Há anos, os povos Kanamari e Madija Kulina vivem graves situações de violação de seus direitos civis, sociais e humanos; como resultado do encontro, foi elaborado um documento com as principais reivindicações
“Vivemos momentos tensos onde os povos indígenas são alvo de ataques sistemáticos de grupos políticos que usam de seus mandatos para promover projetos de leis que violam os direitos originários dos povos, sobretudo os direitos ao território”. Assim constata o documento resultante da Oficina sobre Procedimentos Administrativos de Demarcação de Terras Indígenas – Terra Indígena, um Direito Constitucional – que analisou, com os indígenas da região do médio rio Juruá, a legislação e políticas públicas indigenistas brasileiras e as ações dos atuais governos federal, estadual do Amazonas e municipal de Carauari (AM).
A oficina aconteceu na última semana de novembro, em Carauari, e o documento contendo os direitos violados, as ameaças que sofrem os povos indígenas da região e suas reivindicações, foi entregue na semana seguinte a todos os órgãos responsáveis pelas políticas indigenistas que vêm sendo conquistadas pelos povos originários desde a Constituição Federal de 1988.
Participaram da oficina representantes do Povo Kanamari, das aldeias Taquara e Bauana, e do Povo Madija Kulina, da comunidade Matatibem, da Terra Indígena Kulina do Rio Ueré.
Aprofundar os conhecimentos sobre os passos e os processos de reconhecimento de um território indígena e o dever do Estado em realizar essas etapas da demarcação e homologação de suas terras foi o principal tema da oficina. Para o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e sua equipe na Prelazia de Tefé (AM), que promoveu a ação, “adquirir esses conhecimentos e compreender o funcionamento e responsabilidade de cada órgão é de fundamental importância para que os povos indígenas possam, com autonomia, cobrar e promover as incidências necessárias para a garantia da efetiva demarcação territorial”.
“Esse foi o objetivo, levar os conhecimentos sobre o funcionamento dos órgãos para que as lideranças tenham mais ferramentas e subsídios para acompanhar os processos de regularização de suas terras e para a sistematização e apresentação, nos órgãos competentes, das demandas e da situação das violações de direitos”, explica o missionário Fábio Pereira, que integra a equipe.
Para o Tuxaua Edson Ferreira de Lima, do povo Kulina, comunidade Matatibem, em Carauari, “a oficina foi muito importante, porque, se a gente entende o que precisa ser feito sobre demarcação de terra, nós sabemos como devemos agir e o que podemos fazer desde o início do processo que foi declarado para o nosso território. Nós, povo Kulina, já temos esse início do processo que já está acontecendo para a demarcação”, explica.
“Se a gente entende o que precisa ser feito sobre demarcação de terra, nós sabemos como devemos agir e o que podemos fazer desde o início do processo que foi declarado para o nosso território”
As Terras Indígenas Taquara, Bauana e Kulina do Rio Ueré estão com os processos de demarcação parados há vários anos, faltando a Funai continuar os processos.
Os olhares sobre a situação
A Amazônia é vista, normalmente, como território por excelência dos povos indígenas, no que diz respeito ao território e à regularização fundiária e demarcação de terras. “Parece que são problemas já resolvidos nessa região”, diz Chantelle Teixeira, assessora jurídica do Cimi Regional Norte I, contestando a premissa com base nas informações do Relatório de Violências contra Povos Indígenas no Brasil 2020, editado pelo Cimi.
“Os dados sobre as terras indígenas do Cimi dão conta da inadequação dessa ideia. E que, na verdade, a realidade dessa região ainda tá muito distante de acontecer”, prevê a advogada.
“Na Amazônia brasileira, mais da metade dos territórios indígenas apresenta alguma pendência no seu procedimento de demarcação. E no estado do Amazonas é onde estão concentrados os maiores números de pedidos de regularização fundiária por comunidade indígena que não tiveram nenhuma apreciação pelo estado”, completa.
Apoiando a realização e reforçando a importância das Oficinas de Formação, Chantelle diz que são “iniciativas que fortalecem os povos, levando conhecimentos sobre seus direitos territoriais para que eles mesmos possam garantir esses espaços e cobrar do poder público, da União Federal, que é constitucionalmente responsável pela proteção, pela demarcação e fiscalização desses territórios”, sustenta e conclui que “são trocas de conhecimentos muito importantes nesse momento de ataques aos direitos indígenas”.
O olhar indígena não difere do olhar da assessora, apenas adequa a linguagem para uma forma de expressão que coloca sua existência na vital relação com a floresta: “As árvores estão sem terra e suas raízes precisam delas, assim como nosso povo precisa. Por isso precisamos de terra demarcada”, diz Carlos Kanamari, morador da aldeia Taquara, participante da oficina.
