Execução de indígena pelas regras da etnia não caracteriza crime, diz MPU

Por Ana Luisa Saliba, na Conjur

A Constituição de 1988 avançou na regulação estatal dos direitos indígenas, rompendo com o assimilacionismo. E o artigo 231 reconhece o direito à resolução de conflitos por métodos próprios tradicionais indígenas, ao dispor que “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições”.

Com esse entendimento, 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal homologou o arquivamento de inquérito que investigava o homicídio de um indígena.

Uma mulher indígena procurou a Delegacia de Polícia Civil de Itaituba (PA), narrando a morte de seu filho de 16 anos por disparo intencional de arma de fogo, conduta que teria sido praticada por outros dois indígenas.

Ele foi morto dentro de casa, a tiros de espingarda, teve seu corpo arrastado até o rio, onde foi esquartejado em pequenos pedaços, retiraram seu fígado e coração, triturando-os, e as demais partes do corpo foram amarradas a uma pedra e jogadas no rio.

Consta do relato que um outro indígena morreu em um suposto afogamento e que, após os pais da vítima consultarem o pajé, o capitão, o cacique e lideranças da aldeia, a morte foi atribuída a feitiçaria que o adolescente teria feito.

Isso teria sido o motivo da sua morte com fundamento no ritual da “pajelança braba”, visto que ele era apontado como “pajé brabo” ou feiticeiro, devendo ser executado pela comunidade em razão da prática de “magia negra”, que é a única conduta passível de pena de morte na etnia Munduruku.

O procurador da República oficiante promoveu o arquivamento em razão de um parecer técnico, feito por um analista especialista em antropologia do MPU (Ministério Público da União), que revelou que a dinâmica dos fatos praticados indicavam efetivamente a prática de um ritual próprio da etnia.

Na revisão de arquivamento, o subprocurador-geral da República Francisco Vieira Sanseverino afirmou que o reconhecimento de que os povos indígenas são culturalmente diferenciados é traduzido no campo jurídico, pois muitas de suas aspirações encontram espaço nos dispositivos constitucionais e em regulamentações internacionais.

A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho dispõe que a justiça indígena deve ser reconhecida e a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas também reconhece que “os povos indígenas têm direito à autodeterminação”, que se revela no direito de se reconhecerem como grupos distintos e, portanto, de terem controle sobre seu próprio destino.

Assim, os índios, de acordo com seus usos e costumes, aplicam sanções aos que transgridem as normas de convivência estabelecidas pelo grupo a que pertencem. Trata-se de uma das formas de expressão do direito ao autorreconhecimento, ressaltou o subprocurador-geral.

No caso concreto, conforme amplamente dissertado no parecer técnico do MPF e na nota técnica da Funai (Fundação Nacional do Índio), “no código criminal dos índios Munduruku, a prática de magia negra é a única conduta possível de pena máxima e que os indígenas se mostram extremamente insatisfeitos com a exposição do caso para fora da sociedade Munduruku”.

“Eis que a crença na pajelança braba está intimamente ligada a saúde do povo da aldeia, ligado a momentos em que a comunidade se sente ameaçada por grande crise, males, doenças e mortes inexplicáveis.”

Segundo o integrante do MPF, os que praticaram a conduta ora relatada não reconhecem ter feito algo proibido. Para eles, a norma penal não alcança a pretendida função motivadora, tampouco alcançaria qualquer fim preventivo, geral ou especial, a imposição de uma pena.

Além da imperiosa necessidade de resguardar a manifestação cultural da etnia, praticada dentro da coletividade, nos limites da aldeia, em diversas passagens do procedimento investigatório criminal ficou claro que qualquer ato de investigação judicial tendente a apurar os fatos, representa indesejável ofensa aos meios culturais de aplicação da justiça e encontrará expressiva resistência dos indígenas, concluiu Sanseverino.

Clique aqui para ler a decisão
Procedimento nº 1.23.008.000394/2015-61

Foto: Fábio Nascimento /Mobilização Nacional Indígena

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