A ação permitiu aos Mbyá garantir presença no local e estabelecer uma aldeia em Itapuã. Há mais de 30 anos os indígenas aguardam que a FUNAI reverta o processo de criação do parque e regularize a área como Terra Indígena de Itapuã.

“Os casos referidos acima levaram ao esbulho de importantes e amplos ambientes de habitação, de celebrações rituais e de circulação ao sustento das parentelas Mbyá-Guarani, particularmente atingindo a perda de acesso completo às praias, às orlas e aos pontais que perfazem as margens orientais do Lago Guaíba. Os danos sociais e culturais são portanto de grande envergadura para os Mbyá-Guarani, pois tiveram que abandonar a pesca costeira, a navegação e a pesca embarcada”, afirma o estudo.

De acordo com os pesquisadores do Laboratório de Arqueologia e Etnologia da UFRGS, a falta de ação do governo federal ao não regularizar as terras dos Mbyá-Guarani em Porto Alegre, é um dos fatores que explicam a retomada na Ponta do Arado. Ao voltarem ao território que hoje é alvo de um grande empreendimento imobiliário, os indígenas colocaram os holofotes numa situação que já parecia perdida.

Indígenas sem espaço

Citando o antropólogo Darci Ribeiro, o etnoarqueólogo José Otávio Catafesto de Souza diz que são raras as situações históricas no Brasil em que se considera a participação indígena nos projetos de construção nacional. Um processo antigo, que atravessou os séculos e continua muito forte nos dias atuais.

“Muito vergonhoso se ver que o Brasil é independente e as discussões dos constituintes, na primeira Constituição do Império, a discussão toda de que é necessário construir o Brasil, mas que quem está ocupando o Brasil não tem competência nessa construção”, pondera.

Catafasto diz que o processo de desqualificação dos indígenas ocorreu do mesmo modo com os negros escravizados e até mesmo com os lusos-brasileiros descendentes de Portugal. Durante aquele período foi dito ser preciso construir a nação com “gente de melhor qualidade”. Não por acaso, dois anos depois da Independência, em 1822, começa em 1824 a colonização alemã, principalmente no Sul do Brasil.

“Isso esconde um trauma que vem desde a origem do Brasil e a dificuldade de lidar com a parte indígena que praticamente todo mundo tem. Então não demarcar terra indígena é, do ponto de vista de uma análise ontológica, mais pro lado de uma filosofia, fruto da série que os construtores do Brasil vêm reproduzindo”, afirma.

Ciente das forças poderosas que enfrenta, o cacique Timóteo diz que o poder público e a empresa privada que quer fazer o condomínio estão contra ele e as famílias Mbyá-Guarani. Ao lado da causa indígena, ele analisa, apenas a Justiça Federal. “Não sei quem vai ser mais forte”, comenta.

Nesses primeiros dias de setembro, a preocupação maior do cacique está em Brasília, na votação da tese do Marco Temporal pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Uma tese que, se aprovada, afetará todos os processos de reconhecimento de terra indígena no Brasil.

Desde a realização da audiência pública sobre o projeto imobiliário, Timóteo diz não ter recebido mais notícias sobre os planos da Prefeitura. As famílias Mbyá-Guarani seguem na Ponta do Arado e acreditam que conseguirão permanecer.

“Conheço esse lugar todo há muito tempo. Estudei pra saber onde fica. Rezo muito. Ele é nosso”, afirma.

Com tranquilidade, o cacique Mbyá-Guarani não demonstra ter mágoa ou sentimento de revolta por Melo ter colocado em dúvida a presença ancestral de seu povo na zona sul de Porto Alegre. “O prefeito fala mal de nós. Mas nós guarani nunca fica brabo.”

A reportagem questionou a Prefeitura de Porto Alegre se o governo tem conhecimento do estudo realizado por pesquisadores da UFRGS e aguarda posicionamento. Assim que for enviado será acrescentado na matéria.

Em barracas de lona azul, guaranis vivem na praia da Ponta do Arado. Foto: Giovana Fleck /Sul21

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