Transição energética: “Existe uma ilusão de que a ‘tecnologia’ vai encontrar um caminho e as economias poderão crescer indefinidamente”. Entrevista especial com Bruno Milanez

A transição energética depende da extração de minérios e “causará uma série de impactos ambientais em âmbito local”, adverte o engenheiro

Por Patricia Fachin, no IHU

Se de um lado a transição energética é vista como alternativa irrevogável para frear os efeitos do novo regime climático, de outro ela não será possível sem novos impactos socioambientais. É para essa questão que o relatório “Crise climática, extração de minerais críticos e seus efeitos para o Brasil“, publicado neste mês, chama a atenção.

Bruno Milanez, autor do relatório, professor do Departamento de Engenharia de Produção e Mecânica e do Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal de Juiz de Fora e coordenador do Grupo de Pesquisa e Extensão Política, Economia, Mineração, Ambiente e Sociedade (PoEMAS), explica que transição energética demandará a produção de “equipamentos específicos, todos eles fabricados com minerais, como cádmio, estanho, cobalto, molibdênio, elementos terras raras, entre outros”. O armazenamento da energia limpa, acrescenta, dependerá “das baterias, cuja fabricação utiliza manganês, lítio, zinco, vanádio e muitos outros. Para completar, para dar conta dessa maior eletrificação, teremos que ampliar as redes de distribuição, ou seja, vamos construir mais torres e utilizar mais cabos de alta-tensão, que requerem aço, alumínio, zinco e cobre”.

Esses minerais, informa, estão localizados “principalmente nos países de renda média e baixa. Por exemplo, é nessas regiões que se encontram 93% das reservas de terras raras, 83% do manganês, 69% do cobalto, e 66% da bauxita. E será nesses países que se concentrarão os impactos e os conflitos”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail para o Instituto Humanitas Unisinos – IHUMilanez reflete sobre os desafios da transição energética e argumenta que a discussão sobre o tema não deve se limitar ao debate sobre novas fontes de energia, mas rediscutir o modelo de desenvolvimento. Ele também comenta a proposta de criação de um fundo internacional para auxiliar os países que ficarão à margem da transição. “Acredito que é uma discussão necessária, porém muito complexa. Da forma como está posta, ela se concentra na ideia da compensação. Especialmente de compensação financeira. Porém muitos desses ‘prejuízos’ não são passíveis de uma valoração monetária”, adverte.

Bruno Milanez é graduado em Engenharia de Produção pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, mestre em Engenharia Urbana pela Universidade Federal de São Carlos – UFSCar e doutor em Política Ambiental pela Lincoln University. Leciona na Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF.

Confira a entrevista.

IHU – Por que a transição energética implica em uma demanda maior por minerais? Para que eles serão utilizados?

Bruno Milanez – A proposta de transição energética pressupõe uma substituição das fontes de energia. Assim, devemos abandonar os combustíveis fósseis e passar a adotar fontes de energia de baixo carbono, como eólica e solar. Porém, para que essas energias sejam utilizadas, necessitamos convertê-las em energia elétrica e, para isso, usamos equipamentos específicos, todos eles fabricados com minerais, como cádmio, estanho, cobalto, molibdênio, elementos terras raras, entre outros. Da mesma forma, essa energia precisa ser armazenada, e para isso precisamos das baterias, cuja fabricação utiliza manganês, lítio, zinco, vanádio e muitos outros. Para completar, para dar conta dessa maior eletrificação, teremos que ampliar as redes de distribuição, ou seja, vamos construir mais torres e utilizar mais cabos de alta-tensão, que requerem aço, alumínio, zinco e cobre.

Portanto, a intensificação da eletrificação, que é a base da transição energética, requer uma série de minerais, muitos deles disponíveis em concentrações muito baixas. A extração desses minerais necessariamente causará uma série de impactos ambientais em âmbito local. Portanto, não parece correto falar que seriam energias “limpas”, pois esse conceito passa a ideia de que não há impactos no seu uso.

IHU – O que são os “minerais críticos”, que percentual deles está disponível hoje e qual é a estimativa de uso desses minerais nas próximas décadas?

Bruno Milanez – A terminologia “minerais críticos” vem sendo usada principalmente pelos países da União Europeia e pelos EUA. Este último define os minerais críticos como minerais não combustíveis “essenciais para a economia e segurança nacional”, cuja cadeia de suprimento é vulnerável a interrupções e que “desempenham uma função essencial na fabricação de produtos cuja ausência pode ter consequências significativas” para a economia ou segurança nacional.