Lamentando a dura situação de perseguição e ameaças que passam, o tuxaua Edson Kulina manifestou sua preocupação com os constantes casos de invasão na sua Terra Indígena e diz com emoção: “fico triste com a situação que hoje estamos passando, nossa terra sendo invadida e nosso povo ameaçado, violentado”, denuncia. Em seguida, ergue a cabeça e anima os indígenas: “mas meu povo tem que seguir lutando para defender nossos direitos”.
O documento que aponta as violências
Encerrando a etapa de aprendizados, os participantes fizeram um levantamento de todas as violências que sofrem e apontam as soluções. Violências essas, dizem os indígenas do médio Juruá, que continuam a ser praticadas ano após ano e que, agora, se amplificam com um governo que cumpre sua promessa de campanha: “no meu governo não demarcarei um centímetro de terra indígena” (fala do então candidato a presidência da República Jair Bolsonaro, em 1918).
“Temos um governo declaradamente anti-indigena, misógino, racista e preconceituoso, que desde o início de seu mandato declarou guerra e ataque aos direitos dos povos indígenas, e que vem apoiando e motivando garimpeiros, grileiros, madeireiros e empresários a adentrarem em terra indígena para explorar e destruír a floresta, a água, os animais e nossos corpos e espíritos que nos fortalecem e onde vivemos nossa cultura e nossa essência em ser indígena”, denunciam.
Também registram, no documento, os projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional e que, “explicitamente, ferem os direitos originários dos povos indígenas e colocam em risco a vida e existência indígena, porque intensificam os conflitos nos territórios”, como o Projeto de Lei 490, que trata da tese do marco temporal, e o Projeto de Lei 191, que flexibiliza a mineração.
Sistematizando os problemas que enfrentam à luz da legislação que ampara seus direitos e dos projetos de lei que podem ser aprovados, os participantes puderam perceber a gravidade das violações de seus direitos, especialmente em relação à demarcação dos territórios, que é o lugar onde vivem.
Dessa forma, escreveram o documento que foi entregue aos órgãos públicos e à sociedade civil, cada qual em sua competência: Ministério Público Federal (MPF), Promotoria Pública de Carauari, Coordenação Regional da Fundação Nacional do Índio (Funai), Gabinete do Prefeito Municipal de Carauari, Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Carauari, Associação dos Produtores Rurais de Carauari (ASPROC), Associação dos Moradores Agroextrativistas da RDS Uacari (AMARU), Associação das Mulheres Agroextrativistas do Médio Juruá (ASMAMJ), Operação Amazônia Nativa (OPAN), Secretária Municipal de Meio Ambiente, Departamento de Mudanças Climáticas e Gestão de Unidades de Conservação da Secretaria de Meio Ambiente (SEMA/Demuc), Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), Fundação Amazônia Sustentável (FAS) e Câmara Municipal de Vereadores de Carauari.
A incidência na Câmara de Vereadores de Carauri
Ao final da oficina, os participantes já com o documento pronto, convidaram as instituições e órgãos públicos da cidade de Carauari para a entrega oficial e representativa na Câmara Municipal de Vereadores.
Participaram representantes do Instituto de Desenvolvimento Agropecuário e Florestal Sustentável do Estado do Amazonas (IDAM), do ICMBio, da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) e do Fundo de Repartição de Benefícios (FRBMJ).
Frustrando as expectativas das lideranças, os vereadores não compareceram. A participação dos “representantes do povo”, de acordo com os indígenas, seria de extrema importância para o debate sobre as politicas públicas locais, especialmente para a proteção contra invasores das terras. “Projetos de Lei de Proteção Ambiental precisam contemplar as pautas indígenas e, por isso, sendo representantes do povo, os vereadores deveriam ouvi-los. É necessário que eles saibam o que se passa com os povos do município para conhecer suas reivindicações e, então, cumpri-las”, diz Fábio Pereira, indigenista do Cimi.
O sentimento dos indígenas pela ausência dos vereadores foi de indignação e repúdio por não manifestarem interesse em dialogar e apoiar as demandas dos povos indígenas. Em protesto, as lideranças ocuparam as cadeiras dos vereadores e se auto intitularam “os verdadeiros representantes do povo”.
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Centenas de indígenas manifestaram-se contra o PL 490 em frente ao Anexo 2 da Câmara no dia 23 de julho, quando proposta foi aprovada na CCJC. Foto: Andressa Zumpano/Articulação das Pastorais do Campo