Quando pensamos que esses grupos de países têm desenvolvido políticas de redução da emissão de Gases de Efeito Estufa – GEE, muitos dos minerais que mencionei acima acabam sendo enquadrados como críticos. Isso ocorre especialmente porque há uma série de programas econômicos que se propõe a estimular a fabricação desses componentes em tais regiões.

O problema é que falar em transição energética sem questionar a intensidade do consumo energético global, particularmente dos países ricos, é uma falsa solução. Estudos indicam que, considerando o horizonte de 2050, se simplesmente mantivermos o mesmo padrão de consumo energético e apenas substituirmos as fontes de energia, não existirão reservas suficientes de cobalto, lítio ou níquel para dar conta da demanda. Não podemos nos esquecer que esses minerais são recursos finitos e não renováveis, assim como o petróleo e o carvão mineral.

IHU – Estamos em um “beco sem saída” já que a transição energética exigirá a extração de mais minerais, conforme aponta o relatório de sua autoria, “Crise climática, extração de minerais críticos e seus efeitos para o Brasil”? Que alternativas existem à chamada “energia limpa”?

Bruno Milanez – O beco sem saída se apresenta a partir do momento que acreditarmos que podemos aumentar nosso consumo indefinidamente em um mundo finito. O muro no fim do beco representa o limite dos bens naturais. Isso é um aspecto físico da realidade, que já vem sendo estudado há décadas pela Economia Ecológica. Apesar disso, ainda existe uma ilusão de que a “tecnologia” vai encontrar um caminho e as economias poderão crescer indefinidamente.

Como falei anteriormente, não concordo com a ideia de “energia limpa”. Todo processo de transformação de energia gera um impacto, gera degradação ou algum um tipo de poluição. Se não for no momento de sua transformação, pode ser ao longo da sua cadeia de produção, ou no descarte dos componentes. Por exemplo, há reservas de cobre no Brasil com teor inferior a 1%. Ou seja, para cada tonelada de cobre que as mineradoras extraem, deixam para trás mais de 99 toneladas de resíduos. Como chamar esse processo de “limpo”?

Com isso não quero dizer que devemos negar a transição energética. O abandono dos combustíveis fósseis é necessário e urgente. Porém, diferente do que é às vezes propagado, trocar o carro à gasolina por um carro elétrico não vai resolver o problema. A discussão precisa ir além.

IHU – De que modo a transição energética, se visar apenas a substituição de energias fósseis por novas fontes, poderá ampliar os conflitos socioambientais? Em que regiões do globo eles tendem a ser mais intensos?

Bruno Milanez – O antropólogo Stuart Kirsch utiliza o conceito harm industry, que podemos traduzir por “indústria do dano”, para se referir ao setor mineral. Ele usa esse termo para expressar que é impossível para as empresas mineradoras realizarem suas atividades sem degradar o meio ambiente. Essa degradação envolve as alterações da paisagem, o uso da água, muito comumente, a contaminação dos corpos hídricos etc. Onde houver essa degradação, necessariamente haverá conflitos socioambientais com as comunidades locais. Isso sem falar nos conflitos com os próprios trabalhadores.

Quando olhamos a distribuição desses minérios ao redor do mundo, vemos que eles se localizam principalmente nos países de renda média e baixa. Por exemplo, é nessas regiões que se encontram 93% das reservas de terras raras, 83% do manganês, 69% do cobalto e 66% da bauxita. E será nesses países que se concentrarão os impactos e os conflitos.

IHU – Quais são as questões geopolíticas envolvidas ou em disputa por trás da transição energética? Países como a Índia defendem que o desenvolvimento é uma necessidade e não um luxo, chamando atenção para o número de pessoas que passam fome e necessitam de trabalho. Como resolver essa equação? Que modelo de desenvolvimento contribuiria para enfrentar as demandas sociais?

Bruno Milanez – O principal elemento da geopolítica tem a ver com essa distribuição das reservas e a concentração do consumo. Em 2014, último ano para o qual os dados do Banco Mundial estão disponíveis, os países de alta renda consumiam três vezes mais energia per capita do que os países de renda média e baixa. Se consideramos a produção de energia renovável per capita, excluindo hidrelétricas, essa proporção era de dez vezes. Mesmo se considerarmos o papel recente da China e o seu aumento no consumo de energia e no uso de novas tecnologias de transformação de energia, essa diferença ainda se mostraria bastante significativa.

Eu entendo que essa desigualdade entre quem arca com os custos da extração dos minérios e quem se beneficia pelo consumo da energia também deveria ser enquadrada como uma “injustiça climática”. Esse conceito normalmente diz respeito à injustiça da distribuição dos impactos das mudanças climáticas em si. Por exemplo, são as populações pobres que mais sofrem com as inundações, as secas, as ondas de calor etc. O que eu tento mostrar é que o modelo de mitigação que está sendo construído também é injusto.

Com relação ao posicionamento da Índia, é claro que precisamos garantir acesso da população a uma quantidade de energia que garantam a elas atender suas necessidades. Mas não deveríamos imaginar que elas poderão atingir o nível de consumo atual dos países ricos, da mesma forma que devemos questionar o padrão de consumo dos países do Norte Global. Esse também precisa ser necessariamente reduzido.

IHU – Outra proposta acerca da transição energética é a criação de um fundo internacional cuja função seria receber contribuições daqueles que se beneficiam da transição verde e depois transferi-las para aqueles que serão prejudicados de alguma forma. Como vê esse tipo de proposta?

Bruno Milanez – Acredito que é uma discussão necessária, porém muito complexa. Da forma como está posta, ela se concentra na ideia da compensação. Especialmente de compensação financeira. Porém muitos desses “prejuízos” não são passíveis de uma valoração monetária. Qual é a compensação “justa” para as populações dos países insulares que serão inundados, ou para os povos indígenas que serão expulsos de suas terras para que ocorra a extração de lítiocobalto ou qualquer outro mineral? Não deveríamos estar falando em compensação sem, ao mesmo tempo, debatermos como prevenir tais danos. Esse debate naturaliza a injustiça dos impactos, ele parece dizer, “para minha vida melhorar, eu posso prejudicar a sua, desde que eu pague depois”. Não parece correto aceitar esse tipo de raciocínio.

IHU – Você defende que a discussão sobre a transição energética não pode ser reduzida à substituição de fontes energéticas. Você ainda argumenta que “é necessária uma reflexão profunda sobre mudanças sistêmicas no atual modelo de desenvolvimento. O debate sobre crise climática precisaria tratar como essencial o abandono do crescimento econômico como único critério de avaliação de desenvolvimento”. Como discutir esse tema? Que questões fundamentais precisam ser levadas em conta?

Bruno Milanez – Temos que discutir esse tema olhando para além das fontes de energia. Muita inovação ainda é necessária, mas outro tipo de inovação. Por exemplo, temos que pensar nas tecnologias de reciclagem; muitos desses minerais que são extraídos em áreas remotas com teores baixíssimos não possuem tecnologias de reciclagem. Exemplos são gálio, índio, selênio e alguns elementos de terras raras. É irresponsável desenvolver uma cadeia linear para produtos tão importantes. Além disso, temos que pensar em políticas que obriguem as empresas a recolher os equipamentos ao fim de sua vida útil para remanufatura ou reciclagem. Elas precisam ser obrigadas a se responsabilizar pela manutenção desses materiais no sistema produtivos.

Porém temos que pensar além da questão tecnológica. É preciso incluir no debate a intensidade dos recursos minerais, seja para energia, seja para outros fins. Assim, ao invés de pensar em carros elétricos, temos que voltar a discutir a mobilidade a partir do transporte coletivo (e elétrico).

Da mesma forma, precisamos repensar nossos sistemas de produção e distribuição, encurtar as cadeias de suprimento e voltar a desenvolver redes locais de produção, que são muito mais eficientes, do ponto de vista energético. Não parece fazer sentido mandar o minério brasileiro para a Ásia, para transformá-lo em aço, e importá-lo de volta.

Além disso, temos que romper com essa noção de crescimento infinito. Precisamos abandonar a ideia de que o aumento do consumo de bens é o único caminho para o aumento da qualidade de vida. É crítico redefinir o que chamamos “desenvolvimento”.

IHU – Deseja acrescentar algo?

Bruno Milanez – Apenas comentar que, de forma geral, parece que o debate sobre a crise climática ainda está muito afastado da discussão sobre o nosso modelo mineral, e vice-versa. Existem muitas sinergias entre esses dois assuntos e é necessário que haja uma aproximação entre eles.

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